Sociedade

“Há uma lógica miliciana que passa a controlar a sociedade brasileira”

Estudioso de milícias há 26 anos, professor discute sobre as dimensões do poder que, segundo ele, não é paralelo: ‘É o próprio Estado’

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Não é máfia, nem um grupo de matadores de aluguel. Os jagunços do sertão podem ser uma referência do passado, mas não definem ao certo essa estrutura. Capangas também não tocam no cerne da questão. De dimensões enormes, há de se pensar que essa rede queira se legalizar, enfrentar menos problemas e menos guerras. Mas ela já é autorizada a existir. “Você acha que vai prendê-la e pegá-la pelo legal, ela vem e te mata – que é o caso da Marielle. Quando você vai tratá-los como ilegais, aí eles te tratam pela legalidade, e bloqueiam sua capacidade de atingi-los, porque eles têm acesso à informação. A milícia é o próprio Estado”, diz, em uma tarde fria em São Paulo, José Cláudio Souza Alves, professor de sociologia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador das milícias há 26 anos.

José Cláudio explica: se as máfias amparam-se principalmente nos laços familiares para construírem sua rede de poder, os milicianos precisam emergir de uma sólida base política, que se desenvolveu a partir de grupos de extermínio da Baixada Fluminense e, ainda mais longe, dos agentes públicos que eram pagos na época da ditadura para realizarem serviços a favor de certas ‘limpezas’ em áreas de disputa. “A Baixada sempre assistiu a esses matadores terem carreira de sucesso, e agora essas carreiras estão extrapolando ao nível local e chegam à dimensão nacional”, pontua.

Autor do livro “Dos barões ao extermínio: a história da violência na Baixada Fluminense”, que será relançado em 2019 pela primeira vez desde a publicação original, datada de 2003, o professor relata que, após tantos anos estudando o assunto,  “não tem estômago” para receber vídeos e fotos que contam as disputas entre milicianos e integrantes de facções pela região e pelo tráfico a partir dos olhos de quem mais sofre com a guerra urbana do Rio de Janeiro – os moradores. Em conversa com a imprensa, o professor debruçou-se sobre a história dos milicianos e suas relações com o núcleo político costurado por eles – que agora ocupa o Palácio do Planalto -, assim como o crime contra Marielle Franco e Anderson Gomes, que está prestes a completar 500 dias sem respostas.

O que são as milícias?

“Milícia, ao meu ver, são grupos de agentes de segurança pública que vão passar – a partir da posição que têm dentro do Estado – a organizar dimensões criminosas como grupos de extermínio, cobrança de segurança para comércio e para a população. Depois, abrem um leque de portfólio de tudo o que você possa imaginar: vendem terras, casas, aterros, água, gatonet, trabalham com transporte clandestino, gás, cigarro, drogas…

Como eu estudo grupo de extermínio desde 1993, percebi eles nascendo lá na ditadura, nos anos 1960. São agentes públicos, gente do Estado, que são financiados por empresários e comerciantes daquela época para limpar as áreas. Tinha políticos ligados ao regime militar que apoiavam eles. Esses grupos não emergem sem base política.

O Joca – José Julio dos Santos -, por exemplo, foi prefeito de Belford Roxo, uma das cidades mais violentas da Baixada. Ele se elege em 1993, em uma votação maciça. Era líder de grupos de extermínio, projetou-se a partir dessa imagem do matador. O Joca é assassinado indo fazer uma negociação com o Marcello Alencar [ex-governador do Rio de Janeiro], indo para o Palácio das Laranjeiras, no Túnel Santa Bárbara num suposto latrocínio. Ele levou 11 tiros. Já tinha essa costura política de um governador que passava pelo Joca e que passava pela Baixada a partir dele. Já se percebe aí um projeto que não é só da Baixada. Se hoje a gente pode apontar que é um projeto nacional, um poder central do Brasil, ele se estabelece não só discursivamente.

Costumo dizer que cinco décadas de extermínio na Baixada, que é o grande laboratório nacional, nos deram 75% de votação no Bolsonaro naquela região.”

Entre milícias e facções

“O mundo urbano é uma caixa de ilegalidades para dar dinheiro pra aqueles que são os ‘espertos’ – aqueles que vão fazer as conexões corretas com os grupos políticos dominantes.

O Comando Vermelho é mais de confronto – vai para a guerra para morrer ou matar. O Terceiro Comando sempre fez acordo com polícia – há um relato que eles teriam sido criado por policiais. O PCC [Primeiro Comando da Capital, maior facção paulistana], por exemplo, não segue jamais essa linha do Comando Vermelho, e se aproxima mais do Terceiro Comando – vai numa linha mesmo de, como o [pesquisador] Gabriel Feltran fala, irmandade.

A milícia não tem isso. Ela tem uma estrutura de poder que é dada pelo Estado, porque ela é o Estado. Ela tem essa dupla face – uma face legal e outra ilegal. Você acha que vai prendê-la e pega-la pelo legal, ela vem e te mata – que é o caso da Marielle. Ela achava que, pela dimensão legal e formal do Estado, do Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, ela tinha esse poder. Eu acho que foi isso que os ameaçou e levou a matá-la.

Se a cabeça [do sistema Judiciário] é o STF [Supremo Tribunal Federal] e essa maluquice que o STF virou, para o Toffoli simplesmente abrir mão de um caminho de investigação, dizer que o Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras] não pode ser utilizado porque não há uma legislação, ele agora abre para que todo mundo que está nessa dimensão do controle financeiro possa avançar e se livrar desse mecanismo. Os pés dessa estrutura estão calcados em agentes de segurança pública – policiais militares e civis que vão operar as investigações. Se essa ponta é de barro, se esses pés estão contaminados, o que você vai esperar dessa estrutura toda? Ela é uma estrutura corroída. É o que acontece há muito tempo no país – só que agora, eles ganham visibilidade, ganham poder, viram heróis.

Bolsonaro se elege dizendo que vai colocar o nome desses caras num panteão. Flávio Bolsonaro homenageia os milicianos no Rio de Janeiro, dá cargo pra mãe e esposa de miliciano dentro do seu gabinete. Esses caras hoje ganharam uma projeção de poder político real, e isso nos assusta muito.”

O professor José Claudio Souza Alves (Foto: Giovanna Galvani/CartaCapital)

Quem mandou matar Marielle Franco?

“O caso Marielle, ao meu ver, é isso: joga um monte de piranha, eles vão ficar presos. Eles vão pagar o preço por isso. Ao meu ver, o governo Witzel está lá para impedir de fato qualquer aproximação do poder central dessas investigações. Ele já deslocou o primeiro delegado. Daqui a pouco, tem um ano e meio de investigações em que você não tem resultados completos. Milícia não age sozinha para matar. Não é que o cara é homofóbico, sexista, machista, misógino, psicopata e resolveu matar a Marielle. Ele pode até ser tudo isso, mas ele sabe que, se ele fizer algo que não é de acordo, os outros o eliminam na hora porque sabem dos interesses que estão envolvidos ali. Então ele vai construir isso dentro de uma rede.

Por que não se chega nessa rede? Nos mandantes, nas motivações? É porque tem muito comprometimento, está tudo bloqueado. Você não consegue avançar. E parece que o STF também está ajudando nisso.”

‘Quarto de pânico’

“No Rio de Janeiro, as facções do tráfico são esquemas de ilegalidade e roubos que têm se expandido como alternativa real. São realidades em que essas pessoas [a população] vivem. Não adianta você querer achar que eles são incorporados economicamente, que nunca foram. Quando um cara desse se elege, ele está se elegendo diante de uma realidade social degradada, destruída. O próprio traficante votou no matador. O cara que elege ‘bandido bom é bandido morto’ está elegendo o cara que vai matar o filho dele.

São pessoas que foram entregues ao desamparo. O desamparo é uma realidade que não tem saída. É o governo petista que vai te salvar? Não foi. É o governo Dória, César Maia, de Sérgio Cabral… quem são essas pessoas? No imaginário dessa massa desassistida, são pessoas que deveriam salvá-los. Ninguém salvou. Essas pessoas continuam em estados de saúde, educação, todas as formas sociais de interação são muito degradadas.

Não adianta discutir a segurança pública nesse quarto do pânico. Você tem um defunto colocado na mesa da sua sala, que é um torturado, morto ou assassinado pela milícia, e você não sabe o que fazer com isso porque todos os mecanismos que te deram são os que vão fortalecer esses caras. Eles estão eleitos, controlam o Judiciário, controlam o poder político, o poder Legislativo, o Executivo (num âmbito agora muito maior). Como é que você vai fazer agora? Esses caras construíram ao longo de 5 décadas um bloco que é esse que caiu em cima de nós.

A questão da violência vira uma espécie de lupa: você vai enxergar um painel monstruoso. Vai sair pelas dimensões formais, legais do Estado? Vai esperar uma lei, uma ação da Polícia Federal, uma Lava Jato das milícias? Não há esse cenário. No meu ver, elas vão se fortalecer. Tende a piorar muito. Quem se contrapõe, elas vão eliminar.”

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