Sociedade

Giuseppe Garibaldi e Gianni Carta, um duplo tributo

O guerrilheiro do conhecimento em seu encontro com o herói insubmisso de dois continentes

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Acometido daquela comichão que caracteriza o quase extinto jornalismo de qualidade – a justificada ânsia de assistir à História transcorrer ao vivo, à sua frente, não no gabinete refrigerado dos sabichões do establishment –, Gianni Carta deixou sua casa nos arredores de Paris e se incorporou à caravana na qual Lula, já sitiado pelos podres poderes do golpe, tentava mobilizar o País em favor de justiça e da democracia. Era o mês de maio de 2018.

Gianni talvez não adivinhasse, mas iria pegar o pior trecho da viagem: aquele Sul machista, intolerante, reacionário e preconceituoso preparava-se não para ouvir o que o ex-presidente, candidato legítimo ao Planalto, tinha a dizer, e sim para atemorizá-lo e impedir que ele desse seu recado. Pitboys desordeiros, fazendeiros armados e desocupados de aluguel, sempre acobertados pela polícia, atacaram a pedradas, pauladas e pontapés os três ônibus de uma comitiva no entanto abraçada pelos excluídos. De madrugada, já no estado do Paraná, dois deles foram emboscados a tiros de fuzil. Gianni Carta dormia perto de uma das janelas miradas pelos delinquentes jamais investigados.

O batismo de fogo, que a mídia da oligarquia ignorou e em certos casos tentou mesmo desacreditar, tornou-se ainda mais paradoxal para alguém que, de bloco e gravador, havia varado aquelas paragens dos Pampas, não fazia muito tempo, em missão igualmente nobre: resgatar a passagem por lá de Giuseppe Garibaldi (1807-1882), herói de dois continentes.

Exaustivas foram as pesquisas, não só no Rio Grande do Sul onde Garibaldi irrigou a rebeldia dos farroupilhas e na Santa Catarina onde encontrou a companheira Anita – na verdade, para Gianni, graduado em Ciências Políticas, foram dez anos de leituras e viagens pela Itália, França, Grã-Bretanha, Argentina e Uruguai, para dar conta da itinerância aventureira que, ao fim, se tornou dupla: a do biografado e a do próprio biógrafo. Tão obcecado ficou Gianni – mezzo brasiliano, mezzo italiano, mas sempre cosmopolita – com o personagem que, em momento de incorporação quase mediúnica, ouviu da mulher, ao desembarcar em casa ao fim de mais uma jornada de pesquisas: “O Garibaldi também vem para jantar?”

Dez anos: bibliotecas, lugares históricos, entrevistas com historiadores, folcloristas, até com a autora e o protagonista de uma bem-sucedida série brasileira de tevê. Tudo isso na compreensiva tentativa de aspirar dos fatos reais um aroma que fosse além da planura historiográfica, com o cuidado, porém, de não elevar o personagem ao mesmo patamar mítico a que o via alçado em saraus familiares encharcados de vinho, pasta e anarquismo. “Escrevi um livro crítico, e não uma hagiografia”, preveniu-se Gianni Carta.

Garibaldi na América do Sul, com o subtítulo O Mito do Gaúcho, saiu enfim em 2013, pela editora Boitempo. Preenche o silêncio com que o Brasil costuma brindar os heróis de verdade, aqueles que enfrentam os privilegiados do status quo. Se vivo fosse hoje na republiqueta miliciana, Garibaldi seria alvejado pelos mesmos disparos que visavam Lula. Mas a História é teimosa. Ideais viajam bem pelo tempo, eles nos arrebatam, eles irrigam a História num paradoxo de perenidade mesmo quando aparentemente circunscritos a uma situação específica. Há quem diga que Garibaldi está para o século XIX assim como o Che está para o século XX. Até no atrativo iconográfico eles se parecem.

Se Garibaldi voltasse ao Brasil do século XXI, levaria bala

Giuseppe Garibaldi foi homem de coragem. Gianni Carta lapidou uma obra de ousadia. Por toda sua vida, injustamente abreviada aos 55 anos, a Gianni Carta coube a tarefa de circular pelo mundo no corpo a corpo de uma batalha contemporânea que, ao contrário daquelas travadas por Garibaldi, não pressupõe sangue, mas exige convicção: a batalha da informação. Foram ambos, cada um a seu jeito, guerrilheiros da luz, da liberdade e da democracia.

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