Sociedade

Foliões e prefeitura disputam pelo carnaval de Belo Horizonte

O mesmo poder público que combatia a festa passou a tratá-la como ‘megaevento’ e buscou patrocinador ao ver a ascensão dos blocos de rua, que condenam sua apropriação financeira

Bloco Então, Brilha! colocou 20 mil pessoas no centro da cidade na manhã de sábado de carnaval
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A fama do carnaval de rua de Belo Horizonte é recente, mas tem se consolidado ano a ano com a chegada de novos blocos que vão às ruas usufruir do direito à cidade e à diversão gratuita. Apesar da resistência inicial da prefeitura de Belo Horizonte e da repressão da Polícia Militar de Minas Gerais a alguns desfiles, o número de blocos e foliões cresce a cada ano desde 2009 e o carnaval se espalhou pela capital mineira.

Em 2015, segundo dados divulgados pela prefeitura, 1,48 milhão de pessoas tomaram as ruas da cidade durante a festa, e 177 blocos foram registrados ­- número que tende a ser maior, já que muitos não fazem o cadastro oficial. Todas as atrações são gratuitas, sem abadá ou cordas.

“O carnaval de Belo Horizonte surgiu de maneira anárquica e descentralizada. Muitos grupos novos contaram com a contribuição dos antigos, mas mantendo suas autonomias”, explica Rafael que é um dos fundadores do Filhos de Tcha Tcha, bloco que desde 2009 sai sem o registro oficial da prefeitura em bairros afastados do centro de Belo Horizonte. “Festejamos o poder dos encontros e dos deslocamentos.”

Graças ao crescimento, o carnaval virou motivo de cobiça entre muitos vereadores e a prefeitura, que tentam passar a imagem de responsáveis pela festa. O vereador Léo Burguês (PT do B), por exemplo, foi veementemente criticado nas redes sociais depois de ter usado o carnaval em sua campanha para deputado estadual, e se viu obrigado a pedir desculpas em pleno período eleitoral.

Forte aliado do prefeito Márcio Lacerda (PSB) na Câmara, o vereador é enredo de umas das marchinhas mais populares da cidade (Coxinha da Madrasta, que trata do caso em que Burguês apresentou pagamento de 62 mil reais como gasto da verba indenizatória feito ao bufê da mulher de seu pai). Mesmo com toda a crítica, no dia 10 de Fevereiro, ele postou em sua página no Facebook uma foto de uma reunião dizendo estar “organizando o carnaval de BH com a Belotur (empresa de turismo do município responsável pelo carnaval oficial da prefeitura) e empresários”.

Isso porque, em 2009 e 2010, quando a festa ressurgia, os políticos não viam potencial eleitoral no que estava acontecendo nas ruas, conforme explica Roberto Andrés, professor da UFMG, folião e um dos organizadores do bloco Tico Tico Serra Copo (que também sai sem o registro oficial da prefeitura).

“Em 2011, em sua ânsia pela ordem, passou a combater a folia, ameaçou donos de bares que vendessem cervejas para blocos e utilizou a polícia para dispersar blocos. Nos anos seguintes, passou a aceitar a folia, mas sempre tentando impor a sua lógica, sem ouvir os anseios de quem faz o carnaval”, afirma.

No ano passado, o embate ganhou novo capítulo quando foi lançado um edital para encontrar um patrocinador oficial para o que a prefeitura passou a chamar de megaevento. A cervejaria Skol foi escolhida para patrocinar a festa em 2014 e 2015. “O poder público e seus aliados chegaram atrasados e agora querem ditar regras para um bloco que já partiu”, afirma Guto Borges, historiador, músico e militante do carnaval de rua de Belo Horizonte.

Bloco Chama o Síndico O bloco Chama o Síndico, que saiu na quarta-feira que antecedeu o carnaval (Crédito: Mariana Jacques)

Em entrevista à rádio CBN, o prefeito Márcio Lacerda defendeu a atitude de ter um patrocinador oficial, e recebeu duras críticas, principalmente por chamar aqueles que são a favor do carnaval espontâneo de “liberticidas”. Andrés lembra que o político é conhecido por suas falas infelizes. “Quando o Viaduto dos Guararapes caiu durante a Copa do Mundo matando duas pessoas, ele disse que ‘essas coisas acontecem'”, contextualiza.

Para o professor, Lacerda talvez tenha cometido um ato-falho. “Liberticidas são tiranos que tolhem as liberdades dos outros, por exemplo, proibindo eventos em espaços públicos, privatizando ruas, garantindo monopólio comercial.”

A decisão de instituir um patrocinador oficial do carnaval de rua desagradou os blocos que defendem que a festa siga sendo promovida de maneira independente e cobram que a prefeitura se responsabilize pela limpeza e segurança. “O poder público tem que entender que quem faz e organiza a festa é o povo e os blocos que estão na rua. Se a prefeitura quiser organizar, ela deve conversar de forma mais profunda e criativa com as pessoas”, afirma Peu Cardoso, regente dos Baianas Ozadas, que reuniu, segundo a PM, 100 mil pessoas na segunda-feira de carnaval.

Por conta disso, muitos blocos utilizam o slogan “Carnaval de rua e de luta”, além de músicas e ações que reforçam o posicionamento de quem faz a folia em BH:  liberdades individuais, ocupação do espaço público, revisão da política de drogas, igualdade entre gêneros e transporte público gratuito. Este motivou integrantes do movimento Tarifa Zero a organizarem um ônibus sem catraca para suprir a demanda durante a festa, já que os horários de ônibus foram reduzidos durante o feriado.

A repressão policial, apesar de ter diminuído, ainda se fez presente na festa deste ano. Depois de ter levado 60 mil pessoas ao desfile no domingo, o bloco Alcova Libertina se apresentou num dos nove palcos montados pela prefeitura na praça da Estação. A programação, porém, estava atrasada, e o show teve de ser reduzido. “Quando anunciamos isso para o público, surgiram gritos de ‘Fora, Lacerda’. Neste momento, nosso vocalista iniciou uma fala comum em nossas apresentações em defesa da legalização do aborto, da revisão da lei das drogas e da desmilitarização da PM. Na nossa última música, havia pelo menos 15 policiais em cima do palco exigindo o final do show. Intimidados, tivemos de encerrar nossa apresentação no meio da canção. Ter PM no palco não é normal. Pra mim, isso é um fato de censura”, relata Isabela Leite, produtora cultural, musicista e membra da Alcova Libertina e de outros blocos do carnaval de Belo Horizonte.

Bloco Filhos de Tcha Tcha 2015 O bloco Filhos de Tcha Tcha saiu nas ocupações Isidora, Esperança e Vitória (crédito: Flávia Mafra)

Mesmo diante do interesse político e econômico que ronda a festa, as pessoas que fazem o carnaval não demonstram desânimo. O economista Rodrigo Castriota, por exemplo, participou como músico ou regente de mais de dez blocos este ano. Para ele, o que complica é o dispendio de energia e tempo. “Porque além de fazer um carnaval para cidade pelo simples amor à festa, a gente tem que ficar levantando a voz para a multinacional e a prefeitura que tentam lucrar com as nossas caras e o nosso suor”.

Ele ainda afirma que isso não será entrave para os próximos anos. “Nós aprendemos que com a força da coletividade é possível fazer qualquer coisa, inclusive um carnaval imenso e lindo, sem patrocinadores,” comenta.

Para demonstrar o descontentamento com os patrocínios, um grupo de 51 blocos lançou uma nota condenado o que eles classificaram ser “uma esdrúxula tentativa de apropriação financeira da festa” de algo que é “do povo para o povo”. Eles também acusam a cervejaria de se utilizar imagens e conteúdos produzidos pelos blocos para divulgar sua marca no Facebook. Em nota, a Skol defende-se dizendo que o material publicado na rede social não passa por sua aprovação. “A Skol foi a patrocinadora oficial do carnaval de BH pelo segundo ano consecutivo, sendo uma das principais apoiadoras desse movimento cultural”.

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