Sociedade

Feliz 1912!

O ano é novo, mas os hábitos (e as conversas e vícios) são os mesmos: quem pode comemora; quem não pode, serve

'Quando acordarem, a manhã será o ano seguinte, mas só para quem está de branco, os herdeiros da Casa Grande'
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É ano novo.

Na conta de e-mail, chega a mensagem de anos velhos. “Não dê panetone para o seu porteiro. Se votou no Lula e na Dilma, ele que peça Bolsa Família agora para o governo.”

Leia-se: “cuidado, eles não precisam das nossas migalhas. O que será de nós, que estudamos e fizemos carreira?”

Dúvida existencial de dezembro. Tender ou peru? “Mas o peru anda tão caro…” (Todos os anos os perus andam caros, mas temos 12 meses para esquecer).

E que roupa eu vou?

No salão de festas ou nas salas de jantar, há um desfile de última moda. Recentíssimas. Saias, sapatos, colares. Quem fotografou e compartilhou no YouTube podia jurar que foram tiradas na Suécia.

Mas foi bem aqui, ao lado dos bairros onde tudo parece construção e tudo já é ruína. Uma ruína sem esgoto.

Quem acusa a localidade (sim, estamos no Brasil) não são as legendas das fotografias, mas os criados. Os criados, únicos da festa vestidos de preto, equilibrando na ponta dos dedos as garrafas de espumantes que serão brindadas, lançadas ao alto, derramadas.

Quem se importa? Está tudo pago.

Como estão pagos os humores: na pista de dança, o tiozão anda em ziguezague, acusando a bebedeira. Parece fora de si, mas ainda não rasgou nota de cinquenta nem, por sorte, mostrou as nádegas flácidas para os amigos às gargalhadas. Mas pode delegar à bebedeira a patacoada de dançar em volta da garçonete, morena, magra, miuda. Os amigos riem, ela também – mas é um sorriso de quem não quer perder o emprego.

Ofensivos? “Magina!” É só festa e ela, só uma criada.

À saída, um velho grita: “Eu posso pagar pra você, pra mim, pra quem eu quiser, seu trouxa”. O grandalhão só escuta: começou o ano com os dentes cerrados.

No telão, o som é novo. Alguém canta “Eu já lavei o meu carro, regulei o som, já tá tudo preparado, vem que o brega é bom”. É tempo de poesia.

E todos dançam.

É dia de festa.

Se há uma crise, está lá fora. Além do mais, pega mal falar em notícia triste nessa época do ano. E, se a coisa está feia, está longe: vai precisar de uma corrente avassaladora para derrubar nossos portões, nossas grades, nossos muros, levar embora nossos seguranças que, vestidos de preto, fazem à ronda no estacionamento e chamam todo mundo de “doutor”.

 

Os doutores estão do lado de dentro das casas. Alguns têm até urticária ao ouvir falar em universidades, universitários, estudantes molambentos.

“Tudo vagabundo”, sentenciam, sempre lembrando que, no seu tempo, escola pública é que era boa. “Mas hoje…”

E tome a falar da ocupação da USP, “a gente pagando essa mamata, etc”.

Na sala de jantar, a conversa, como sempre, é sobre os filhos. Ou sobre o calor.

A Maricota enche a boca ao contar que o Juquinha e a Estelinha estão na Disney. O Almeidinha fala do primeiro imóvel na praia e da última prestação de carro, quitada em novembro.

E todos dançam, cantam, celebram algo que chegou.

Outros ficam na tevê.

“Que chuva lá em São Paulo, hein?”

“É o aquecimento global, seu Armando.”

Em outro salão, o rapaz que prepara as batidas enxuga a testa, enquanto alguém na tevê deseja um ano de muitas conquistas. Tem vontade de estourar o vidro na cabeça do primeiro playboy que chega falando alto, esperneando pela demora em ser servido.

Nas rodas de conversa, as mesmas preocupações de épocas remotas.

“Gente, esse ano passou rápido demais, não?”

“E esse indulto de fim de ano, hein? Tantos mil vagabundos nas ruas”…

“Já consultei a área comercial: em pouco tempo, dá pra gente ganhar, por baixo, por baixo, uns…”

“Ah, mas essa festa está parecendo uma rodoviária. Antes tinha isso, tinha aquilo, e era tudo na mesa. Agora a gente pega fila.”

“O Ciclano vai trabalhar na multinacional. Está super bem. Deve estar tirando uma nota. Mas ó, vou te falar: bichona, viu?”

“A Marli veio de novo com aquele decote. Cada ano, mais indecente.”

“Vim de calcinha amarela hoje. Quero é ganhar muito dinheiro em 2012.”

“Vou te falar: essa maionese da Magali é uma pobreza de dar nojo…”

“Olha o Fulano, que chupim: veio, bebeu, comeu, pegou minha prima, e só trouxe uma Sidra Cereser. É um canalha.”

“Menina, você conhece uma boa faxineira? Mas boa mesmo? A minha só ouvia rádio e tomava todo o iogurte das crianças. Mandei embora no tapa. Mas começo o ano a pé, a casa uma bagunça…”

E a roda gira.

Os filhos, entediados, pregam os olhos no computador, ou no Iphone, no celular.

Hora de dormir.

Quando acordarem, a manhã será o ano seguinte, mas só para quem está de branco, os herdeiros da Casa Grande.

Quem veio de avental, ou está nas ruas guardando carros, só pode celebrar o velho estado das coisas de um século de atraso: estamos todos em 1912, e o novo século é só uma promessa.

É ano novo.

Na conta de e-mail, chega a mensagem de anos velhos. “Não dê panetone para o seu porteiro. Se votou no Lula e na Dilma, ele que peça Bolsa Família agora para o governo.”

Leia-se: “cuidado, eles não precisam das nossas migalhas. O que será de nós, que estudamos e fizemos carreira?”

Dúvida existencial de dezembro. Tender ou peru? “Mas o peru anda tão caro…” (Todos os anos os perus andam caros, mas temos 12 meses para esquecer).

E que roupa eu vou?

No salão de festas ou nas salas de jantar, há um desfile de última moda. Recentíssimas. Saias, sapatos, colares. Quem fotografou e compartilhou no YouTube podia jurar que foram tiradas na Suécia.

Mas foi bem aqui, ao lado dos bairros onde tudo parece construção e tudo já é ruína. Uma ruína sem esgoto.

Quem acusa a localidade (sim, estamos no Brasil) não são as legendas das fotografias, mas os criados. Os criados, únicos da festa vestidos de preto, equilibrando na ponta dos dedos as garrafas de espumantes que serão brindadas, lançadas ao alto, derramadas.

Quem se importa? Está tudo pago.

Como estão pagos os humores: na pista de dança, o tiozão anda em ziguezague, acusando a bebedeira. Parece fora de si, mas ainda não rasgou nota de cinquenta nem, por sorte, mostrou as nádegas flácidas para os amigos às gargalhadas. Mas pode delegar à bebedeira a patacoada de dançar em volta da garçonete, morena, magra, miuda. Os amigos riem, ela também – mas é um sorriso de quem não quer perder o emprego.

Ofensivos? “Magina!” É só festa e ela, só uma criada.

À saída, um velho grita: “Eu posso pagar pra você, pra mim, pra quem eu quiser, seu trouxa”. O grandalhão só escuta: começou o ano com os dentes cerrados.

No telão, o som é novo. Alguém canta “Eu já lavei o meu carro, regulei o som, já tá tudo preparado, vem que o brega é bom”. É tempo de poesia.

E todos dançam.

É dia de festa.

Se há uma crise, está lá fora. Além do mais, pega mal falar em notícia triste nessa época do ano. E, se a coisa está feia, está longe: vai precisar de uma corrente avassaladora para derrubar nossos portões, nossas grades, nossos muros, levar embora nossos seguranças que, vestidos de preto, fazem à ronda no estacionamento e chamam todo mundo de “doutor”.

 

Os doutores estão do lado de dentro das casas. Alguns têm até urticária ao ouvir falar em universidades, universitários, estudantes molambentos.

“Tudo vagabundo”, sentenciam, sempre lembrando que, no seu tempo, escola pública é que era boa. “Mas hoje…”

E tome a falar da ocupação da USP, “a gente pagando essa mamata, etc”.

Na sala de jantar, a conversa, como sempre, é sobre os filhos. Ou sobre o calor.

A Maricota enche a boca ao contar que o Juquinha e a Estelinha estão na Disney. O Almeidinha fala do primeiro imóvel na praia e da última prestação de carro, quitada em novembro.

E todos dançam, cantam, celebram algo que chegou.

Outros ficam na tevê.

“Que chuva lá em São Paulo, hein?”

“É o aquecimento global, seu Armando.”

Em outro salão, o rapaz que prepara as batidas enxuga a testa, enquanto alguém na tevê deseja um ano de muitas conquistas. Tem vontade de estourar o vidro na cabeça do primeiro playboy que chega falando alto, esperneando pela demora em ser servido.

Nas rodas de conversa, as mesmas preocupações de épocas remotas.

“Gente, esse ano passou rápido demais, não?”

“E esse indulto de fim de ano, hein? Tantos mil vagabundos nas ruas”…

“Já consultei a área comercial: em pouco tempo, dá pra gente ganhar, por baixo, por baixo, uns…”

“Ah, mas essa festa está parecendo uma rodoviária. Antes tinha isso, tinha aquilo, e era tudo na mesa. Agora a gente pega fila.”

“O Ciclano vai trabalhar na multinacional. Está super bem. Deve estar tirando uma nota. Mas ó, vou te falar: bichona, viu?”

“A Marli veio de novo com aquele decote. Cada ano, mais indecente.”

“Vim de calcinha amarela hoje. Quero é ganhar muito dinheiro em 2012.”

“Vou te falar: essa maionese da Magali é uma pobreza de dar nojo…”

“Olha o Fulano, que chupim: veio, bebeu, comeu, pegou minha prima, e só trouxe uma Sidra Cereser. É um canalha.”

“Menina, você conhece uma boa faxineira? Mas boa mesmo? A minha só ouvia rádio e tomava todo o iogurte das crianças. Mandei embora no tapa. Mas começo o ano a pé, a casa uma bagunça…”

E a roda gira.

Os filhos, entediados, pregam os olhos no computador, ou no Iphone, no celular.

Hora de dormir.

Quando acordarem, a manhã será o ano seguinte, mas só para quem está de branco, os herdeiros da Casa Grande.

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