Sociedade

Felipe Neto: “Não sei como dormem os influenciadores que não ligam para debate público”

Youtuber diz que não dá para relativizar governo ‘com esse nível de criminosos’

Felipe Neto
"Hoje me considero principalmente um progressista, mas antes era um conservador sem nem saber", diz o youtuber. Foto: Fabio Motta "Hoje me considero principalmente um progressista, mas antes era um conservador sem nem saber", diz o youtuber. Foto: Fabio Motta
Apoie Siga-nos no

Quando o formato de vlog ainda engatinhava no Brasil, em meados de 2010, o carioca e então anônimo Felipe Neto resolveu gravar um vídeo para criticar raivosamente a febre do happy rock, ou “bandas coloridas”.

 

Morador do Engenho Novo, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, ele apontou a câmera para si mesmo, fez suas piadas agressivas, subiu o arquivo no YouTube e foi dormir.

Ao acordar na manhã seguinte, seu vídeo tinha dezenas de milhares de visualizações, a caixa de comentários estava tomada por xingamentos e Felipe Neto havia deixado para sempre o anonimato, literalmente da noite para o dia.

Dez anos depois, em setembro de 2020, o youtuber gravava os vídeos que abastecem diariamente seu canal com quase 40 milhões de inscritos quando recebeu a notícia de sua assessoria: a revista norte-americana Time o elegera um dos cem mais influentes do planeta.

O carioca não acreditou, pediu que a equipe checasse a informação e só depois de se certificar de que não se tratava de uma pegadinha, pronunciou-se no Twitter:  “Eu não tenho a mínima dimensão do que tá acontecendo”.

Nestes 10 anos, entre o vídeo adolescente e descompromissado e a escolha da Time que consolidou seu nome no exterior, o conteúdo produzido por Felipe Neto mudou radicalmente.

Ficaram para trás os xingamentos, o personagem mal-humorado, a insistência em criticar a cultura pop. Entraram os cabelos coloridos, os vídeos para a família e a conquista de um público imenso, sobretudo pré-adolescente. Mas não foi pela mudança do conteúdo no seu canal e o consequente aumento de seguidores ao longo dos anos que a revista norte-americana o elegeu, mas pela postura do youtuber desde as eleições de 2018 no Brasil.

“Era um liberal por osmose. Hoje me considero um progressista”

O crescimento do então candidato Jair Bolsonaro nas pesquisas levou-o a expor o que antes só tinha ensaiado e a se posicionar ativamente no cenário político contra a intolerância e a violência, sem medo de perder uma fatia da audiência que lhe permitiu sair do subúrbio do Engenho Novo para a Barra da Tijuca.

Alguns fãs o abandonaram desde então, mas o influenciador ganhou outra dimensão na vida nacional: o “moleque” é hoje uma das vozes mais ouvidas e respeitadas no Brasil e no exterior. Não por outra razão, tornou-se uma pedra no sapato, talvez a maior, do bolsonarismo.

Aos 32 anos, Felipe Neto comanda um conglomerado lucrativo de produção de conteúdo na internet e não leva tão a sério a escolha da Time: “Vejo mais como um indicativo de que o caminho que decidi tomar foi o correto”.

No ano passado, com a escalada das ameaças verbais e físicas, mandou a mãe para fora do País e reforçou sua segurança pessoal. Seu primeiro grande enfrentamento não se deu, porém, com o clã Bolsonaro. Aconteceu durante a Bienal do Livro no Rio. Após o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, ter determinado o recolhimento de um gibi com cenas de um beijo gay, o influenciador distribuiu de graça livros com temáticas LGBTQI+ no mesmo evento, o que rendeu perseguições em níveis inéditos. O episódio foi um marco na guinada política do youtuber, que desde então passou a conversar frequentemente com políticos progressistas, de Marcelo Freixo a Guilherme Boulos.

Alguns anos antes, a visão política do influenciador era outra. Hoje, ele define-se como “progressista” e “social-democrata, mas nada a ver com o PSDB”. Em 2016, quando ainda não se posicionava politicamente com tanta frequência, fez coro ao impeachment de Dilma Rousseff. “Era um liberal por osmose, achava que só porque eu era pobre e tinha conseguido crescer do nada usando a internet, todo mundo podia fazer igual”, diz. Como se deu a mudança de opinião? “Gradualmente, estudando e lendo.”

Atualmente existem dois Felipe Neto, o do YouTube e o do Twitter. O primeiro encarna um personagem divertido e continua a produzir conteúdo que mantém um público fiel. O segundo critica o governo e dá opiniões que passam longe do mundo do entretenimento.

“Dois mundos distantes que não se sobrepõem”, define, embora o bolsonarismo tente misturá-las constantemente. Há uma acusação falsa e recorrente espalhada pelas redes de ódio: o youtuber estimularia a pedofilia. O último a reproduzir a mentira foi o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, em 25 de setembro. Felipe Neto promete processá-lo. Por causa dos constantes ataques, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, convidou-o a contribuir em um projeto de lei que regulamenta as fake news.

“Meu maior medo é a gente repetir em 2022 o que aconteceu em 2018”

O maior problema do governo Bolsonaro, acredita o influenciador, é o negacionismo ou a descrença em preceitos básicos da ciência e dos direitos humanos. Enquanto o ex-capitão dobra a aposta desde o começo do mandato, o outro lado, avalia Felipe Neto, não tem sido capaz de contra-atacar de maneira eficaz, o que o deixa com poucas esperanças em relação a 2022.

Apesar da influência e do assédio crescente desde que se tornou uma voz atuante no debate público, a opção de se candidatar a um cargo público não faz parte dos planos. Ao menos por ora. “Posso fazer muito mais pela sociedade via terceiro setor.”

CartaCapital: Como recebeu a notícia da Time? Considera-se de fato um dos cem mais influentes do mundo?

Felipe Neto: Eu estava trabalhando entre um vídeo e outro quando meu pessoal encaminhou o e-mail da Time. A gente não recebe nada antes da revista, dizendo que é considerado para a lista, então eu não tinha ideia. Fiquei cético, pedi para confirmarem e só depois, quando vi que era sério, senti a felicidade e a honra gigantes que é estar ao lado de quase todos aqueles que compuseram a lista. Não me considero exatamente um dos cem mais influentes do mundo, mas o balanço da revista é sobre os cem mais no momento atual. Então, de certa forma, foi um reconhecimento de que o caminho que tomei foi o correto.

CC: Dois dias depois, o ministro do Turismo acusou-o de pedofilia. Esse nível de ataques, do alto escalão do governo, te preocupa? Por que sempre miram na pedofilia?

FN: Vejo como só mais um ataque, principalmente depois que sofri centenas de ameaças e que o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, o irmão dele, Arthur Weintraub, ou integrantes e gente próxima da família Bolsonaro começaram a me criticar diretamente. Incomodo e a única estratégia que eles têm é espalhar fake news.

Faço sempre questão de responder judicialmente, pois isso é crime. Processar é a forma de mostrar que a internet não é terra sem lei, que as pessoas têm de pagar pelo que dizem lá também, é assim. A associação criminosa que forçam entre a minha imagem e a pedofilia é importada dos EUA, onde há anos tentam juntar os democratas com esse tipo de crime hediondo que desperta ódio imediato, tudo a partir de fake news e teorias da conspiração, como a mais recente lá, o Qanon. Aqui fizeram a versão brasileira e me elegeram como alvo.

CC: Caetano Veloso disse recentemente que se considera “menos liberaloide”. Você também mudou, principalmente depois do seu apoio ao impeachment de Dilma Rousseff?

FN: Sim, hoje me considero principalmente um progressista, mas antes era um conservador sem nem saber. A coisa só começou a mudar quando passei a ler mais sobre política e abri os olhos para as coisas que eu defendia, entendendo como de fato é a realidade brasileira. Basicamente, eu era um liberal por osmose.

Por ter sido pobre e ter dado certo no YouTube, achei que todo mundo podia fazer o mesmo e empreender, o problema seriam as amarras do Estado. Mas é ilusão pensar que isso é a solução, que o trabalhador de nível mais baixo vai dar certo como empresário. Digo que sou um social-democrata, mas no sentido original da palavra, e não nessa cara estúpida que o PSDB deu por aqui. Acredito na participação atuante do Estado na economia, no papel empreendedor do Estado e acho que o empresário tem seu lugar nisso também. Tudo isso associado às liberdades individuais de regulamentação das drogas, legalização do aborto, questões identitárias etc.

“Os algoritmos da internet são a maior ameaça à democracia”

CC: Você tornou-se um crítico do governo Bolsonaro em quase todas as frentes, todos os dias. Qual seria a característica mais nociva do ex-capitão?

FN: É difícil escolher um único ponto, mas a baixíssima inteligência do presidente é um componente importantíssimo, pois provoca um efeito devastador na sociedade: o negacionismo. Ele diz que o Pantanal não está pegando fogo e que a pandemia é só uma “gripezinha”. Nega o óbvio e se posiciona contra a ciência, as entidades e os direitos humanos.

É o negacionismo que abre o caminho para a identificação dos seus seguidores com o Olavo de Carvalho e dá a ele a chance de influir na escolha de ministros. É o negacionismo que faz a gente ter aquele ser inclassificável na presidência da Fundação Palmares. Esse negacionismo está destruindo vários países, não só o Brasil, com o apoio dos algoritmos. Fora isso, também me preocupo muito com a economia nas mãos do Paulo Guedes. Ele vem de uma escola neoliberal ultrapassada e foi posto como aquele capaz de fazer o País decolar, quando na verdade está quebrando o Brasil.

CC: Ainda assim o apoio a Bolsonaro cresceu. A radicalização do discurso ajuda ou atrapalha?

FN: Muita gente associa o aumento da popularidade do Bolsonaro ao auxílio emergencial. Concordo. Quando o pagamento for interrompido, acredito em uma queda do nível de apoio, ainda que não até o ponto mais baixo anterior. Infelizmente, essa popularidade gerada pelo auxílio explicita uma falta de senso político do nosso povo, que acha que o dinheiro vem do Bolsonaro, quando na verdade não vem. Seu governo defendia o pagamento de 200 reais, não de 600. Além disso, esquecemos que, fora da nossa bolha, o Brasil tem uma parcela significativa de cidadãos que gostam muito e se realizam no discurso chucro, violento e antipolítico do Bolsonaro.

De início, pensamos que essa radicalização é negativa, mas esquecemos da falta de educação política do brasileiro em toda a sua história, o que gera uma sociedade que reage bem a esse tipo de violência. Então, quando aparece um presidente ignóbil, a raiva floresce e ele mantém seus apoiadores.

CC: No Rio de Janeiro, a disputa à prefeitura vive muitas reviravoltas, a começar pela desistência de Marcelo Freixo, que não conseguiu montar uma frente ampla. Qual seria a saída?

FN: Foi uma decisão acertada do Freixo. Ele optou por continuar no Congresso. Chegamos, inclusive, a discutir, eu e ele, se a desistência seria uma boa opção, e eu me posicionei a favor. Mesmo se o Freixo ganhasse no Rio, creio que a atuação dele na Câmara dos Deputados é mais importante, por conta dos problemas enormes que temos no Legislativo.

A frente ampla, a união, é uma boa resposta, mas nosso maior partido de oposição toma decisões concentrado muito em si mesmo. Não nego a quantidade de coisas boas que o PT realizou, mas ao mesmo tempo há uma sequência de decisões horríveis, entre elas lançar uma candidatura a prefeito em São Paulo.

Se as intenções de voto mal passam de 2%, por que não apoiar o Guilherme Boulos desde o início? São Paulo é uma tradução de como o PT tem agido. Alimenta a expectativa de vencer as eleições em vez de apoiar alguém que tenha chances reais. O meu maior medo é a gente repetir em 2022 o que aconteceu em 2018. Do jeito que está, se for Bolsonaro e um candidato do PT para o segundo turno, vence o Bolsonaro novamente.

CC: Escolheu um candidato a prefeito no Rio? Pretende envolver-se de alguma maneira nas eleições?

FN: Costumo dizer que contra o Marcelo Crivella eu prefiro um orangotango, minha mesa, minha cadeira, ou o Matheus Babi, atacante do Botafogo, tanto faz. Não tem muito para onde fugirmos, é Crivella ou Eduardo Paes. O Paes não é meu prefeito dos sonhos, mas é a opção contra o Crivella, e no primeiro turno ao menos não pretendo apoiar ninguém. Mas a verdade é que não sei o que vai mudar a chave no Rio de Janeiro, com anos de corrupção extrema e governadores presos. Recebo bem os candidatos progressistas à prefeitura, mas a pergunta é: eles têm chance real de vencer? Se a Martha Rocha, terceira colocada nas pesquisas, tiver condição de tirar o Crivella do segundo turno, seria maneiro. Mas aí me pergunto: e se o PT tivesse apoiado a Martha Rocha em vez de lançar candidatura própria? Por que prefere não apoiar? Queria muito sentar com representantes do PT e entender melhor o que o partido está fazendo.

CC: O governo Bolsonaro está ganhando ou perdendo a batalha?

FN: É preciso reconhecer: estamos perdendo feio, estão nos dando uma surra. O reconhecimento de que este é um mau governo não está funcionando, a comunicação da oposição não existe ou é muito malfeita. Há um crescimento de pensamentos que excluem politicamente e jogam os cidadãos nos braços do bolsonarismo, temos representantes progressistas mais preocupados com sentimentos do que com a real situação do País.

Quando você tem um país à beira da ruína e o debate na esquerda é sobre o pronome neutro, o que o eleitor médio vai pensar? Veja, a discussão sobre o pronome neutro é superimportante e apoio que ela seja feita, mas agora é a hora de sermos raivosos por conta disso? A gente recusa-se a dar um passo para trás para dar dois à frente. A esquerda vai continuar debatendo o quê? O que vejo muitas vezes é silêncio ou abobrinha, indo para caminhos que não vão alterar nada na situação real.

CC: O pessoal jovem que alimenta a máquina de fake news utiliza da linguagem própria do humor on-line para atacar. A internet, nesse sentido, foi prejudicial para a democracia?

FN: A internet é o maior impulsionador da democracia que já existiu: grandes revoltas, como a Primavera Árabe, começaram nela. O grande vilão não é a internet, mas o algoritmo, e ele é a maior ameaça à democracia atualmente no mundo. Os algoritmos prezam a retenção e o que mais gera retenção é o radicalismo. Quando você radicaliza na sua rede social, alguém passa muito mais tempo navegando por ela do que dez mais moderadas.

O problema é que abrimos mão do discurso ético na internet, ninguém se importou muito em debater isso e as grandes empresas de tecnologia fizeram o que acharam melhor. O problema, no fim das contas, continua a ser o dinheiro. As redes sociais precisam continuar a ganhar dinheiro e preferem isso ao bem-estar dos usuários.

CC: Por que a influência de submundos extremistas na web só cresce e atrai mais gente?

FN: Temos uma ligação conspiratória em detrimento da verdade ultimamente e são muitos os fatores responsáveis. Li um livro, Sociedade do Cansaço, que diz muito sobre a depressão e o burnout que vivemos hoje. Saímos de uma sociedade da disciplina, sujeita sempre ao patrão, e partimos para uma em que cada um quer ser seu próprio empresário. Isso traz uma exigência com a qual não estávamos acostumados e os indivíduos começam a se deprimir, se boicotar e se isolar. O que é comum nos jovens extremistas é a solidão. É gente insegura, que busca um pertencimento e encontra no terraplanismo, por exemplo, mais do que uma teoria, um grupo de amigos. Ao mesmo tempo, vamos proibir esses ambientes extremistas na web? Vai chegar um ponto no qual teremos de vigiar tudo, o que pode ser ainda pior. A solução não está na punição, mas em criarmos a cultura de que é preciso educação digital.

CC: Quando decidiu se posicionar politicamente, tinha se cansado de ser “só um youtuber”?

FN: Em nenhum momento planejei virar um influenciador do debate público, só que no Twitter eu estava me posicionando. No Brasil de hoje há um silenciamento cultural. Os músicos, poetas, atores e artistas que antes eram a vanguarda política de repente não apareciam mais e, na ausência deles, o youtuber começou a ter espaço. As pessoas se identificaram com minha indignação e a mudança de opinião política que tive. Continuo amando fazer meus vídeos com conteúdo divertido para todos os públicos, mas claramente o YouTube, onde eles saem, e o Twitter, onde me posiciono, são dois mundos diferentes.

CC: Nossos influenciadores são culpados?

FN: Não sei como dormem os influenciadores que não ligam para o debate público, que não querem usar sua influência para potencializar o debate. Passou do limite a desculpa de que “não acompanha”, por isso creio que temos de cobrar esse posicionamento deles. Recebo críticas dizendo que isso é errado, porque há influenciadores que não podem abrir mão de patrocínio, segurança etc. Essas críticas até podiam fazer sentido num Brasil de antes, mas não neste de agora. Quando você tem um governo com esse nível de criminosos, não dá para relativizar. É como se esses influenciadores estivessem numa casa pegando fogo e se recusassem a pegar o extintor só porque acham pesado demais. Para isso só há dois nomes: irresponsabilidade ou alienação.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo