Sociedade

‘Falha’ em aplicativo permite uso anormal de patinetes elétricos no RJ

Sem condições de aderir ao serviço, jovens e crianças usam veículos previamente ‘ligados’

Foto: Victor Calcagno
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“Moço, você destrava um pra gente andar?”, disse o menino sem camisa, molhado de água salgada, com um patinete elétrico desligado entre as mãos. “É só entrar aí no seu celular, colocar o dinheiro e pronto, você libera?” Outros dois garotos da mesma idade, amigos do primeiro e com o mesmo tipo de veículo inutilizado entre os braços, chegaram perto, olharam com curiosidade e logo resolveram continuar a busca que faziam antes, aproximando-se de todos as patinetes que encontram no calçadão e espichando a cabeça em direção aos seus velocímetros, na esperança de que algum deles esteja aceso.

Meio-dia na Praia do Leme, zona sul do Rio, um domingo de sol após dias de chuva e tempo nublado, o que fez o já grande movimento no local, crescente nos últimos meses, aumentar ainda mais. Na ciclovia, bicicletas de aluguel, que há anos já fazem parte do cenário nessa porção da cidade, dividem o espaço com as mais recentes patinetes elétricas alugáveis, despejadas às centenas no calçadão – de uma ponta a outra da orla de Copacabana, foram contados cerca de 350 delas.

Basta alguns metros de caminhada para vê-las em todas as configurações possíveis: organizadas em fileira de frente aos quiosques e hotéis, derrubadas na areia, esquecidas no meio da ciclovia, utilizadas por turistas sorridentes, por casais no mesmo veículo, o que é proibido, ou por crianças em grupos, como os meninos no Leme.

No caso deles, no entanto, a necessidade de ter um smartphone e pagar a taxa comum de R$ 3 a cada desbloqueio mais o adicional de R$ 0,50 por minuto, fatores que seriam um impedimento numa situação comum a esses garotos que alegam não poder pagar, é contornada de duas formas. A primeira e preliminar, subir em um veículo destravado e empurrá-lo com a força dos pés, ainda que alguns deles emitam sinais sonoros que acusem a utilização sem desbloqueio. A segunda, objetivo principal dos pequenos, encontrar, por sorte, uma patinete que esteja por algum motivo ligada, e então subir e acelerar.

“Aqui a gente é igual piloto de fuga, moço, não temos medo nenhum não!”, disse o garoto sem camisa quando perguntado se não têm receio de se acidentar a 20 km/h, velocidade máxima atingida em menos de cinco segundos por esses veículos, o que já causou alguns acidentes fatais e fez a legislação carioca limitar por lei a aceleração a 12 km/h para iniciantes, além de proibir o uso das patinetes elétricas por menores de idade.

“O pequenininho que é a bala, é o que vai mais rápido”, comentou ainda, logo questionado por um amigo: “Mentira, pô, o grande é rapidão também!”, e começaram a discutir em tom de brincadeira. Todos vieram da Ilha do Governador, a cerca de 30 km do Leme, não têm mais de 13 anos e, como dizem, vêm a praia sempre.

Foto: Victor Calcagno

Explicam a estratégia: pegar uma patinete desligada e ir remando com o pé em direção a todos os modelos que encontram, auscultando o visor até que encontrem um ligado. Não demora para que o plano dê resultado e meninos na mesma missão sejam vistos dividindo o veículo com amigos, na busca de um deles, modelo que esteja funcionando, para cada. Alcançado o objetivo, passaram em grande número gritando para um amigo mais velho, que olha, ri, e grita de volta: “não faço isso, não, sou de maior e vocês de menor!”

A mesma cena é vista em toda orla da Zona Sul e o aspecto técnico que a possibilita vem da finalização das corridas. Todas as vezes que um usuário termina de utilizar a patinete elétrica, é preciso que ele encerre a sessão no app, de forma que o veículo volte a ficar travado. Há casos, no entanto, em que esse procedimento não é realizado corretamente, seja por instabilidade na rede ou mesmo por esquecimento.

Neste último cenário, inclusive, a utilização por outras pessoas pode acarretar em cobranças indevidas na conta da primeira, que ainda assim pode ser ressarcida, afirmam as duas empresas que proporcionam o serviço no Rio, a Lime e a Grow, responsável pelas patinetes Grin e Yellow. Não que os pequenos saibam, caso de Rita*, de 10 anos, moradora da comunidade do Pavão-Pavãozinho, que costuma acompanhar no calçadão a mãe, vendedora de caipirinhas e outras bebidas.

Na procura por uma patinete ligada já na outra ponta da orla durante o mesmo domingo, a menina teve que esticar os braços ao máximo para alcançar o guidão de uma delas quando finalmente encontrou um modelo operante.

“Minha mãe não fica preocupada de eu me machucar, porque sempre brinco com meu primo e meus amigos todas as vezes que a gente desce pra cá”, disse sorridente e acelerando em seguida. Antes, afirmou que não achava os veículos nada perigosos mesmo para uma criança da sua idade, mas apenas divertidos – ainda mais quando as patinetes são vistas em todo canto da praia e da ciclovia, alterando a dinâmica do espaço público e chamando a atenção de todos, quem pode e quem não pode pagar.

Tanto a Lime quanto a Grow, além de desaprovar o uso das patinetes por menores e afirmarem que o uso indevido do serviço é constantemente corrigido no app, asseguram que estão desenvolvendo alternativas para que seus serviços alcancem a todos. No caso da primeira, a utilização de “promocodes e incentivos”, além de “aulões” em que as pessoas podem aprender a utilizar os modelos de graça, são maneiras empreendidas para afirmar que “a micromobilidade é para todos”, segundo a empresa.

Internacionalmente, um programa da companhia também mira indivíduos com “baixo orçamento” e oferece descontos de 50%. Já a Grow afirma que a produção nacional de patinetes elétricas da empresa, que começará em breve, diminuirá os custos do serviço e que incentiva um programa de fidelidade que também abate os R$ 3 necessários a cada desbloqueio.

Ambas empresas recomendam as medidas de segurança determinadas pela legislação carioca, como o uso de capacetes e a velocidade máxima de 12 km/h para os considerados “iniciantes”, ou com até 45 minutos de uso. Para isso, a Lime disponibilizou dentro do app um “modo de treinamento”, que limita a aceleração, já a Grow afirma estar desenvolvendo a tecnologia e atualmente “o usuário se responsabiliza por utilizar a patinete dentro da velocidade permitida”.

Foto: Victor Calcagno

Mesmo para maiores da idade circulando em áreas recomendadas, os 20 km/h podem ser perigosos, caso do turista iraniano Farshad Asadi Banran, de 31 anos. Em lua de mel no Rio, Banran morreu atropelado no início do mês após cair na Avenida Atlântica, de patinete, vindo da ciclovia que percorre a praia em Copacabana. A Lime, cujo um dos modelos de patinete era usado pela vítima, afirma que se solidariza com a família e os amigos e está “fazendo o possível para compreender as causas do acidente”.

Não demorou muito até que Rita passasse de novo, dessa vez na direção oposta, aproveitando enquanto sua patinete não desligava. Depois de um período, o sistema invariavelmente entende que a corrida deve ser finalizada corretamente, o que pode acontecer a qualquer momento e acabar com a brincadeira. Como os veículos podem ser deixados em qualquer lugar, diferente das bicicletas de aluguel, que devem ser depositadas em estações específicas, bastava procurar uma nova patinete assim que a dela apagasse. No caso da garota, que passou acenando, era preciso exibir o veículo ainda operante aos amigos antes que isso acontecesse.

*Nome fictício para preservar a identidade

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