Sociedade

Exigir abstinência no combate ao crack é equívoco, aponta relatório

Estudo também sugere que moradia é essencial na luta contra o vício. Em São Paulo, Doria deve exigir teste antidoping em troca de domicílio

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Os programas de combate ao crack têm mais chances de sucesso quando não exigem abstinência de quem consome a droga. Essa é umas das conclusões a que chegou o relatório Crack: Reduzir Danos – Lições Brasileiras de Saúde, Segurança e Cidadania, que será lançado na terça-feira 31 pela Open Society Foundations (OSF).

O documento compila dados de pesquisas a respeito dos programas De Braços Abertos, da Prefeitura de São Paulo, e Atitude, do governo de Pernambuco, e traz ainda a experiência da ONG Redes da Maré, do Rio de Janeiro, que traçou o perfil da população em situação de rua instalada em uma região específica do Complexo da Maré onde o uso de drogas é visível, a Rua Flávia Farnese.

Os projetos têm, em comum, uma abordagem pautada pelo respeito aos direitos humanos, com baixa exigência para o acolhimento dos usuários de drogas.

Em São Paulo, embora diversas entidades já tenham manifestado apoio ao De Braços Abertos, o modelo desenvolvido pela gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT) parece estar com os dias contados. Tão logo tomou posse, o prefeito João Doria (PSDB) anunciou a criação de um novo programa, batizado de Redenção, previsto para abril – até lá, as ações do programa petista estão mantidas.

De acordo com o secretário municipal de Saúde, Wilson Pollara, o Redenção vai exigir que os usuários se submetam a testes antidoping frequentes para ter direito à moradia assistida.

Ao não exigir abstinência para a oferta de residência, o De Braços Abertos utiliza o modelo conhecido internacionalmente como “Housing First” (moradia antes), que entende a oferta de moradia permanente e estável como estratégia fundamental para a ressocialização dos cidadãos em situação de rua.

Tal conceito é oposto à ideia de “Treatment First” (tratamento antes), segundo a qual só depois que o usuário estiver engajado em um tratamento contra o abuso de drogas ele estará “qualificado” para receber um teto.

Secretária da Assistência Social na gestão Haddad, Luciana Temer afirma que garantir moradia a usuários de crack em situação de rua é parte fundamental do processo de resgate da autoestima. “O princípio do programa é: eu cuido de você, e você começa a cuidar de você”, diz.

Em 2014, a então secretária viajou a Amsterdã (Holanda) para conhecer iniciativas de combate ao abuso de drogas. “O programa de redução de danos existe há 20 anos em Amsterdã. No início houve muita resistência, mas hoje o projeto está completamente assimilado, por conta dos benefícios que proporcionou. No mundo inteiro há um repensar de como enfrentar o uso abusivo de drogas.”

A pesquisa realizada com 80 beneficiários do De Braços Abertos constatou que mais de 65% afirmam ter reduzido o consumo de crack. A conclusão do levantamento, conduzido em 2015 pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas, é que o acesso a direitos fundamentais reforça a autonomia do cidadão para desenvolver rotinas mais saudáveis. 

O relatório foi escrito por Sarah Evans, coordenadora sênior do Programa de Saúde Pública da Open Society. No documento, Evans afirma que as abordagens de redução de danos desenvolvidas em São Paulo, Pernambuco e Rio de Janeiro “apresentaram resultados positivos para os usuários e as comunidades em que estão inseridos” e “já abrem caminhos e apontam soluções nacionais para lidar com pessoas em situação de rua que usam crack”.

O documento ainda critica políticas pautadas em repressão, encarceramento, internações e remoções forçadas, que marginalizam ainda mais os cidadãos ao não tratar o crack como problema social. Como exemplo de tentativas de “higienismo social” fracassadas, o relatório cita a Operação Limpeza (2005), a Operação Dignidade (2007) e a Operação Sufoco (2012), ações policiais realizadas na região conhecida como Cracolândia, em São Paulo.

“Essas ações repressivas fracassaram porque não atingiram as raízes dos problemas sociais que levaram ao surgimento das cracolândias e que seguem as alimentando nos dias de hoje. O erro foi concentrar esforços apenas sobre os territórios e desconsiderar os indivíduos que ali vivem”, diz o documento.

A cena de consumo de drogas que se consolidou na Maré surgiu dessa forma, a partir de operações policiais e remoções forçadas. Com o avanço das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Complexo do Alemão, em Manguinhos e em Jacarezinho, na zona norte da capital fluminense, um grupo de usuários de crack passou a ocupar a Avenida Brasil, chamando a atenção da imprensa e das autoridades.

Em 2014, intervenções policiais fizeram com que a ‘cracolândia’ migrasse para a Maré – que nunca teve UPP –, em uma “terra de ninguém” localizada entre territórios dominados por grupos rivais: Comando Vermelho, Terceiro Comando e milícia. 

Na Rua Flávia Farnese vivem hoje cerca de 80 usuários de crack. Com o apoio do Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (Niac) da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CeSEC) da Universidade Candido Mendes, a ONG Redes da Maré iniciou um processo de aproximação com o grupo.

A partir de uma entrevista com 59 dos 80 usuários em situação de rua, verificou-se que, independentemente da cidade onde viva, essa população tem, no geral, um perfil socioeconômico parecido: são pessoas de baixa renda, com baixa escolaridade e extenso histórico de exclusão social.

A Redes da Maré buscou, então, uma parceria com a gestão do então prefeito Eduardo Paes (PMDB), mas a questão esbarrou em um “obstáculo moral”.

“A gente queria criar um espaço de convivência, para tirá-los da rua. Mas o que a gente ouviu foi o seguinte: ‘se vamos levá-los para dentro de um espaço, eles vão ter que parar de usar crack’”, conta Eliana Sousa Silva, coordenadora da ONG. “Essas pessoas demandam coisas muito básicas, mas a preocupação era se elas estavam ou não usando crack. Não conseguimos avançar.”

A não exigência de abstinência é apontada como um dos fatores responsáveis pelo êxito do projeto Atitude – Atenção Integral aos Usuários de Drogas e seus Familiares, criado em setembro de 2011 pelo governo de Pernambuco, durante a gestão de Eduardo Campos (PSB).

Como parte do Pacto pela Vida, programa que derrubou os índices de homicídio no Estado, um dos objetivos do Atitude é reduzir os índices de violência associados ao consumo de drogas, especialmente o crack. O programa é focado em usuários ameaçados, que estejam em situação de rua ou que tenham problemas na Justiça, a fim de evitar o encarceramento em massa. Aos beneficiários são oferecidos desde banho e refeições até aluguel social.

No levantamento sobre o Atitude, realizado em 2015 pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Política Pública de Segurança da Universidade Federal de Pernambuco (NEPS-UFPE), foram analisados os bancos de dados de quatro municípios atendidos (Recife, Caruaru, Jaboatão dos Guararapes e Cabo de Santo Agostinho, reunindo 5.714 usuários), além de 191 questionários e 30 entrevistas com beneficiários.

Dos que responderam ao questionário, 77% disseram se sentir protegidos pelo programa. A pesquisa também apontou que, embora a abstinência não fosse uma exigência, uma parcela dos beneficiários reduziu o consumo de crack e 36% afirmaram ter deixado de usar a droga. 

Para o professor do departamento de Sociologia da UFPE José Luiz Ratton, que coordenou a pesquisa, o Atitude tem tido êxito em proteger os cidadãos. “É um programa que tenta trabalhar com uma perspectiva de redução de danos, ao mesmo tempo em que acolhe e oferece proteção a pessoas em situação de altíssima vulnerabilidade à violência.”

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