Sociedade

Estudo indica movimento global de reações aos abusos de poder

Relatório da Human Rigths Watch mapeou violações dos direitos humanos em 90 países

Em comício no Acre, Jair Bolsonaro afirmou que iria "metralhar a petralhada"
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“De certa forma, este é um período sombrio para os direitos humanos. Porém, enquanto autocratas e violadores de direitos dominam as manchetes, os defensores dos direitos humanos, da democracia e do Estado de direito também ganham força. Os mesmos populistas que espalham ódio e intolerância estimulam uma resistência que continua a vencer sua parte nas batalhas. A vitória em qualquer caso nunca é garantida, mas ocorreu com suficiente frequência no ano passado para sugerir que os excessos do regime autocrático estão alimentando um poderoso contra-ataque”, afirma o diretor executivo da Human Rights Watch, Kenneth Roth.

A perspectiva otimista de Roth vem do relatório mundial sobre violações dos direitos humanos em 90 países, incluindo o Brasil, feito pela organização e revelado nesta quinta-feira (17)

O diretor chama atenção para os abusos das chamadas autocracias, regimes políticos autoritários que emergem das democracias, e que têm articulado como método demonizar “minorias vulneráveis, e utilizando-as como bodes expiatórios para conquistar o apoio popular”.

O presidente Jair Bolsonaro é mencionado como exemplo de autocrata em ascensão apesar de sofrer resistência, e é considerado “um homem que, com grande risco à segurança pública, encoraja abertamente o uso de força letal por policiais e membros das forças armadas em um país já devastado por uma alta taxa de homicídios causadas por forças policiais e mais de 60.000 homicídios por ano”, aponta o relatório.

Ainda que esses políticos se utilizem do próprio sistema democrático para atacar direitos sociais, foi dentro do sistema representativo (das eleições) que vieram as respostas mais contundentes aos abusos, segundo o estudo.

“Eleitores norte-americanos nas eleições de meio de mandato para a Câmara pareceram repreender as políticas desagregadoras e contra direitos do presidente Trump”, argumenta Roth.

“Quando governos vêem vantagem política ou econômica na violação de direitos, os defensores de direitos humanos ainda têm espaço para aumentar o preço político do abuso e mudar o cálculo do custo-benefício para convencer os mesmos governos de que a repressão não compensa”, destaca o diretor da organização, umas das mais respeitadas do mundo.

A CartaCapital reuniu as principais violações aos direitos humanos identificadas no Brasil pela Human Rights Watch. Confira abaixo.

Segurança Pública e Conduta Policial

O relatório afirma que o Ministério Público apresentou denúncia em apenas dois em cada dez casos de homicídio no Brasil. Dados de fontes oficiais compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que 367 policiais em serviço e de folga foram mortos em 2017.

Policiais em serviço e fora de serviço mataram 5.144 pessoas em 2017, 20% a mais do que em 2016.

Em São Paulo, o ouvidor da polícia examinou centenas de homicídios cometidos por policiais em 2017, concluindo que houve uso excessivo da força em três quartos dos casos, por vezes contra pessoas desarmadas.

Em fevereiro, o então presidente Michel Temer transferiu às Forças Armadas a responsabilidade pela segurança pública e pelo sistema carcerário no estado do Rio de Janeiro até dezembro de 2018, e declarou como objetivo melhorar a segurança dos cidadãos.

No entanto, de março a outubro, a letalidade violenta aumentou 2% no estado  do Rio de Janeiro, enquanto os homicídios cometidos pela polícia aumentaram 44%, em comparação com o mesmo período de 2017.

Entre as vítimas de homicídio no Rio estavam a vereadora e defensora dos direitos humanos Marielle Franco e o seu motorista Anderson Gomes.

Condições carcerárias, tortura e maus tratos

Em junho de 2016, mais de 726.000 adultos estavam atrás das grades em estabelecimentos prisionais com capacidade máxima para metade desse número, segundo dados do Ministério da Justiça. O governo federal estimava que até o final de 2018 haveria quase 842 mil presos.

Leia também: Quem tem medo dos direitos humanos?

A superlotação e a falta de pessoal tornam impossível que as autoridades prisionais mantenham o controle de muitas prisões, deixando os presos vulneráveis à violência e ao recrutamento por facções.

Menos de 15% dos presos têm acesso a oportunidades educacionais ou de trabalho, e os serviços de saúde são frequentemente deficientes.

Em fevereiro, o Supremo Tribunal Federal determinou que mulheres grávidas, mães de crianças de até 12 anos ou de crianças e adultos com deficiência, presas preventivamente por crimes não violentos, devem aguardar julgamento sob prisão domiciliar, exceto em “situações excepcionalíssimas”.

Embora o Ministério da Justiça tenha estimado que a decisão poderia ser aplicada a 10.693 mulheres encarceradas, os juízes concederam prisão domiciliar a apenas 426 até 1º de maio, prazo estabelecido pela Suprema Corte para cumprimento da decisão. Juízes fizeram uso generalizado das “situações excepcionalíssimas” para manter as mulheres na cadeia.

Os centros socioeducativos no Brasil abrigavam 24.345 crianças e adolescentes em conflito com a lei em janeiro de 2018, de acordo com dados oficiais.

A polícia indiciou 13 servidores por homicídio culposo por negligência, em função da demora para começar a apagar um incêndio que matou 10 crianças em um centro socioeducativo em Goiânia em maio.

O Ministério Público Federal culpou as “ações e omissões” das autoridades estaduais pela morte de sete adolescentes em 2017 e 2018 no Ceará.

Em um estudo de 2018 do Instituto Sou da Paz, uma organização sem fins lucrativos, 90 por cento das crianças e adolescentes detidos no estado de São Paulo afirmaram que foram maltratados pela polícia militar durante a prisão, e 25 por cento disseram que foram agredidos por agentes socioeducativos.

Liberdade de expressão

Mais de 140 repórteres foram intimidados, ameaçados e, em alguns casos, fisicamente agredidos durante a cobertura das eleições, concluiu a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).

Depois de vencer a eleição, Bolsonaro disse que cortaria verba publicitária para veículos de imprensa que se comportassem de forma “indigna”.

Durante a campanha, juízes de tribunais eleitorais ordenaram que universidades ao redor do país reprimissem o que consideraram “propaganda eleitoral irregular”, incluindo um evento contra o fascismo e publicações “em defesa da democracia”. Em uma decisão unânime, o Supremo Tribunal Federal derrubou essas restrições por violarem a liberdade de expressão.

A decisão ocorreu em um cenário em que Bolsonaro e seus aliados buscavam aprovar um projeto de lei que proibiria professores de “promover” suas próprias opiniões nas salas de aula ou de usar os termos “gênero” ou “orientação sexual”, e determinaria que escolas dessem preferência a “valores de ordem familiar” na educação moral, sexual e religiosa.

Policiais militares enfrentam amplas restrições a sua própria liberdade de expressão. Regulamentos disciplinares estaduais e o Código Penal Militar estabelecem expulsão da força policial e penas de prisão a policiais que cometem transgressões, incluindo criticar um superior ou uma decisão do governo.

Ato contra Judith Butler em São Paulo

Direitos das mulheres e das meninas

No final de 2017, mais de 1,2 milhão de casos de violência doméstica estavam pendentes nos tribunais. O Brasil ainda não implementou de forma efetiva e completa a legislação contra a violência doméstica, a lei “Maria da Penha” de 2006.

Leia também: As igrejas e a superação da ignorância quanto aos direitos humanos

Dados oficiais mostram que 23 abrigos que acolhiam mulheres e crianças com necessidade de proteção urgente foram fechados em 2017 devido a cortes no orçamento. Apenas 74 abrigos permanecem abertos em um país com mais de 200 milhões de habitantes.

Mantida impune, a violência doméstica costuma escalar e pode levar à morte.

Em 2017, último ano para o qual há dados disponíveis, 4.539 mulheres foram assassinadas no Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A polícia registrou 1.133 dos casos como feminicídio, definido pela legislação brasileira como o assassinato de uma mulher “por razões da condição de sexo feminino”.

O aborto é legal no Brasil apenas em casos de estupro, quando necessário para salvar a vida da mulher, ou quando o feto sofre de anencefalia, um transtorno cerebral congênito fatal.

Mulheres e meninas que realizam abortos clandestinos não apenas se expõem a riscos de lesões e de morte, mas também estão sujeitas a penas de até três anos de  prisão, enquanto pessoas que realizam esses procedimentos podem enfrentar até quatro anos de cadeia.

Um surto do vírus zika em 2015-2016 teve impactos particularmente danosos a mulheres e meninas. Quando uma mulher grávida é infectada, o zika pode causar complicações no desenvolvimento fetal, inclusive no cérebro.

Dados do Ministério da Saúde de junho mostraram que dois terços das crianças nascidas com síndrome do zika não receberam estimulação precoce especializada, a qual é crucial para o seu desenvolvimento.

Migrantes e refugiados

Dados do ACNUR mostram que, entre janeiro de 2014 e abril de 2018, 25.311 venezuelanos solicitaram autorização de residência no Brasil. De janeiro de 2014 a julho de 2018, 57.575 solicitaram refúgio. O Brasil concedeu refúgio a 14 venezuelanos em 2016 e negou a 28.

Em outubro, o presidente do Comitê Nacional para os Refugiados no Brasil (CONARE) disse à Human Rights Watch que o comitê não tomou nenhuma decisão sobre pedidos de refúgio de venezuelanos “nos últimos anos”.

Até outubro, o governo federal e o ACNUR abriram 13 abrigos no estado de Roraima que acolhiam mais de 5.500 venezuelanos. O governo tem demorado para integrá-los à sociedade; a maioria das crianças em abrigos não frequenta a escola e muitos venezuelanos ainda não têm documentos.

Até novembro, mais de 3.100 venezuelanos haviam se beneficiado de um programa federal de transferência para outros estados. Em março, um grupo de brasileiros expulsou venezuelanos de um abrigo improvisado em Roraima, o estado brasileiro que faz fronteira com a Venezuela, e queimou seus pertences; em agosto, depois de outro ataque, uma multidão empurrou cerca de 1.200 venezuelanos para o outro lado da fronteira enquanto a polícia olhava, sem prender ninguém; e em setembro vários brasileiros lincharam um venezuelano acusado de assassinato.

Entre 4 e 5 mil venezuelanos estão vivendo em abrigos em Roraima

Orientação sexual e de gênero

Em setembro de 2017, um juiz federal anulou uma decisão de 1999 do Conselho Federal de Psicologia que proibia a terapia de conversão, que busca mudar a orientação sexual ou a identidade de gênero de um indivíduo.

O Conselho recorreu a um tribunal federal e ao Supremo Tribunal Federal, mas até a elaboração deste relatório os julgamentos estavam pendentes.

Em março, o Supremo Tribunal Federal determinou que o poder público não pode mais exigir cirurgias de mudança de sexo ou autorizações judiciais para que pessoas transgênero alterem o nome e o gênero nos documentos de identidade.

A imprensa brasileira reportou dezenas de casos de ameaças e ataques contra lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros durante a campanha presidencial, muitos dos quais supostamente promovidos por apoiadores de Bolsonaro.

Direitos trabalhistas

De janeiro a outubro, o Ministério do Trabalho identificou 1.246 casos de trabalhadores sujeitos a condições abusivas que, de acordo com a lei brasileira, são análogas à escravidão, como trabalho forçado ou condições degradantes de trabalho.

Em resposta a uma decisão judicial, o Ministério do Trabalho publicou em abril uma lista de 166 empregadores sobre os quais havia imposto penalidades desde 2010 por empregar pessoas em condições de trabalho análogas à escravidão.

Conflitos ligados à terra

Em 2017, 71 pessoas envolvidas em conflitos de terra morreram de forma violenta, o maior número desde 2003, informou a Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica.

Em março, o então presidente Temer editou três decretos implementando uma lei federal de 2017 que concederia títulos a pessoas ocupando terras de maneira ilegal.

Organizações ambientais, do campo e de sem-terra argumentam que a lei beneficia grandes proprietários de terra e madeireiros ilegais. A Procuradoria-Geral da República alertou que poderia aumentar o número de mortes como resultado de conflitos de terra. Três ações pendentes no Supremo Tribunal pedem que seja declarada a inconstitucionalidade desta lei.

Política Externa

Uma coalizão liderada pela Arábia Saudita usou munições cluster de fabricação brasileira no Iêmen em pelo menos quatro ocasiões nos últimos anos. As munições cluster são proibidas por um tratado de 2008, reconhecido por 104 países, mas não pelo Brasil.

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