Sociedade

Estudo financiado pela Coca-Cola contradiz ideia antes promovida pela empresa

A pesquisa ressalta que obesidade é fruto da soma de hábitos não saudáveis, e que ser ativo não pode compensar uma dieta ruim

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Por Mariana Lenharo 

A Coca-Cola tem um histórico de financiar pesquisas na área de saúde pública e tentar influenciar seus resultados para apontar o sedentarismo como o principal responsável pelos elevados índices de obesidade da população. Assim, ela espera desviar o foco do seu principal produto: as bebidas açucaradas. 

Por isso, chama a atenção uma frase de uma pesquisa recente que recebeu financiamento da Coca-Cola, chamada de Estudo Latino-americano de Nutrição e Saúde (ELANS). A frase diz que os achados da pesquisa contradizem a ideia de que ser ativo pode ser mais importante do que ter uma dieta saudável para manter o peso. A ironia é que essa ideia veio justamente de um estudo anterior, também apoiado pela empresa.

Imagens: Reprodução/National Center for Biotechnology Information

Isso significa que a Coca-Cola está deixando de exercer tanta influência sobre as pesquisas que financia? Ou que a empresa desistiu de promover o sedentarismo como o principal inimigo da obesidade? A reportagem do Bocado ouviu especialistas em saúde pública, nutrição e conflitos de interesse para tentar interpretar esses resultados à luz desse histórico problemático. 

Pesquisa ressalta que obesidade é fruto da soma de hábitos não saudáveis, como sedentarismo e má alimentação

Para os especialistas consultados, a pesquisa tem “um desenho bem feito”, mas apresenta limitações na metodologia. Por exemplo: o estudo considera o consumo de 4,5 copos de bebidas açucaradas por dia ou por semana como adequado, sem deixar claro o período avaliado – o parâmetro, mesmo semanal, é considerado alto de acordo com as recomendações de consumo de açúcar da OMS. 

Outro complicador é a falta de transparência da Coca-Cola, que não informou o valor investido na pesquisa. Apesar de ter prometido revelar pagamentos a estudos desse tipo, após um escândalo em 2015, seus relatórios de transparência, publicados no site e consultados em julho de 2021, não eram atualizados desde 2019. Procurada, a empresa disse que mantém seu compromisso de transparência – após o contato da reportagem, os relatórios foram atualizados no site. 

Imagem: Reprodução/Coca-Cola

O dinheiro da Coca-Cola nas pesquisas

Ao ler os resultados de um estudo científico financiado por qualquer indústria, é preciso levar em conta que potenciais conflitos de interesse podem influenciar, de maneira direta ou indireta, as conclusões da pesquisa. Isso é especialmente comum na área de nutrição e saúde, segundo a nutricionista Sophie Deram, doutora pelo Departamento de Endocrinologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). “Quando um profissional é pago pela indústria e pesquisa um assunto, mesmo que ele declare que isso não irá influenciá-lo, sabemos pelo trabalho da Marion Nestle que provavelmente influenciará”, diz.

A pesquisadora Marion Nestle, professora emérita da Universidade de Nova York, dedicou à Coca-Cola um capítulo inteiro de seu livro Uma verdade indigesta: Como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos. Lá ela descreve como a Coca passou a financiar, a partir dos anos 2000, diversos estudos na área de saúde que, de maneira geral, concluíam que a atividade física é mais efetiva que a dieta no controle de peso.

Uma das iniciativas financiadas foi a Rede Global de Balanço Energético (GEBN, na sigla em inglês). O grupo era composto por cientistas proeminentes que defendiam que a obesidade não estava tão relacionada ao que as pessoas comiam e bebiam, mas à falta de exercício físico. “O que este grupo queria instigar era uma série de investigações sobre o conceito de equilíbrio energético, ao qual se pode chegar através do exercício”, diz Paulo Serôdio, pesquisador da Universidade de Barcelona e autor de vários estudos que avaliaram a relação da Coca-Cola com a academia. “A ideia é: não importa o que as pessoas comem. Desde que elas façam exercício físico, podem gastar essas calorias e voltar ao equilíbrio, assim não ganham peso.”

Apesar de robusto, segundo especialistas, o estudo tem falhas e considera normal o consumo de 4,5 copos de bebidas açucaradas por dia ou por semana, sem deixar claro o período avaliado

O financiamento da Coca-Cola à iniciativa e a influência da empresa sobre o grupo vieram à tona em uma série de reportagens publicadas a partir de agosto de 2015, pelo jornal americano The New York Times. Depois disso, Serôdio e seus colegas analisaram mais de 18 mil páginas de emails trocados entre a Coca e pesquisadores da Universidade de West Virginia e da Universidade de Colorado, principais instituições da GEBN. A correspondência revelou que a empresa tentou minimizar a percepção pública de seu papel na rede e usar os pesquisadores do grupo para propagar mensagens favoráveis à indústria.

O escândalo, revelado pela imprensa, culminou com a extinção do grupo em dezembro daquele ano. Na época, a Coca-Cola anunciou esforços para melhorar a sua transparência no financiamento de pesquisas e lançou novos princípios para nortear essa atividade, incluindo que a empresa não bancaria mais de 50% dos custos de um estudo.

Outra grande aposta da Coca foi o Estudo Internacional de Obesidade, Estilo de Vida e Ambiente na Infância (ISCOLE, na sigla em inglês). Entre 2010 e 2014, o programa recebeu US$ 6,4 milhões da empresa. Este é justamente o estudo que destacava o sedentarismo como principal fator relacionado à obesidade.

Analisando os resultados

Finalmente, a empresa concedeu fundos para o ELANS, que recebeu ainda recursos de universidades, instituições privadas e as filiais latino-americanas do International Life Sciences Institute (ILSI) – uma entidade ligada à indústria, que tem buscado influenciar a agenda regulatória de saúde na América Latina.

Nos últimos anos, o ELANS teve vários resultados publicados em artigos que se concentraram nos dados de consumo de grupos alimentares, principais fontes de energia na dieta dos participantes, diversidade e qualidade da dieta e atividade física e sedentarismo.

A publicação mais recente faz uma análise conjunta de fatores que ocorrem simultaneamente nos participantes, incluindo dieta, consumo de bebidas açucaradas, consumo de álcool e comportamento sedentário. O estudo avaliou dados de 9.218 indivíduos da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Peru e Venezuela.

Empresa não informa valor investido, apesar de compromisso público de transparência 

A conclusão geral é que comportamentos não saudáveis como sedentarismo e consumo de bebidas açucaradas frequentemente eram observados em conjunto nos jovens e adultos estudados. A recomendação é que políticas públicas e estratégias de mudança comportamental devem ter como alvo o sedentarismo, as dietas não saudáveis e o consumo de bebidas açucaradas e álcool.

Sophie Deram, da Faculdade de Medicina da USP, observa que é extremamente difícil conseguir financiamento para pesquisas como essa. “É um estudo elegante, feito em muitos países, com milhares de pessoas avaliadas e com um desenho bem feito.” Para a pesquisadora, é importante não descartar esse tipo de investigação apenas porque foi financiada pela indústria.

“Mas temos que olhar com um pouco de crítica e perceber que é um estudo escrito em 2021 que nem menciona a palavra ultraprocessado. Como se essa classificação do Guia Alimentar para a População Brasileira não tivesse sido considerada”, comenta Deram. Ainda que a metodologia do estudo tenha sido desenvolvida antes da publicação da nova versão do guia, Deram acredita que seria pertinente mencioná-la na discussão. Ela observa que o guia do Ministério da Saúde, elaborado em parceria com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens-USP), é pioneiro por não focar na questão das calorias, mas sim no grau de processamento. 

A escolha de se avaliar a coocorrência de comportamentos de risco para a saúde faz sentido se levarmos em conta que a obesidade e as doenças crônicas não-transmissíveis decorrem de múltiplos fatores, observa a nutricionista Kamila Gabe, pesquisadora do Nupens e doutoranda em Nutrição e Saúde Pública pela USP.

“Investigar como esses múltiplos fatores ocorrem em conjunto é importante para entender o crescimento das taxas de obesidade e outras condições de saúde”, afirma Gabe. “Até porque esses comportamentos – sedentarismo, alimentação inadequada, entre outros – muitas vezes têm causas comuns como fatores políticos, ambientais, condições de trabalho, falta de tempo para ter uma alimentação adequada e praticar atividade física.”

Uma das limitações do estudo, na opinião de Gabe, é em relação à análise do consumo de bebidas açucaradas pela população. Para definir a quantidade de bebidas açucaradas considerada adequada, os pesquisadores somaram a quantidade que cada indivíduo reportou ter consumido semanalmente e, observando o consumo de toda a população, identificaram a mediana, que é o ponto que divide a amostra em duas: 50% terá consumido acima daquela quantidade e 50% terá consumido abaixo daquela quantidade. 

Desta forma, o ponto de corte que o estudo usou para estabelecer o consumo adequado foi de 4,5 copos de bebidas açucaradas. Gabe observa que o estudo não deixa claro se esse valor é diário ou semanal. Considerando que seja semanal, o que é mais plausível, isso daria 150 ml de refrigerante por dia, o que já equivaleria a 15 gramas de açúcar. Isso corresponde a 60% do máximo de açúcar recomendado pela OMS para uma dieta de 2000 calorias só em refrigerante. “Será que podemos chamar isso de consumo adequado?” questiona a pesquisadora.

Gabe afirma que isso tem implicação direta na interpretação dos resultados. “Como posso dizer que o consumo inadequado de bebida não é tão prevalente quanto o comportamento sedentário se os meus pontos de corte não são baseados numa recomendação adequada?”

Outro ponto passível de crítica é a escolha do indicador utilizado para considerar se a dieta estava adequada ou não. O estudo utilizou um indicador chamado Dietary Diversity Score (DDS). Esse indicador, explica Gabe, é baseado no número de grupos de alimentos consumidos pelo indivíduo num dado período. O estudo considerou como adequado quando o indivíduo consome pelo menos cinco grupos de alimentos daquela lista.

“O problema desse indicador baseado no número de grupos consumidos é que ele não é apropriado para estudar a relação entre alimentação e obesidade ou doenças crônicas não transmissíveis”, diz Gabe. “Ele foi um indicador muito pensado para se estudar doenças relacionadas à ausência de nutrientes.” Essa ferramenta não é sensível para distinguir a qualidade dos alimentos consumidos. Por exemplo, se a pessoa consumir pão branco de pacote, ela vai pontuar no grupo de cereais da mesma forma como se tivesse comido arroz.

Por causa dessas escolhas metodológicas inapropriadas, Gabe afirma que fica difícil interpretar os resultados do estudo. Serôdio, o pesquisador da Universidade de Barcelona que investigou a relação entre a Coca e a academia, observa que é complicado quantificar a potencial influência da indústria ao olhar para os resultados de estudos como esse. “É praticamente impossível dizermos que chegaram a um determinado resultado por influência da empresa.”

Ainda assim, Deram chama a atenção para o fato de as conclusões enfatizarem a questão dos comportamentos individuais. “A indústria tem gostado de falar sobre comportamento, entregando a responsabilidade ao indivíduo, que deveria mudar seu comportamento não saudável”, diz Deram. “Quando a gente sabe que o próprio meio propicia esse consumo, a oferta da indústria é extremamente abundante e o cérebro fica sequestrado pelos alimentos ricos em gordura e açúcar.”

Foto: Adobe Stock

Gabe tem uma opinião similar: “O cuidado que a gente precisa ter ao interpretar e discutir os resultados é entender quais fatores externos levam as pessoas a aderirem a esse tipo de comportamento. E, assim, reivindicar políticas públicas que facilitem a adoção de modos de vida saudáveis, como a política de taxação das bebidas açucaradas e a melhora dos preços de alimentos saudáveis.”

E o fato de o artigo expressamente contradizer o estudo ISCOLE, também financiado pela Coca-Cola? Seria um indicativo de mudança na interferência da Coca-Cola nos estudos que financia?  “Eu diria que esse estudo concluiu que a atividade física é importante [para a saúde], mas talvez menos importante do que o alegado por Katzmarzyk et al [autores do ISCOLE]”, afirma Marion Nestle. 

“Mesmo pesquisadores financiados pela indústria têm sido livres para interpretar os dados como acham melhor. Minha principal observação sobre pesquisas financiadas pela indústria é que os pesquisadores raramente vão reconhecer como o financiamento da indústria influencia sua pesquisa”, diz a pesquisadora.

A resposta da Coca

Procurada pela reportagem, a Coca-Cola não revelou o valor do financiamento para o ELANS. A empresa afirmou, por meio de nota, que o pagamento se deu entre 2014 e 2017 e que o grant original foi dado antes do compromisso de transparência, bem como do lançamento dos novos princípios norteadores de financiamento de 2016. “Porque os grants incluíram pagamentos anteriores ao nosso compromisso de transparência e foram concedidos a organizações de diferentes países da América Latina, não temos detalhes disponíveis para compartilhar a respeito do financiamento”, diz a nota.

 

A empresa afirma ainda que mantém seu compromisso com os relatórios de transparência, publicados no seu site. “Continuamos atualizando esses relatórios conforme apropriado.” Apesar disso, as atualizações mais recentes ao relatório eram de 2019, quando a Coca-Cola foi consultada pela reportagem, em julho de 2021. Questionada se não patrocinou estudos em 2020 e 2021, a empresa não respondeu. Uma busca rápida na plataforma Web of Science feita por Serôdio durante sua entrevista em agosto mostrou que, desde o início de 2020, 91 artigos publicados declaram terem sido financiados pela Coca-Cola, mas não é possível saber a data em que esses recursos foram concedidos. Após o contato da reportagem, os relatórios foram atualizados no site.

Um dos coordenadores do ELANS é o pesquisador Mauro Fisberg, ligado ao Instituto PENSI. Procurado, ele não respondeu aos contatos da reportagem. Mas, em entrevista anterior ao Joio, Fisberg contou sobre a fase de coleta de dados para o estudo, que estava então em curso. “São 12 mil casos avaliados entre adolescentes, adultos e sênior. É um estudo caríssimo. São amostras representativas, e amostra representativa é uma coisa complexa, especialmente em países grandes”, afirmou.

Na época, ele destacou a questão do papel do exercício físico na saúde. “Tem um gap mostrando que a obesidade se deve mais ao sedentarismo. É difícil fazer essa afirmação. Eu não gostaria. Mas os números mostram que a gente tem muito menos gente comendo mais do que deveria do que gente fazendo [pouca] atividade física.

O que especialistas dizem sobre estudo financiado pela Coca:

– Estudo acerta em avaliar a coocorrência de comportamentos de risco para a saúde e em citar consumo de bebidas açucaradas como um dos problemas

– Mas faz escolhas metodológicas questionáveis como:

  • Consumo de bebidas açucaradas considerado como adequado é muito alto
  • Indicador que determina se dieta é adequada não é o mais apropriado

– Determinar se resultados de um estudo foram influenciados pela empresa financiadora é quase impossível

– Ênfase em comportamentos individuais em vez de fatores externos, porém, pode sugerir viés 

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