As comunidades geraizeiras lutam pela regularização fundiária  diante o avanço da agricultura e mineração. Créditos: Natália Moraes

Sociedade

‘Esse território é nosso’: povos geraizeiros do Vale das Cancelas lutam para preservar suas tradições

No norte de Minas Gerais, mais de 70 comunidades tradicionais lutam pela regularização fundiária de suas terras, alvos da cobiça da monocultura e da mineração

As comunidades geraizeiras lutam pela regularização fundiária diante o avanço da agricultura e mineração. Créditos: Natália Moraes

“Nem que a coisa engrossa [sic], esse território é nosso”

No norte de Minas Gerais, uma das regiões mais pobres do estado, mais de 70 comunidades lutam para preservar suas tradições e territórios frente ao avanço da agricultura e a possível chegada de um novo projeto de mineração.

Os povos tradicionais geraizeiros, que ocupam o Vale das Cancelas há pelo menos 150 anos, acusam empresas que operam no local de se apropriarem indevidamente de suas terras, de não consultá-los diante a instalação de projetos e de não repararem os danos sociais e ambientais causados pela devastação.

Com o apoio de instituições que atuam pelos direitos das populações tradicionais, as comunidades têm se articulado para reaver seus direitos na Justiça. Lutam, principalmente, pela regularização fundiária das terras distribuídas em uma área de 228 mil hectares pelos municípios de Grão Mogol, Josenópolis e Padre Carvalho, que constituem o Vale das Cancelas.

O modo de vida geraizeiro floresceu em terras de uso comum, chamadas de livres ou soltas. O gado é criado solto, por toda a comunidade, bem como é comunitário o direito de plantas e alimentos. A partir dos anos 1920, amparada pela Lei de Terras, a elite local passou a reivindicar a titulação privada dessas terras livres. As primeiras empresas chegaram à região em meados da década de 70, sob o apoio da ditadura, através da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene.

Desde então, os geraizeiros tradicionais vivem sob uma grave insegurança jurídica.

“Antes das empresas chegarem a gente vivia tão em paz, tão tranquilo. Cê [sic] prantava [sic] suas coisinhas, colhia, hoje cê [sic] não consegue mais que veio o desmatamento, o lençol freático tá só descendo, sumindo, chove pouco, tá acabando o planeta terra”, conta Elci Gomes da Silva, morador da comunidade de Estreito. 

A insegurança afeta a saúde física e mental dos geraizeiros. Hoje, Elci faz uso de medicações para a pressão e o coração. A angústia se deve ao fato dele acompanhar, ao longo dos anos, a perda de suas terras e a redução de suas áreas produtivas, em função da chegada de empresas no território, como as ligadas à monocultura de eucalipto. 

“A gente deita na cama, cê [sic] fica pensando de onde é que tem pra poder pagar uma conta, fazer qualquer coisa, a gente perde o sono e cê [sic] acaba cada dia multiplicando, adoecendo mais.”

As empresas foram se instalando nas chapadas, áreas mais altas do território, utilizadas tradicionalmente para o plantio de mandioca, extrativismo, caça e criação do gado solto. Com grande parte das terras ocupadas pelas florestas de eucalipto, as famílias acabaram sendo ‘encurraladas’ nas áreas mais baixas do território, os vales, perdendo o acesso a boa parte de sua subsistência. Os geraizeiros também relatam dificuldade para conseguir água, já que as plantações impactaram a captação de água, e a perenidade de nascentes locais, diante um clima que já tende ao semi-árido.

Plantações de eucalipto recobrem boa parte das chapadas no Vale das Cancelas.

A situação contribuiu para o empobrecimento das famílias e as colocou em uma situação de insegurança alimentar, como conta Adair Pereira de Almeida, conhecido como Nenzão, e reconhecido como uma das lideranças das comunidades das Cancelas.

“Como o geraizeiro mora na beira dos córregos, embaixo, então aqui [na chapada] ele usa pra plantar as roças e soltar o gado, aí com essa restrição ele perde parte da sua economia, do seu modo de vida, da sua segurança alimentar”.

De lá para cá, o avanço sobre as terras foi expressivo. Em 2019, um levantamento via satélite do Movimento dos Atingidos por Barragens identificou que, no ano, 89.428 hectares estavam destinados ao monocultivo de eucalipto nos três municípios, sendo 61.327 dentro do território geraizeiro. Os dados mostram 61.989 hectares em Grão Mogol, 13.821 hectares em Padre Carvalho, e 13.618 em Josenópolis.

No estado de Minas Gerais, estima-se que 11 milhões de hectares de terras sejam consideradas como ‘devolutas’ pelo estado, ou seja, entendidas como terras públicas sem destinação pelo Poder Público e que em nenhum momento integraram o patrimônio de um particular, ainda que estejam irregularmente sob sua posse. Sob a lógica, as terras são negociadas via arrendamento e algumas associadas por usucapião, o que deixa os geraizeiros vulneráveis aos interesses privados e de gestões governamentais.

‘Como é que nóis vai viver?’

No início de junho, CartaCapital percorreu o Vale das Cancelas, acompanhando uma comitiva de direitos humanos, liderada pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos, e por instituições que apoiam a causa dos geraizeiros, caso da Fian Brasil, MAB e Coletivo Margarida Alves.

Na comunidade de Bosquinho, encravada em meio a trechos intransitáveis de estrada de terra, o casal Cristina Domingo da Silva e Ronez Evaristo de Souza detalhou a luta para manter com dignidade o modo de vida que mantêm há mais de 40 anos, na região onde viveram seus antepassados. Por lá, como em muitas outras casas do território, não há água encanada, luz e nem banheiro.

“Nos tempos dos meus pais, moça, nós plantava [sic] feijão, milho, plantava muita coisa, e aí hoje você não pode ter mais nada, plantar nada. A gente não mexe com fogo né, qualquer coisa que você vai fazer eles vem e fala que você tá desmatando, roçando, é desse jeito”, lamenta ela. 

Cristina relata dificuldades de manter o modo de vida após demarcação do Parque Estadual de Grão Mogol. Créditos: Natália Moraes

O temor de Cristina anuncia um outro problema que recai sobre os povos tradicionais da região, a demarcação do Parque Estadual de Grão Mogol, uma unidade de conservação integral que compreende 28,4 mil hectares, e também impossibilita o roçado, base da subsistência geraizeira. A área foi demarcada em 1998, via decreto estadual (39.906/1998). Os moradores denunciam, no entanto, que a delimitação, sob jurisdição do Instituto Estadual de Florestas (IEF), ligado à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, não levou em consideração a pré-existência das comunidades geraizeiras.

“Esse parque aí eles falam que nós estamos dentro da área do parque, mas é o contrário. Eles que invadiu [sic] as nossa áreas, o nosso terreno, porque eles demarcou [sic] lá e não reconheceu nós aqui dentro. A gente acha um abuso o que eles fizeram com nós aqui dentro. Nós não tem salário, nem eu, nem ela, é um dizer que a gente tem a aranha ‘veve’ [sic] é do que tece, se nós não tiver uma área pra nós plantar, como que nós vai [sic] viver?”, desabafa Ronez.

A Fian Brasil destaca que a demarcação do parque estadual criou “um processo de criminalização das práticas tradicionais dos grupos comunitários” mesmo daqueles que vivem no entorno do parque, considerado como zona de amortecimento e, portanto, sobre o qual incide ferrenha vigilância.

Jamais indenizadas pelas perdas derivadas da construção do parque, alerta a Fian, essas famílias não recebem cestas básicas, não podem ter energia elétrica e ainda correm o risco de serem multadas, por exemplo, se retirarem remédios do mato, madeira para fazer cercas para o gado ou mesmo água para beber.

Para o antropólogo João Batista de Almeida Costa, que conduz estudos sobre povos e comunidades tradicionais no norte de Minas, a demarcação do IEF impõe aos geraizeiros que se adequem a uma agricultura vinculada à indústria, descaracterizando o modo de vida tradicional.

“A agricultura aqui é rotação de área, só que quando eles [os geraizeiros] vão abrir uma área que já foi usada, vem multa. O IEF impõe para eles uma agricultura vinculada à indústria, com compra de adubos e insumos químicos. Quando há a prática deles, os insumos estão aqui dentro, via rotação de área, consorciamento de culturas. Isso é um direito constitucional que não está sendo respeitado”, diz o pesquisador com base no artigo 215 da Constituição que prevê, que o Estado garantirá a todos ‘o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais’.

Mineração: mais uma ameaça ronda o território geraizeiro

Há cerca de 15 anos, o território geraizeiro também passou a ser cobiçado pelo setor da mineração. Já em 2006, a empresa Sul Americana de Metais, a SAM, controlada pela empresa chinesa de investimentos Honbridge Holdings, sediada nas Ilhas Cayman e com escritório central em Hong Kong, iniciou estudos para viabilizar sua iniciativa que, até o momento, não alcançou as licenças ambientais necessárias – a licença prévia, a de instalação e a de operação.

Atualmente, a empresa pleiteia aprovar um projeto de extração de minério chamado Bloco 8 que prevê a construção de barragens de água, instalação de adutoras em rios e córregos, e duas barragens de rejeitos, que podem chegar a armazenar 845 milhões de metros cúbicos de resíduos, 17 vezes mais que a barragem que se rompeu em Mariana, em 2015.

O projeto teve outorga concedida pela Agência Nacional das Águas para retirar 51 milhões de metros cúbicos de água por ano da barragem de Irapé, situada no Rio Jequitinhonha. A quantidade de água gasta seria suficiente para abastecer uma cidade e meia de Montes Claros, que tem cerca de 400 mil habitantes e consome, em média, 30 milhões de metros cúbicos de água por ano.

A proposta da SAM, no entanto, já foi maior. A empresa apresentou inicialmente o Projeto Vale do Rio Pardo, que previa a construção do segundo maior mineroduto do mundo na região, com 482 quilômetros, para levar o minério extraído do Vale das Cancelas até o sul da Bahia, passando por 21 municípios, até chegar no porto de Ilhéus, onde então o material seria transportado ao destino final, a China. Só para esta operação,  era previsto o uso de 6,2 milhões de litros de água por hora, em uma região já propensa à desertificação pelo clima semi-árido, mas também pela operação de empresas ligadas aos eucaliptos.

O projeto inicial foi barrado em 2016 pela Diretoria de Licenciamento do Ibama que apontou ‘impactos negativos e riscos ambientais’. Em 2018, no entanto, o próprio governo, via Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), sugeriu ao órgão transferir para a esfera estadual o estudo sobre a viabilidade ambiental do projeto, bem como o licenciamento da mina, deixando na esfera federal somente a análise sobre o mineroduto. O pedido foi novamente negado pelo Ibama que defendeu a análise integral do projeto por ter abrangência em mais de um estado.

Depois disso, a mineradora fracionou a iniciativa chegando ao desenho do Bloco 8, que não cita o mineroduto. O modal, no entanto, não deixou de existir. Enquanto a SAM encaminhou o pedido de licenciamento do Bloco 8 à Semad, uma outra empresa associada da mineradora, a Lotus Brasil Comércio e Logística Ltda, encaminhou o pedido de análise do mineroduto ao Ibama. Especialistas e ativistas veem o desmembramento como uma manobra da empresa para facilitar a obtenção das licenças.

Comunidades podem deixar de existir

Caso a mineradora se instale, algumas comunidades podem deixar de existir justamente por estarem nas áreas pretendidas para a instalação das barragens, caso de Batalha, Córrego dos Vales, São Francisco e Lamarão.

Nesta última localidade, fica a casa de Dona Adelina Xavier de Morais, 83 anos, que vive ao lado dos filhos, e luta para não deixar o território. “Eu não tô vendendo essas terra aqui não, e nem comprando.”

A casa de dona Adelina Xavier, 83 anos, pode deixar de existir com a chegada do projeto Bloco 8.

A geraizeira lembra ainda da tragédia ocorrida na cidade de Mariana, em 2015, após o rompimento de uma barragem da Samarco, que levou à morte 19 pessoas.

“Cês [sic] são criminoso, cês matou um tanto de gente em Mariana, e lá morreu não foi um só não, ces [sic] deita e pensa o que cês fez em Mariana e em outro lugar”, diz, também em referência à tragédia posterior, em Brumadinho, em 2019, onde o rompimento de uma barragem da Vale deixou 272 mortos. Foi o maior desastre com barragens da década em todo o mundo.

Em 2020, o engenheiro florestal Hugo Henrique Cardoso de Salis mapeou 21 comunidades incrustadas em um raio de 10 quilômetros das barragens de rejeitos, o que as torna vulneráveis – quatro delas com mais gravidade – às atividades operacionais do projeto e em caso de falhas estruturais ou rompimento das barragens.

Segundo o engenheiro, há ainda uma contradição tendo em vista da lei 23.291/2010, que institui a política estadual de segurança de barragens – o que pode inviabilizar o licenciamento ambiental do projeto. “A lei estabelece uma área de 10 km, a partir da barragem, como zona de autossalvamento.”

Para além dos impactos à população, completa, as obras aumentarão a insegurança hídrica da região, dada a perda de vegetação natural e a exposição do solo. “Sem contar o aumento da quantidade de solos que podem ser arrastados para cursos d’água e assoreá-los, levando à perda total de rios ou ao comprometimento de sua capacidade volumétrica”, crava o especialista. “Todos esses impactos, cumulativos, começarão a ser sentidos assim que as operações começarem.”

A Sul Americana de Metais afirma que, a partir da construção de uma barragem de água no rio Vacarias, será possível, além de abastecer o projeto de mineração, disponibilizar água às comunidades locais em quantidade equivalente ao abastecimento de mais de 640 mil pessoas por dia.

O engenheiro Salis, contudo, não vê na barragem compensação ambiental. “Ao fazer as transposições ao Rio Vacarias, a empresa tira água de reservas hídricas naturais que, a longo prazo, terão suas recargas comprometidas, o que é especialmente preocupante em região semi-árida, com baixo volume pluviométrico”, explica, ao também questionar a promessa de abastecimento.

“Vejo com ressalvas. Falta transparência sobre a disponibilização de água às comunidades, como seria feito esse fornecimento. Essa operação certamente vai gerar custos e isso deve ser repassado em uma conta final, ou seja, cobranças não estão descartadas.”

Uma batalha jurídica

Os povos geraizeiros foram reconhecidos como comunidade tradicional no âmbito da lei estadual 21.147/2014, que instituiu a Política Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais. Contudo, ainda não alcançaram a regularização fundiária de seus territórios fundamental para sua manutenção cultural, social, religiosa, ancestral e econômica.

Em dezembro do ano passado, a Defensoria Pública da União e do estado de Minas Gerais propuseram uma ação civil pública solicitando em caráter de urgência ao estado a regularização fundiária do território tradicional geraizeiro, via Secretaria de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais e Secretaria de Desenvolvimento Agrário. 

Também solicitaram à Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais e ao Ibama a suspensão do processo de licenciamento do projeto Bloco 8 e do mineroduto – que tramitam em pedidos separados – até que seja concluída a regularização fundiária, citando a necessidade de consultas prévias às comunidades.

A ação pedia ainda a suspensão imediata da outorga de água concedida pela ANA ao projeto, bem como a apresentação dos estudos técnicos que subsidiaram a captação diária de 139,872 milhões de litros de água pela SAM ‘em uma área classificada como suscetível à desertificação’. A mineradora estaria, portanto, proibida de ingressar no território geraizeiro, bem como obrigada a suspender todas as atividades ligadas ao empreendimento minerário.

Vista aérea do território geraizeiro. Créditos: Natália Moraes

Na contramão dos pedidos, o governo de Romeu Zema (Novo) deu sinal verde para avançar com os processos de licenciamento. Em abril, a Secretaria de Desenvolvimento Social e a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável regulamentaram uma norma para a realização de consulta prévias às comunidades.

O texto não agradou os geraizeiros que, apoiados por instituições e pela Frente Parlamentar em Defesa dos povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais, enviaram um ofício às secretarias pedindo a revogação urgente da medida. A avaliação conjunta é a de que a medida foi construída sem participação popular, violando aspectos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um tratado de direitos humanos, ratificado pelo Brasil, e que garante a proteção e salvaguarda dos direitos de povos e comunidades tradicionais, garantindo-lhes, dentre outros, o direito à autoatribuição, o direito à consulta e à participação na tomada de decisões que possam trazer impactos ao seu modo de vida, às suas terras e territórios.

Em conversa com a reportagem, a deputada estadual Leninha (PT-MG), integrante da frente parlamentar, reforçou que a resolução não dialogou desde o início com as comunidades. “A resolução foi construída por técnicos do governo, sem ouvir inclusive a Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais e os representantes geraizeiros que a integram”, apontou, ao elencar um segundo problema. Após a publicação da resolução, o governo abriu uma consulta pública virtual – de 15 de junho a 30 de junho – para validar a redação da medida.

“Temos comunidades sem energia elétrica e internet, então novamente o que vimos foi a restrição total da possibilidade de participação dessas populações”, elencou a parlamentar, que assina o ofício juntamente com os deputados André Quintão (PT/MG), Ana Paula Siqueira (Rede/MG), Andréia de Jesus (PT/MG), Beatriz Cerqueira (PT/MG).

O grupo ainda elenca um conjunto de outras irregularidades da medida diante a convenção da OIT: quando delimita que somente os povos tradicionais certificados pela Fundação Cultural Palmares, Funai e CEPCT/MG devem ser consultados, desconsiderando a autoatribuição e a autodeterminação previstas na resolução da OIT; quando garante ao empreendedor privado a possibilidade de contratar, com recursos próprios, assessoria técnica especializada para realização da consulta; e quando estabelece prazos para realização da consulta prévia, livre e informada.

‘Uma questão política’

Em entrevista à reportagem, a defensora pública do estado de Minas Gerais, Ana Claudia Alexandre Storch, defende a suspensão dos licenciamentos uma vez que ‘o princípio da sustentabilidade não está colocado no processo’, avalia.

“O nosso entendimento não mudou diante as resoluções governamentais. Temos pedidos bem concretos em relação a suspensão dos licenciamentos até que seja feita a regularização fundiária das comunidades”, atesta. “Há uma ausência de análise do requisito da sustentabilidade nesses procedimentos, uma leitura constitucional e estabelecida principalmente no artigo 225 da Constituição Federal. Se eu interfiro na vida das comunidades tradicionais do ponto de vista cultural, do seu modo de criar, fazer e viver, eu preciso estabelecer esse debate dentro dos licenciamentos ambientais, mas isso não têm sido obedecido”, observa.

A defensora entende, no entanto, que a permissão acerca dos licenciamentos ambientais são decisões políticas que extrapolam o anteparo de controle esperado de órgãos ambientais e do próprio Judiciário.

“Essa é uma questão política, principalmente. O licenciamento ambiental é visto dentro de uma lógica hegemônica, imperativa. Uma vez que há um interesse público declarado em sua condução, ele é visto apenas como um ato administrativo, que deve passar por algumas etapas que a norma estabelece”, observa, e completa:

“No país, as próprias empresas têm a possibilidade de conduzir em algum momento seus licenciamentos, uma vez que são elas que fazem os estudos, apresentam as justificativas para o empreendimento, ficando a cargo dos órgãos ambientais uma espécie de fiscalização da legalidade desses atos e não exatamente um tipo de controle necessário.”

Para Storch, a leitura é conivente aos grandes empreendimentos, que não são avaliados do ponto de vista de seus impactos ambientais e socioambientais.

“Criou-se no país uma forma de dificultar o controle dos licenciamentos ambientais, o que do ponto de vista jurídico é um problema, porque a legislação, em algum momento, de forma hegemônica, ampara a lógica do desenvolvimento não sustentável, do interesse econômico, em produzir esse tipo de empreendimento na mineração.”

O que dizem os citados

1. O governo

CartaCapital questionou o governo de Minas Gerais se há um acompanhamento da luta dos povos geraizeiros. Em nota, o estado disse reconhecer a importância da luta das comunidades tradicionais geraizeiras e que busca garantir seu protagonismo em ações e projetos. Citou, por exemplo, que as comunidades possuem assento e representação na Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (CEPCT), órgão de caráter paritário e deliberativo, vinculado à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese). “Uma das finalidades da CEPCT é certificar os povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais e as comunidades geraizeiras estão entre as reconhecidas e certificadas”, apontou.

Também citou o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos como uma forma de assegurar proteção aos membros da comunidade que estão em situação de ameaça. “A Coordenadoria Estadual de Promoção da Igualdade Racial, da Sedese, apoia e garante visibilidade às demandas dessas comunidades”, acrescentou.

Questionado sobre a regularização fundiária, o governo informou que essas demandas estão sendo tratadas no âmbito da Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa), ‘observadas a sua competência legal e as diretrizes da legislação que institui a política estadual para o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais’.

A reportagem também questionou de que maneira o governo vem atuando para proteger as tradições dos povos geraizeiros, dadas as denúncias apontadas ao longo da apuração. ‘Informamos que todas as políticas públicas do Governo de Minas, direcionadas aos povos e comunidades tradicionais, têm entre os objetivos a preservação de suas tradições, que incluem forma de plantio, criação de animais e o modo de vida em geral’.

O governo citou a consulta livre às comunidades como ‘importante instrumento de proteção das suas tradições’, ‘visto que as comunidades devem ser consultadas antes da implementação de empreendimentos econômicos e as deliberações da consulta serão consideradas no processo de licenciamento ambiental’.

Acrescentou ainda que também presta assistência aos geraizeiros por meio da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-MG) com o o programa Pró-Pequi: uma das principais políticas públicas do Governo do Estado, voltada para a sustentabilidade das espécies nativas do cerrado.

Sobre o Parque Estadual de Grão Mogol

CartaCapital também questionou o Instituto Estadual de Florestas sobre as críticas dos geraizeiros sobre a demarcação do Parque Estadual de Grão Mogol. Em nota, A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustantável (Semad) disse que o parque estadual de Grão Mogol foi criado pelo Decreto Estadual nº 39.906/1998, ‘ou seja, anterior à Lei Federal 9.985/2000 e seu Decreto 4.340/2002, que tratam sobre as diretrizes para criação, implantação e gestão das unidades de conservação no Brasil’. Acrescentou, no entanto, que a unidade de conservação teve os seus limites redefinidos a partir do Decreto Estadual n°45.243/2009, ‘retirando a maioria das famílias que ali viviam’.

Também foi perguntado se há algum plano de compensação aos geraizeiros que hoje estão dentro da área, sem poder estruturar os seus roçados. A pasta disse que há um plano de manejo em fase de contratação por meio de recurso do Projeto Copaibas, que visa a consolidação de unidades de conservação do bioma cerrado.

“Com base na Lei 9.985/2000, que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), o parque deve elaborar um plano de manejo que indicará quais estudos e planejamentos necessários para a gestão e implantação adequados para a área, a serem discutidos em oficinas participativas”, esclareceu a pasta.

“Durante o processo de elaboração deste importante documento, todos os envolvidos com a UC participarão de oficinas e ajudarão a construir o documento, bem como sugerir as necessidades de programas voltados para as comunidades participantes. Uma possibilidade é o estabelecimento de Termo de Compromisso entre as comunidades e o Instituto Estadual de Florestas (IEF), para uso dos recursos pretendidos”, acrescentou.

A reportagem ainda buscou esclarecer como são tomadas as decisões acerca do parque, e se os geraizeiros fazem parte desta composição. A Semad afirmou que o conselho consultivo do parque está elaborando edital de seu processo eleitoral e que o documento será ‘devidamente divulgado, assim que finalizado. ‘Será uma grande oportunidade para que esses representantes se inscrevam e participem do processo e do conselho’, atestou a pasta.

Por fim, a pasta informou que o IEF não tem conhecimento quanto a intenção dos geraizeiros de promover a mudança de categoria de manejo do parque de unidade de conservação. “Até o presente momento, não há registro de nenhum documento formal quanto à questão”, informou. “No entanto, a recategorização de unidade de conservação, principalmente para alteração de proteção integral para uso sustentável, requer estudos e análise técnica para fundamentar a alteração por meio de ato legal”, acrescentou.

“O Parque Estadual de Grão Mogol tem uma grande relevância ambiental pois está inserido na Serra do Espinhaço (Reserva da Biosfera do Espinhaço – UNESCO), área prioritária para conservação, onde abriga muitas espécies importantes da flora e fauna do Cerrado. Destaca-se a presença de espécies endêmicas da flora, como o Discocactus horstii, que só tem ocorrência dentro dos limites do Parque. Além disso, esta unidade possui grande potencial para o turismo, que poderá oportunizar o desenvolvimento sustentável da região, por meio da geração de emprego e renda”, diz outro trecho da nota.

Sobre o projeto de mineração da Sul Americana de Metais

Questionado sobre como avalia os impactos do projeto de mineração da Sul Americana de Metais, o governo de Minas Gerais reafirmou que ‘realizará a consulta livre, prévia e informada, nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), garantindo os direitos das comunidades tradicionais que possam ser afetadas pelo projeto’.

Em nota encaminhada à reportagem, a Semad afirmou que o processo de licenciamento da empresa Sul Americana de Metais continua em análise.

2. A Sul Americana de Metais

A reportagem também enviou questionamentos à Sul Americana de Metais, que se manifestou em nota. A empresa confirmou que o projeto de mineração encontra-se em fase de licenciamento prévio. Disse ainda que o projeto não prevê a construção do mineroduto, que será construído e operado por ‘outra empresa independente’.

“O Projeto da SAM não prevê a construção do modal logístico. Segundo a empresa, o mineroduto será construído e operado por outra empresa independente e a SAM apenas contratará a prestação de serviço de transporte”.

CartaCapital também questionou a empresa sobre a possibilidade de algumas comunidades deixarem de existir com a chegada do projeto e quantas famílias serão impactadas diretamente. A empresa não respondeu com dados e disse que ‘apesar da necessidade de relocação de algumas famílias de comunidades geraizeiras, o Bloco 8 será um aliado à cultura geraizeira com a implantação de programas e projetos para fomentar, manter e apoiar os modos de vida geraizeiros’. Nesse sentido, citou que uma das propostas da empresa é a criação de uma reserva extrativista geraizeira na região. Afirmou ainda que ‘todas as famílias envolvidas com o Projeto Bloco 8, seja ela geraizeira ou não, serão devidamente indenizadas, assessoradas e acompanhadas no processo de implantação e operação do empreendimento’.

A Sul Americana de Metais defendeu o projeto como  uma plataforma de desenvolvimento local’, capaz de trazer ‘uma perspectiva real de desenvolvimento para o norte de Minas Gerais’, e citou que os municípios onde o Bloco 8 será implantado têm os menores índices de desenvolvimento humano do estado. ‘O desenvolvimento que o Projeto trará a todos se vincula à geração de renda, por meio da geração de empregos, novos negócios, oportunidades de crescimento, estudo e qualidade de vida da população que deixará de ver seus filhos e netos sendo obrigados a se mudarem da região em busca de um futuro melhor’, justificou. A empresa afirmou ainda que os geraizeiros participarão de diversos programas e iniciativas de promoção de renda, de incentivo à agricultura familiar e de fomento e apoio à cultura geraizeira.

Questionada sobre as críticas feitas pelas comunidades, a empresa disse o projeto tem apoio da maioria da população, inclusive geraizeira, e citou que durante as Audiências Públicas realizadas pela Semad em 10 e 11 de maio, em Grão Mogol e Fruta de Leite, cerca de 1200 moradores locais participaram e diversos geraizeiros manifestaram seu apoio ao projeto e às oportunidades que ele atrairá para a região.

“A existência de um grupo específico que se posiciona contrário ao empreendimento não pode e nem deve ser generalizada como a opinião dos povos geraizeiros, sob o risco de mais uma vez se impedir a mudança da realidade atual e a promoção do desenvolvimento socioambiental e econômico daquela região”, justificou.

Por fim, CartaCapital questionou a mineradora sobre supostas ações de coação aos povos geraizeiros e se há uma política institucional que considere a visita de funcionários da empresa às comunidades. A empresa afirmou que ‘respeita a opinião de todos e aqueles poucos que não demonstram o desejo de serem visitados pela equipe tem o seu desejo respeitado’.

“A atuação da equipe da SAM é genuína de manter toda a comunidade constantemente ciente sobre as informações corretas em relação ao desenvolvimento do Projeto Bloco 8 e de forma a combater as inúmeras informações falsas divulgadas sobre o empreendimento. A grande maioria da população é extremamente receptiva e demanda da equipe esse contato e essas informações”, finalizou.


 

Ana Luiza Basilio

Ana Luiza Basilio
Repórter do site de CartaCapital

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