Sociedade

Entidades antirracistas exigem na Justiça a presença de negros na diretoria do Carrefour no Brasil

“No caso do Carrefour, um fato precedente que envolveu morte e eles continuam não adotando novas políticas. O racismo estrutural é endêmico, mas isso não é desculpa para as empresas não agirem”, aponta representante da ação

Protesto pelo assassinato de João Alberto Freitas no Carrefour (Foto: CARL DE SOUZA / AFP) Protesto pelo assassinato de João Alberto Freitas no Carrefour (Foto: CARL DE SOUZA / AFP)
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A agressão e humilhação sofridas por um casal negro acusado de roubar uma lata de leite em uma loja do Carrefour em Salvador não é um caso isolado. Partindo de vários casos de racismo reportados pela imprensa nos últimos dois anos, uma segunda ação civil pública contra o Carrefour foi protocolada na Justiça de São Paulo por entidades antirracistas no último dia 12 de abril. E esta tem uma demanda inédita: as partes exigem mudanças na direção da empresa, com a inclusão de afro-brasileiros com letramento racial no Conselho de Administração.

Esta é a principal medida, sem precedentes no direito brasileiro, que as entidades pretendem impor ao grupo de varejo francês por via judicial, além de exigir, novamente, que a soma de R$ 115 milhões seja destinada a ações afirmativas para o povo negro.

Em 2021, o Carrefour, réu da primeira ação impetrada pelas entidades Educafro e Centro Santo Dias por conta do assassinato de João Alberto Silveira pelos seguranças da rede, em Porto Alegre, havia obtido um acordo judicial com as entidades para destinar R$ 115 milhões à comunidade negra.

No entanto, segundo o advogado responsável pelas duas ações, Márlon Reis, a empresa “se nega a apresentar os comprovantes às entidades do movimento negro e de direitos humanos. A gente não sabe como está sendo utilizado este dinheiro, não há transparência com a sociedade civil”, afirma.

Ação inédita

“Certamente nenhuma ação jamais pediu o que pedimos agora. Porque na ação anterior, nós pedíamos justamente o desenvolvimento de medidas de equidade racial pelo Carrefour. Dentre elas, havia várias que serviam para prevenir a reiteração de casos de ódio e discriminação social, como, por exemplo, o treinamento de toda a equipe de segurança e dos funcionários, alertas, canais de denúncia… uma série de coisas para mudar o perfil da empresa na maneira de lidar com pessoas negras”, explica Reis. “Só que isso não funcionou e a prova disso é que os fatos estão se reiterando”, avalia o advogado, que também já processou o ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet por racismo (quando este proferiu palavras racistas contra Lewis Hamilton em uma entrevista a um canal do Youtube).

“Na petição que protocolamos no dia 12 de abril, temos cinco casos documentados, mas a gente sabe que são muitos mais. Estes são só os que saíram na imprensa. Eu mesmo sou negro, minha namorada também, e fomos seguidos num Carrefour. Não mudou a cultura da proteção patrimonial no Carrefour, que é uma cultura do perfilhamento racial, que parte do pressuposto que a pessoa representa um perigo pela cor da sua pele, e a segurança se mobiliza em torno da contenção deste risco para a empresa. Isso não mudou”, conta, explicando por que decidiram, nesta nova ação, não mais pedir treinamento de equipes.

Caso João Alberto não mudou a cultura da empresa, segundo advogado

Na visão do advogado, as demandas da ação anterior não funcionaram porque não mudaram a cultura da empresa. “Eles assumiram uma série de compromissos para pôr fim a uma crise de imagem e não para mudar realmente enquanto empresa. O discurso público era um (“Não vamos esquecer”), para dizer que o caso João Alberto iria mudar o perfil da empresa, mas eles esqueceram rapidamente depois que foi anunciada a indenização. Eles acharam que isso resolveu”, constata.

Agora, explica Reis, “nosso olhar se voltou para o que nós entendemos que é a causa. Isso não é uma crise isso é a própria matriz da empresa, é a cultura da empresa que não foi alterada, que é a própria cultura do racismo estrutural. A prova disso está na própria empresa: quando nós olhamos para o Conselho de Administração e para a diretoria do Carrefour no Brasil, nós vemos só pessoas brancas. Eles não criaram um universo de diversidade na cúpula da empresa. Como eles podem querer atingir um segurança armado que esta lá na ponta se eles mesmos não fazem nada?”, questiona. “Por isso agora nós estamos querendo mudar quem faz. Nós dizemos que tem de mesclar essa direção do Carrefour, colocando pessoas que saibam qual é a dor de ser negro num país racista como o Brasil”, diz, taxativo.

Racismo estrutural

Para Reis, não se trata de responsabilizar uma única empresa pelo racismo estrutural que existe no Brasil. “O racismo estrutural precisa ser enfrentado com medidas, inclusive punitivas. No caso do Carrefour, especialmente, um fato precedente que envolveu morte e eles continuam não adotando novas políticas. O racismo estrutural é endêmico, mas isso não é desculpa para as empresas não agirem”, conclui.

O cerne da argumentação, explica, é que qualquer pessoa negra no Brasil corre um risco potencial se for realizar uma atividade de consumo no Carrefour. “Não é sobre aquelas pessoas, é como a rede lida no Brasil com uma maioria de população negra, que está sujeita a estas falhas decorridas de uma cultura interna deformada da empresa. É por isso que a gente trata isso como uma demanda coletiva. E não só do povo negro. Somos um país diverso, plural, está na Constituição, então interessa a todos que ninguém seja tratado com discriminação por qualquer motivo que seja”.

Para o cientista político presidente da associação SOS Racismo, Dominique Sopo, “o Carrefour segue no olho do furacão no Brasil porque claramente a empresa não entendeu a medida dos problemas existentes em suas lojas no gerenciamento de suas equipes e na sua cultura de governança”. 

“Eu acho bastante positiva esta nova ação que demanda que a Justiça interfira no assunto, é preciso sacodir as organizações se queremos que as coisas mudem, principalmente porque o racismo se funda nos preconceitos, nas rotinas, e isso tem que mudar. Lutar contra o racismo é implantar dispositivos, práticas, mudar a organização das empresas”, afirma Sopo.

“Mobilizar os diferentes atores sociais”

“Claro que se você perguntar a qualquer pessoa, ela vai dizer que é contra o racismo. Mas é na prática que vemos isso. Militar em qualquer país, é tentar mudar a sociedade. Então, quando temos casos de racismo assim tão ancorados, é preciso mobilizar simultaneamente os diferentes atores sociais”, prega o cientista político. 

Apesar disso, Sopo acha que, na França, uma intervenção da Justiça numa empresa para colocar pessoas negras em cargos (de direção ou outros) seria impensável, já que a República francesa é fundada no universalismo e não faz um Censo baseado em cor da pele.

Para o advogado Márlon Reis, os fatos de a França não falar em raças e de o Carrefour ser uma empresa francesa podem influenciar a cultura da empresa, “de negar o racismo”.

Residente na França, a artista, pesquisadora e ativista Fabiana Ex-Souza, que organizou uma manifestação em frente à sede mundial do Carrefour em Massy, na França, em 2020, em protesto contra o assassinato de João Alberto Silveira, considera esta nova ação civil pública é importantíssima por diversos motivos. 

“Acredito que é preciso ter transparência de como este dinheiro da indenização está sendo utilizado e como as ações afirmativas estão sendo postas em práticas. E hoje exigir a representação de pessoas negras com letramento racial em cargo de chefia representa para a gente uma luta, uma conversa que a gente precisa colocar na sociedade brasileira, que é a da ascensão profissional das pessoas negras no Brasil”, afirma. Para Fabiana, “quanto mais houver pessoas negras em cargo de chefia, mais veremos mudanças estruturais”. 

Negros como suspeitos

“O Carrefour tem um problema de racismo estrutural, ou seja, se ele trata corpos negros desta forma é porque de algum local saem ordens que fazem com que pessoas negras sejam tratadas como suspeitas nos supermercados deles. O caso do João Alberto não foi um caso isolado, existem várias denúncias”, sublinha.

De acordo com a pesquisadora, o letramento racial permite com que as pessoas brancas entendam que o racismo tem que ser combatido coletivamente. “Nós precisamos ser todos antirracistas, este combate é de todos nós, de toda a população brasileira.”

Morando na França desde 2010, Fabiana vive e reflete sobre o racismo todos os dias: “Eu me pergunto se tenho escolha para ser ativista ou não, tanto na França quanto no Brasil, porque sendo uma pessoa ‘racializada’, ou você combate a violência que você enfrenta no cotidiano ou você acaba ficando doente mentalmente. Esses casos cotidianos de racismo nos levam a um local de dor e de raiva, então ser ativista é se proteger. É decidir enfrentar o mundo para viver bem, para se amar”.

Para ela, colocar este “Ex” antes do seu sobrenome foi marcante: “Eu carrego o nome dos colonizadores, escravizadores, então coloquei este ‘Ex’ como um ato descolonial. Descolonizar o nome de família é, no meu caso, uma proposição artística e poética, e enquanto local de cura mental”.

Fabiana compara as lutas no Brasil e na França: “Eu acredito que o fato de não haver estatísticas raciais oficiais aqui na França prejudica a luta antirracista. Quando a gente expõe um caso de racismo, quando a gente fala de ‘raça’ aqui, os franceses sempre rebatem dizendo que isso não existe, que todo mundo é igual, que isso está na sua cabeça, e que, se a gente os denuncia, é a gente que está sendo racista. Isso é brutal, esta forma de eles tratarem as nossas lutas aqui. Ou seja, aqui existe o racismo, mas falar sobre raça é proibido dentro da República francesa”, analisa.

Resposta do Carrefour 

Contatada pela RFI, a assessoria de imprensa do Carrefour respondeu:

“O Grupo Carrefour reitera seu compromisso com a luta contra o racismo, e informa que, nos últimos dois anos, implementou mais de 50 ações antirracistas. Essas ações são voltadas à empregabilidade, desenvolvimento profissional e afro-empreendedorismo. Ressalta ainda que, ao receber denúncias em suas lojas, a empresa imediatamente instaura investigação minuciosa e, a partir dos resultados da apuração, toma medidas rigorosas dentro de sua política antirracista.

Após a assinatura do TAC em 2021, o Grupo destinou R$ 115 milhões em iniciativas voltadas para a educação e a geração de renda de pessoas negras. Dentre os projetos envolvidos estão um edital de bolsas de língua inglesa, um edital de bolsas de estudo no valor de R$ 68 milhões e a internalização da segurança interna das lojas do Grupo. Além disso, 100% dos nossos colaboradores receberam treinamento em letramento racial.

No processo contínuo de evolução de seus protocolos, o Grupo analisou seus processos internos e tomou a decisão de implementar as seguintes novas medidas, desde o último dia 12 de abril:

  • A interrupção da circulação de fiscais de prevenção nas lojas da rede Atacadão. Estes funcionários ficarão à disposição dos clientes em pontos fixos e pré-determinados, na frente do caixa ou em salas que possuem o circuito fechado de televisão;
  • Melhorias no processo de monitoramento de câmeras para manter um ambiente seguro para os clientes das redes do Grupo;
  • Revisão de treinamento de suas equipes de loja em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares;
  • Ampliação da visibilidade dos canais de denúncia.
  • O Grupo reforça seu compromisso com a luta contra o racismo para seus 150 mil colaboradores e toda a sociedade.”

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