Sociedade

Em São Paulo, centros de detenção provisória proíbem jornais e revistas

Dos 19 CDPs na Grande São Paulo, 11 vetam completamente a entrada de veículos noticiosos. Em Santo André, só entram as revistas “Veja” e “Placar”

CDP I "ASP Giovani Martins Rodrigues" de Guarulhos
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No jargão popular, jumbo diz respeito à lista de produtos de higiene, alimentação e uso pessoal que os detentos podem receber nas unidades prisionais do País. Em tese, seriam também itens que contribuem para a ressocialização do preso, como livros, materiais didáticos e publicações informativas. A prática, no entanto, se mostra diferente.

Na Grande São Paulo, dos 19 Centros de Detenção Provisória (CDPs) existentes, ao menos 11 proíbem a entrada de qualquer tipo de jornal ou revista. Os argumentos variam. Alguns CDPs dizem que as páginas, quando destacadas, podem ajudar os detentos a esconder materiais proibidos nas cavidades das paredes do cárcere. Outros justificam a proibição argumentando que os internos “já têm” direito de assistir à televisão, ouvir rádio ou mesmo que a unidade possui biblioteca para aqueles interessados em ler.

As unidades deveriam funcionar como espaços reformatórios, mas acabam aumentando a marginalização da população carcerária ao proibir o acesso a meios de comunicação impressos. Dos CDPs contatados pela reportagem, proíbem totalmente a entrada de jornais e revistas os de Diadema, Franco da Rocha, “ASP Nilton Celestino” de Itapecerica da Serra, Mauá, Mogi das Cruzes, CDP I “Ederson Vieira de Jesus” de Osasco, CDPs III e IV de Pinheiros, Vila Independência, Suzano e CDP I “ASP Vicente Luzan da Silva” de Pinheiros.

Outros quatro – Santo André, “Dr. Calixto Antonio” de São Bernardo do Campo, CDP II “ASP Vanda Rita Brito do Rego” de Osasco, CDP II de Guarulhos – permitem a entrada de alguns veículos impressos. O CDP I de Chácara Belém, o CDP II “ASP Paulo Gilberto de Araújo” de Chácara Belém, o CDP II “ASP Willians Nogueira Benjamin” de Pinheiros e o CDP I “ASP Giovani Martins Rodrigues” de Guarulhos não atenderam à reportagem.

Muitos dos funcionários que informavam quais eram as restrições de cada unidade não souberam dizer por que, exatamente, se proibia ou permitia a entrada de determinadas publicações. Apesar das normativas, não existe uma regra unânime. Alguns CDPs permitem a entrada de publicações especializadas, como de automobilismo ou de fofocas sobre celebridades. Outras vetavam todos os tipos, permitindo apenas livros didáticos e revistas de palavra cruzada.

Na região do Grande ABC, o CDP de Santo André, por exemplo, permite a entrada apenas de publicações religiosas, da revista Veja e da revista Placar. Já a unidade de Franco da Rocha só autoriza a entrada de gibis, revistas sobre novela e livros que não tenham conteúdo pornográfico. “A limitação existente no CDP de Santo André revela qual o tipo de cidadão que o Estado está forjando no cárcere, pois há muito tempo já se provou que o encarceramento não produz efeitos ressocializadores, servindo apenas como instrumento de contenção classista”, afirma o advogado Alexandre Pacheco Martins, especialista em direito criminal. “Ao impedir que os presos tenham acesso a materiais que vão além dos conteúdos religiosos, esportivos ou notícias voltadas a um segmento específico da sociedade, busca-se que os encarcerados se limitem a pensar no mesmo sentido das obras a que têm acesso”, afirma. “A impossibilidade de obter materiais intelectuais distintos é um eficiente meio de contenção.”

Regras. As decisões aleatórias de cada CDP não correspondem ao regimento das unidades. Por meio de um pedido feito pela lei de acesso à informação, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) reconheceu que “desde 1999 não se atualiza o Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais da Secretaria da Administração Penitenciária”, mas lembrou que o texto que diz respeitos aos CDPs e presídios do estado de São Paulo prevê em seu 22º artigo que constituem como direitos básicos dos presos provisórios, condenados e internados: “b) leitura de jornais e revistas sócioeducativas que não comprometam a moral e os bons costumes; c) acesso à biblioteca da unidade prisional e à posse de livros particulares, instrutivos ou recreativos.” Além disso, lembra que o artigo 172, no capítulo III, contempla que “o preso pode ter acesso à leitura e a outros meios de comunicação, adquiridos às custas próprias ou por visitas, sendo que devem ser submetidos previamente à apreciação da direção da unidade prisional”.

Assim, apesar do regimento da SAP prever o direito ao acesso aos meios de comunicação social e à informação por meio de leitura de jornais e revistas, as publicações permitidas acabam sendo escolhidas pelo diretor da unidade, que muitas vezes permite apenas a entrada de publicações “educativas” ou “religiosas”, como sinônimos de bons costumes, moral e ordem.

Pacheco lembrou que o fato de alguém estar encarcerado não retira deste a condição de ser humano, portanto, detentor de direitos como qualquer outra pessoa. “Não se pode confundir o aprisionamento do corpo com o encarceramento da mente. Não existe e jamais existirá uma norma jurídica capaz de restringir o pensamento, por isso, essa limitação de acesso ao conhecimento corresponde a um filtro ideológico inaceitável”, protestou.

Para Vinícius Lapetina, membro da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/SP e do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a proibição à entrada de determinados meios funciona como forma de minar o poder crítico do preso. “Quanto maior o conhecimento do preso, maior sua capacidade para questionar e cobrar seus direitos”, disse Lapetina. “Proibir isso é censura, afinal é direito de qualquer cidadão, preso ou não, ter acesso à informação.”

Apesar de aparentemente funcionar como um instrumento de marginalização, o cárcere, lembra Lapetina, teria de reintegrar o preso ao cotidiano social. “É preciso fazer com que ele se sinta parte da sociedade e não algo estranho à sociedade. Isso somente acontece se lhe for proporcionado condições de evoluir, como educação, saúde, trabalho etc”, afirmou.

Os efeitos, no entanto, parecem contrários. Mãe de um ex-presidiário, C., 68 anos, lembrou que basta o preso ter pisado no cárcere uma vez para ficar estigmatizado para sempre. “Quando um jovem é preso, naquele momento, é decretada a sua pena de morte social. Mesmo que ele pague a pena, fica marcado por toda a vida. A dificuldade de arrumar emprego é muito grande e o preconceito, terrível. O próprio Estado se encarrega de anular a vida de quem foi preso um dia.”

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