Sociedade

Editoria de guerra, Alex Muralha e a “precisão jornalística”

Assim como o jornal “Extra” tem direito a rebatizar sua cobertura de segurança pública, o goleiro do Flamengo merece respeito semelhante

O goleiro do Flamengo se disse vítima de "execração pública" pelo jornal
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Em nome de uma suposta “precisão jornalística”, o jornal “Extra” desta sexta-feira 1º ridicularizou o goleiro Alex Muralha, do Flamengo. A publicação decidiu estampar em sua primeira página um comunicado a alertar os leitores de que eles não encontrarão mais a alcunha “Muralha” relacionada “ao senhor Alex Roberto Santana Rafael”, nome de batismo do arqueiro rubro-negro.

De acordo com o jornal, o goleiro “mais uma vez desmoralizou o vulgo” por suas falhas no jogo da quarta-feira 30 contra o Paraná Clube pela Primeira Liga, que eliminou o Flamengo da competição. O veículo chama de “frango” o gol sofrido pelo jogador na partida e ressalta seu mau aproveitamento em disputas de pênaltis, ao lembrar que o atleta errou “100% dos lados” nas cobranças do jogo passado. 

Leia também: Guerra de ideias: a criação da editoria de guerra do Extra

Após críticas de leitores e de colegas jornalistas, o editor de Esportes do “Extra”, Márvio dos Anjos, defendeu-se ao afirmar que o comunicado tinha um tom de brincadeira. “O jornal também opera no registro do humor”, afirmou em sua conta no Twitter. “Não é difícil reconhecer isso em seus 20 anos de história.”

O alvo da suposta gozação entendeu o recado de outra forma. Em nota oficial, Muralha comparou os ataques à forma como o “Extra” e outras publicações referem-se “a bandidos que cometem crimes”. “Eu me senti ‘fichado’ como tal na capa do jornal”, afirma o goleiro. “O termo ‘vulgo’, que citam no texto a meu respeito, é normalmente usado para designar bandido, e isso causa constrangimento. É um fato que pode até incitar a violência”.

A leitura de Muralha sobre o caso remete a outra polêmica recente envolvendo o “Extra”. Em 16 de agosto, o jornal avisou em editorial que passaria a usar o termo “guerra no Rio” para se referir a episódios de violência na capital fluminense e criou a chamada “editoria de guerra” para cobrir o tema. “Foi a forma que encontramos de berrar: Isso não é normal!”, explicou o editorial. “É a opção que temos para não deixar nosso olhar jornalístico acomodado diante da barbárie”.

Extra Comunicado do Extra contra o jogador (Foto: Reprodução)

Em um curto espaço de tempo, o jornal condenou a “barbárie” contra a população carioca, mas avaliou como uma brincadeira a execração pública de um atleta por erros profissionais.

Em uma cidade onde viceja a violência condenada pelo jornal, a cultura do linchamento é uma das piores consequências das falhas do Estado em garantir segurança aos cidadãos. O próprio “Extra” foi exemplar em condenar esse desvio civilizatório: recebeu, em 2015, o Prêmio Esso pela capa “Do Tronco ao Poste”.

A publicação comparou um quadro de Jean Baptiste Debret a retratar um escravo sendo chicoteado em um pelourinho com a foto de um garoto amarrado a um poste por justiceiros em São Luís, no Maranhão. Ainda que não fosse a intenção do jornal, Muralha se disse vítima de “humilhação” e “execração pública”, pilares da cultura do linchamento.

Por conta de sucessivas falhas à frente do gol do Flamengo, Muralha tem sido alvo de críticas e brincadeiras de torcedores com frequência, situação que pode ser enfrentada por qualquer jogador em má fase. O próprio goleiro reconhece que gozações da torcida e críticas fazem parte de sua profissão. Há, porém, uma enorme diferença entre dar voz à insatisfação da “Nação Rubro-Negra” e transformá-la numa nova regra de manual de redação, como se o nome escolhido pelo goleiro para sua carreira fosse uma opção não do atleta, mas do próprio jornal.

Alex Muralha não é o primeiro Muralha do Flamengo. Revelado na base do clube, o volante Luiz Philipe Lima de Oliveira também usa o apelido. Para muitos torcedores, o volante Muralha também não fazia por merecer a alcunha. Nem por isso alguém deixou de chamá-lo pelo nome que escolheu. Curiosamente, o ex-meia do Flamengo foi alvo de xingamentos após a partida da quarta 30 em suas redes sociais, confundido com o atual goleiro rubro-negro.

Apelidos podem até ser questionados, mas a palavra final é sempre do jogador. Um caso interessante é o do jogador Guilherme Negueba, também cria do Flamengo. Assim que chegou ao elenco principal, houve quem sugerisse ao atleta abandonar o apelido, com o temor de que a alcunha o inferiorizasse. O jogador, atualmente na Ponte Preta, preferiu mantê-la.

Da mesma forma que o uso do artigo feminino para se referir a artistas como Liniker e Pablo Vittar deve ser respeitado pela mídia, jornalistas não devem interferir em escolhas tão individuais como um nome de carreira. De fato, Muralha não tem feito jus ao apelido, e tem sido cobrado pela torcida e pela mídia por isso. Não deveria ser tarefa do jornalismo, contudo, decidir como um jogador, um artista ou uma autoridade devem ser chamados. Trata-se de uma escolha que, em casos como o do goleiro, pode até ser ironizada, mas jamais desrespeitada.

Tão rara em tempos atuais, a “precisão jornalística” estaria contemplada se o jornal se resumisse a afirmar que Muralha não tem sido “uma muralha”. Rebatizá-lo contra sua vontade é apenas amplificar o linchamento que ele tem sofrido por seus erros. Se o jornal tem todo o direito de batizar uma de suas seções como “editoria de guerra”, apesar das críticas que essa escolha possa merecer, apenas Muralha pode decidir se seu nome de jogador lhe cai bem ou não.

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