Economia

Atestado de óbito para o livre comércio

Em relatório, a ONU atribui ao domínio das multinacionais a derrocada da proposta mais decantada entre a ortodoxia e o empresariado

Três de quatro empresas abandonando o negócio de exportação depois de dois anos
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O relatório sobre Comércio e Desenvolvimento divulgado na semana passada pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad, na sigla em inglês) é como um atestado de fracasso da proposta do livre comércio e um xeque-mate das virtudes propagadas pelos seus defensores, economistas ortodoxos e empresários à frente.

O documento repete o diagnóstico de emperramento da economia mundial divulgado uma semana antes também pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com dose dupla de más notícias, o rebaixamento da previsão de crescimento do Brasil neste ano e o alerta de que a expansão econômica global parece ter atingido seu pico com intensificação dos riscos dada a escalada protecionista, o aperto financeiro nos países emergentes e riscos políticos generalizados.

A conclusão principal do estudo da Unctad, com o título sugestivo “Poder, plataformas e a desilusão com o livre comércio”, é que as grandes empresas aumentaram continuamente sua fatia nas exportações totais e agora dominam o comércio internacional. “Ironicamente, essa tendência intensificou-se desde a crise financeira global de 2008, o que põe em destaque o poder de mercado desproporcional de poucos e os ganhos desmesurados apropriados pelo topo da pirâmide”.

O domínio crescente do comércio por grandes empresas desde meados da década de 1990 é uma das características centrais da economia mundial contemporânea, segundo os economistas da Unctad. Entre as firmas exportadoras, o 1% do topo respondeu, em média, por 6 de cada 10 dólares de exportação. Em algumas estimativas, apenas 10 empresas, em média, respondem por 4 de cada 10 dólares ganhos no exterior.

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A pesquisa da Unctad mostra também que, tanto para os países desenvolvidos quanto para aqueles em desenvolvimento, a integração nas cadeias globais de valor está relacionada ao declínio da participação da produção doméstica de valor adicionado por parte de cada país nas suas próprias exportações.

Segundo o organismo, o comércio sob hiperglobalização não conseguiu promover mudanças estruturais amplas em países em desenvolvimento e contribuiu para o aumento da desigualdade mundial. O relatório mostra que o aumento na lucratividade das principais corporações transnacionais, junto à sua crescente concentração, agiram como uma força importante de compressão da parcela da renda do trabalho no produto global e exacerbaram assim a desigualdade de renda.

Para o secretário-geral da Unctad, Mukhisa Kituyi, “a ansiedade crescente nos países desenvolvidos, atingidos também pelos danos da hiperglobalização, leva-os a cada vez mais a questionar a versão oficial sobre os benefícios compartilhados decorrentes do livre comércio”. Essas preocupações somam–se à apreensão crescente entre os países em desenvolvimento sobre a propalada eficácia do funcionamento do sistema de comércio internacional, em especial quanto aos supostos benefícios para essas economias.

O relatório constata que o rápido crescimento das exportações das economias de industrialização mais recente na Ásia, em especial daquelas da China, está associado à redução da fatia dos países desenvolvidos nas exportações mundiais, de três quartos do total em 1986 para apenas metade em 2016. Durante esse período, na maior parte dos outros países em desenvolvimento a parcela das exportações manteve-se constante ou em alguns casos até declinou, exceto durante a fase de elevação temporária do super-ciclo de altos preços das commodities.

Excluindo a China, a participação de Rússia, Índia, Brasil e África do Sul na produção global subiu de 3,7% em 1990 para cerca de 7,4% em 2016. Em contraste, quando a China é adicionada, a participação dos BRICS aumenta de 5,4% para 22,2% durante esse período.

A disparidade é ainda maior no que se refere à indústria. Em 2016, o Leste Asiático foi responsável por 7 de cada 10 dólares ganhos pelo mundo em desenvolvimento a partir das exportações de manufaturados. Não é só isso.

Desde 1995, apenas as economias em desenvolvimento do Leste Asiático abrigam, em grau significativo, matrizes de várias das principais corporações transnacionais, registrando uma parcela crescente dos lucros gerados pelas duas mil maiores corporações multinacionais do mundo, de 7% em 1995 para mais de 26% em 2015.

“À medida que mais países em desenvolvimento passaram a depender dos mercados globais, tornaram-se mais dependentes de uma faixa restrita de exportações”, alerta o documento, que associa essa situação à disseminação de cadeias de valor globais e às dificuldades de “subir a escada do desenvolvimento na ausência de um estado desenvolvimentista forte”.

Essas cadeias, prosseguem os autores do estudo, têm sido uma característica de longa data do comércio de commodities e não é surpresa que, desde 1995, 18 dos 27 países em desenvolvimento analisados tenham experimentado aumentos na participação das indústrias extrativas no valor agregado das exportações, no conhecido fenômeno da reprimarização.

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As perspectivas a partir do levantamento da Unctad são desalentadoras. “Nesse mundo de “o ganhador leva tudo”, não surpreende que novos participantes e exportadores menores tenham uma taxa de sobrevivência baixa, com três de quatro empresas abandonando o negócio de exportação depois de dois anos e com as empresas em países em desenvolvimento em situação pior do que as dos países desenvolvidos.”

O agravamento da desigualdade relacionada ao comércio, prosseguem os analistas, reflete uma combinação de elevação dos lucros dos ativos intangíveis, maiores rendimentos abocanhados pela matriz e redução dos custos de produção. Um quadro de doença grave da economia mundial, concluem os autores do relatório, da qual as guerras comerciais são só um sintoma.

O retrato devastador traçado pela Unctad alimenta expectativas quanto a uma eventual manifestação do Banco Mundial, a instituição que contribuiu, mais do que qualquer outra, para o aumento das condições de liberalização comercial e, como sublinha o economista Robert Wade, “tratou-a como a rainha das políticas, não apenas uma entre várias, dizendo que a política de livre comércio limitaria os danos das intervenções governamentais no mercado”.

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