Sociedade

É hora de honrar aqueles que nos deixaram

Nos últimos meses, a Amazônia perdeu pessoas extraordinárias num momento medíocre

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Este texto não é um obituário. Prefiro render homenagens e agradecer. Estou vivo, então, me aconselha o amigo Ailton Krenak, o melhor a fazer para ressaltar o brilho de pessoas extraordinárias não é propriamente fazendo o luto. Mas contando um pouco das histórias que honram a vida e a lembrança, como um agradecimento de coração a algumas pessoas que me ajudaram a me constituir como sujeito, a compreender o mundo, a me indignar diante de injustiças e a tentar transformar essa realidade. Diante das tristes notícias de partidas recentes de pessoas muito especiais em 2016, algumas notas de lembranças podem servir para suavizar a tristeza. O coração da Amazônia certamente bate mais triste agora, em um ano tão duro para as esperanças e com tantas tragédias.

Andrea Tonacci (16 de dezembro), palhaço Magnólio (Paulo Sposito de Oliveira, 16 de dezembro), Jean Hébette (11 de novembro), Jean Pierre Leroy (10 de novembro), Krohokrenhum (18 de outubro), Tatá Yawanawá (20 de dezembro) formam uma longa lista de verdadeiros sujeitos coletivos da Amazônia que fizeram a passagem para o mundo espiritual nos últimos meses, um muito próximo ao outro, de forma devastadora. Como as folhas de outono que caem e vamos assistindo impotentemente, para utilizar uma metáfora do querido Ailton Krenak, eles nos deixaram de forma muito suave, muito delicada. 

Também me inspiro em Ailton para descrever essas pessoas como sujeitos coletivos: viveram não apenas para elas, mas para coletividades, para um conjunto. “Num tempo tão medíocre como esse que a gente está vivendo, devemos honrar essas pessoas que são sujeitos coletivos; olhar a trajetória desses seres humanos que viveram como sujeitos coletivos acende a nossa esperança de que o mundo não acabou”, me disse Ailton.

O fim do ano provoca a sensação de fim da linha, o que é uma falsa percepção de uma passagem que não tem uma marca profunda, nem muito significado, mas que gera tristeza. Por isso, sugere Ailton, melhor perceber o tempo para pessoas que nos deixaram como um tempo espiral, um ciclo que não se encerra nem se acumula com os meses do ano: “o tempo para eles era um espiral, um ciclo e não uma linha reta; e é por esse espiral do tempo onde essas pessoas queridas viajam. Por isso, vamos lembrar deles com honra, pois continuam seguindo o rastro nesse percurso e convocando todo mundo a ficar de pé e a lutar.”

Tristes despedidas

Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, é uma das obras de arte que mais impactaram minha vida. Quando assisti a primeira vez, eu trabalhava na Funai. O belíssimo documentário que acompanha a luta e o drama de Carapiru, um indígena do povo Awá-Guajá que sobrevive a um genocídio, nos abre a possiblidade fazermos de uma profunda reflexão sobre o país em que vivemos, provoca indignação, toca pessoalmente, mexe em nosso sentido de existência. 

Alguns anos depois, quando assisti Os Araras, outra obra prima de Tonacci, consegui compreender melhor o percurso de suas ideias, da sua inquietação com a violência colonial do Brasil. Os dois filmes refletem a turbulenta dinâmica do período da transição (intransitiva) da ditadura para a democracia, e a profundidade do sofrimento imposto aos povos indígenas. São trabalhos documentais, como a magnifica série A Década da Destruição, dirigida por Adrian Cowell (que nos deixou cinco anos atrás, em 10 de outubro de 2011), que por muitos anos vai ensinar gerações a perceberem e a sentirem como aconteceu a invasão e a destruição da Amazônia. Esse processo, graças a Tonacci, a Cowell, para sempre vamos saber que não aconteceu sem resistência: houveram Chico Mendes, Carapiru, Sydney Possuelo, os Arara, os Uru-eu-wau-wau, os anônimos posseiros que lutaram contra o latifúndio…

Como pensar a educação popular na Amazônia sem lembrar de Jean Hébette, Jean Pierre Leroy e Magnólio, cada um a sua forma?

Hébette e Leroy foram dois sábios amazônidas que nasceram no velho mundo. Hébette e Leroy escreveram, pensaram e lutaram durante a ditadura e ajudaram a construir e a formar as organizações camponesas na democracia. O livro Uma Chama na Amazônia (1991), de Leroy, é a leitura do desastre e da esperança, da repressão e da organização sindical, da devastação e da  formação da base de luta coletiva de transformação do mundo. Fechando o Cerco (1991) e os quatro volumes de Cruzando a Fronteira; 30 anos de estudo do campesinato na Amazônia (2004) constituem a sólida base para entender como se edificou a arquitetura da destruição e da resistência camponesa. 

Atuando no Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA), da Universidade Federal do Pará (UFPA) Hébette foi o precursor da educação de luta no sul e sudeste do Pará, o idealizador da Fundação Agrária do Tocantins Araguaia (FATA), criada para dar apoio aos agricultores organizados nos sindicatos da região Sudeste, e do CAT, e o Laboratório Socioambiental do Tocantins (LASAT), com a criação do primeiro curso de especialização para agrônomos do campo, essas as raízes que vieram formar adiante a hoje comprometida Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). Muitos camponeses e camponesas, lideranças sindicais, tiveram nessa experiência educativa a chance de se fortalecer como sujeitos para enfrentar os desafios impostos da vida na “fronteira”. Ao ler Hébette, aprendi que na fronteira tem não só a barbárie da opressão, mas também a beleza da luta e da resistência. 

Emmanuel Wambergue, um dos fundadores da CPT no Pará, esteve com Hébette pela última vez em julho de 2014, na Bélgica, e relatou a tristeza de ver o amigo sofrendo com o mal de Alzheimer, que progredia violentamente. Hébette perguntava muitas coisas e pedia noticias dos amigos de Marabá, e passava a “clara impressão que o corpo dele estava na Bélgica mas a cabeça e o coração estava no Pará”. Para Wambergue, “o Jean foi o maior intelectual orgânico e o maior promotor de cidadania do campesinato da nossa região de Marabá; marcou uma geração de sindicalistas e pesquisadores do campo.”

Leroy, um ícone da organização FASE, nos últimos anos vinha trabalhando sobre o conceito de comum, entendido não como “bem comum”, por não ser um “bem”, mas sim um “comum”. As terras indígenas, a atmosfera, as reservas extrativistas, a floresta. Sua fala no dia 19 de outubro de 2014 na abertura do 2º Simpósio Brasileiro de Saúde e Ambiente, da ABRASCO, foi magistral. Para mim, pesquisador em início de carreira, foi inspirador conversar com Leroy sobre um conceito que ele, com tantos anos de luta na estrada, vinha aprendendo e refletindo. Essa vontade apaixonante de conhecer, de rever-se, de aprender novas ideias que podem ser importantes para a luta por justiça. De forma muito fraterna, Leroy me enviou por e-mail o texto de sua fala ainda sem revisão, para saciar minha curiosidade de saber mais sobre o que ele havia dito. Escreve ele num trecho:

A grande maioria dos povos e comunidades a quem me referi tratam seu território como seu (bem) comum. A condição da sua reprodução social é manejar seus territórios de tal modo que mantêm a biodiversidade na terra e nas águas; a qualidade e a quantidade das águas; o ecossistema, seja floresta, cerrado, restinga, caatinga, etc.  Ao fazer isso, apontam para formas de produzir e viver em sintonia com a natureza cujos desdobramentos serão preciosos para o futuro de todos; e, para hoje, já estão preservando para todos nós a vida. (Jean Pierre Leroy)

O palhaço Magnólio tinha uma incrível capacidade de tradução. Ele conseguia traduzir o mundo numa piada, num gesto, numa brincadeira, numa frase ácida. Educar é comunicar (como escreveu magistralmente Paulo Freire em Comunicação ou Extensão?), e era impressionante a sua capacidade de comunicação geral: conseguia falar com todo mundo, com muita gente ao mesmo tempo, com pouca gente, numa conversa privada. Em todos os contextos Magnólio tinha uma sacada sutil para ajudar a entender o que estava acontecendo. Sabia enfrentar os fazendeiros sojeiros, os madeireiros, os grileiros, e sabia engajar os ribeirinhos, os indígenas, as pessoas de São Paulo e Rio, do sul do Brasil, da Europa que vinham visitar o Projeto Saúde e Alegria, em Santarém. Na sua fala no TEDxAmazônia, ele hipnotizou as 500 pessoas que estavam lá contando histórias e piadas de sua experiência no Saúde e Alegria com uma capacidade majestosa de prender a atenção e de conduzir nossas mentes junto dele (assista?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> aqui). 

O mundo ficava mais fácil com Magnólio. Não que essa sensação nos alienasse do contexto, mas nos ajudava a compreender onde estávamos, como estávamos, o que poderíamos fazer, e ao mesmo tempo, nos resignar e nos insurgir. Escrevo desse jeito confuso tentando traduzir a sensação de estar com Magnólio, o que reflete também a falta de estar com ele para poder comentar e facilitar essa compreensão, um “bate e assopra”, como me disse uma vez, com sua voz rouca, como fazia para enfrentar os poderes em Santarém e conseguir andar tranquilo e alegre por lá.

Em abril desse ano, quando abracei o grande chefe Krohokrenhum, o Capitão, na sua aldeia, a sensação era de estar próximo a uma entidade. Ele foi homenageado junto do cineasta Vincent Carelli pelo festival de cinema CINEFRONT, organizado pelo professor Evandro Medeiros, na UNIFESSPA, e do qual fui curador. A antropóloga Iara Ferraz, que conhece os Gavião desde 1975 e esteve conosco em Marabá, escreveu uma linda memória em sua homenagem.

Capitão é um ícone da resistência no Pará: ele representava, como poucos, o que pode significar a ideia da fronteira, como um muro colocado diante do tsunami de devastação que enfrentava altivamente para dizer: não, chega, aqui não. Foi a barreira contra a extinção de seu povo, os Gavião (Parakatejê), contra a destruição dos últimos castanhais da margem direita do Tocantins. Foi a barreira contra o esquecimento, contra a perda da memória dos cantos, das danças, das portas de entrada no mundo espiritual.

Carelli, que há anos vem filmando Capitão, prepara um trabalho extraordinário que irá completar a sua trilogia iniciada com Corumbiara, de 2009, e seguida nesse fatídico ano de 2016 por Martírio, como filme Adeus, Capitão. Quando estivemos na aldeia, ele ouviu de Capitão que o filme iria demorar para ser finalizado pois “eu ainda vou viver muito, mais uns dez anos”. Não há dúvida alguma: entre todas as futuras gerações do povo Gavião, Krohokrenhum vai viver muito, vai viver para sempre. E é confortante pensar que essa proximidade de Carelli com Capitão vai permitir, assim como Tonacci e Cowell fizeram, que através do documentário, possamos continuar escutando o canto de Capitão, vendo sua habilidade em atirar flechas, e a sua habilidade política em defender seu povo contra grileiros, madeireiros, o avance da mineração e da construção de usinas hidrelétricas.

Ontem fui informado por queridos amigos Yawanawá da partida do velho pajé Tatá, que vivia na aldeia Mutum, que ocorre um dia após completar seis anos do falecimento de Raimundo Luís, o grande chefe dos Yawanawá. Joaquim Tashka Yawanawá, uma das principais lideranças do povo, postou no Facebook: “Tata fez a passagem”, e a mensagem: “amor eterno – vá em paz mestre, na luz, no amor, na eternidade”.

Tatá era baixinho, magrinho, com voz doce, e com 104 anos de idade era muito forte, muito iluminado, uma entidade da qual saia uma luz reconfortante, agradável, que dava uma sensação de paz. Junto de Yawá, o outro mágico pajé do povo Yawanawá que vive na aldeia Nova Esperança, foram responsáveis por manterem acesa a espiritualidade do mundo sagrado Yawanawá. Foram Tatá e Yawá que cuidaram de Biraci Nixiwaka na longa reclusão que ele fez nos anos 1990 para se iniciar no xamanismo. 

Era Tatá, com seu companheiro Yawá, que escondidos de missionários evangélicos da New Tribes Mission preparavam e ingeriam uni, o sagrado ayahuasca, para realizar as curas. Como uma biblioteca coletiva, Tatá guardou cantos, história, memória, saberes, guardou um mundo inteiro que abriu com carinho para uma nova geração Yawanawá. Depois de tanto sofrimento nas mãos de missionários proselitistas, de violentos patrões seringalistas que os escravizaram no Seringal Kaxinawá, do Estado racista, Tatá partiu na paz e carinho da comunidade, dentro de um território reconhecido e demarcado, com todas as nascentes do sagrado rio Gregório protegidas, com seu povo feliz o acompanhando em longas sessões espirituais, com jovens entoando os cânticos sagrados com violão e a voz afinada, com professores e professoras Yawanawá ensinando crianças nas escolas. Tatá viveu para saber que o mundo poderia ser diferente, e graças a ele, foi diferente do que era quando ele era jovem.

“Tatá morreu como um guerreiro na floresta e eu acho isso de uma beleza indescritivel”, me disse Ailton Krenak. Tatá, com câncer terminal, preferiu morrer na floresta, cercado de familiares e espíritos, desfrutando de longas sessões xamânicas, a ser entubado numa UTI. “Mostra a convicção dele de que a floresta é a casa dele, tem tudo o que ele precisa, e que o mundo dos brancos tem muito pouco do que interessa a ele. Viva Tatá! Eu honro a passagem do Tatá entre nós como um grande sábio”, reflete Ailton, que é um antigo amigo do povo Yawanawá.

Foram pessoas que tiveram vidas extraordinárias, e a boa morte é uma parte muito importante no luto: ter a passagem tranquila, com homenagens e reconhecimento que ajudam na aceitação da perda social e coletiva. Todos esses homens especiais partiram, alguns com idade mais avançadas, outros ainda não tanto. Mas não haveria idade para se aceitar a perda deles, pois sempre seriam jovens e imprescindíveis. Foram levados por causas naturais, alguns abatidos por câncer, de forma que seus corpos foram sendo desligados enquanto as ideias continuam a circular entre nós. Além de desejar que tenham feito uma passagem tranquila para o mundo espiritual de cada um, é bonito honrar suas memórias e pensar que aqui na terra saibam que a saudade vai apertar por muito tempo.

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