Sociedade
Dupla punição
A cobertura dos casos de abuso sexual terminam, em geral, por criminalizar as vítimas


Dominique Pélicot está em julgamento na França pela acusação de drogar sua ex-esposa, Gisèle, e filmá-la enquanto era estuprada por desconhecidos recrutados numa plataforma de bate-papo já extinta. Cinquenta outros homens com idades entre 26 e 74 anos também são acusados. Os detetives não conseguiram identificar e localizar mais de 30 outros que foram gravados. O ex-eletricista de 71 anos foi chamado de “o Monstro de Avignon”. Até o momento, não há um apelido para os muitos moradores que teriam visitado a casa no vilarejo de Mazan, entre eles um bombeiro, um enfermeiro e um jornalista, “homens comuns”.
Corajosamente, Gisèle Pélicot, 72 anos, renunciou ao direito ao anonimato para buscar justiça para todas as mulheres vítimas de voyeurismo, estupro com uso de drogas e vigilância secreta, um trio de crimes profanos que pode transformar uma casa “inteligente” do século XXI em uma câmara de horrores. Alguns dos acusados alegam que ela deu consentimento, um ponto no cerne da maioria dos estupros. “Eu era uma mulher morta”, disse ela calmamente num depoimento eletrizante no tribunal criminal de Avignon. “Aquelas pessoas sabiam exatamente o que estavam fazendo… Elas me trataram como uma boneca de pano.” Pélicot disse ao tribunal que seu comportamento calmo escondia “um campo devastado”.
Ela é um desafio isolado aos vários mitos que cercam o estupro e obscurecem a realidade. Neste caso, a cobertura tem sido até agora incansável, mas contida, talvez pelo fato de a vítima estar na casa dos 70 e ser avó, “não do tipo comum”. Contida, isto é, fora uma manchete, rapidamente alterada após protesto, no Daily Telegraph que originalmente dizia: “Esposa vinga-se publicamente dos homens que ‘a estupraram todas as noites por ordem do marido’”. Vingança ou justiça? A escolha das palavras importa.
Em 26 de setembro, a coalizão End Violence Against Women (EVAW – Fim da Violência Contra as Mulheres) publicará um artigo oportuno e importante, Reporting on Rape, Changing the Narrative (Reportagens Sobre Estupro – Mudando a Narrativa). É um guia para os meios de comunicação, mas tem uma relevância maior. “A forma como a mídia relata a violência contra mulheres e meninas tem consequências na vida real, moldando nossas atitudes e crenças coletivas sobre essa violência”, diz Andrea Simon, diretora-executiva da EVAW. “O mau jornalismo reforça a culpabilização da vítima, estereótipos prejudiciais e atitudes que toleram e normalizam o estupro… o bom jornalismo pode ajudar a lidar com essas atitudes e promover a mudança.”
A lei define como estupro quando um homem intencionalmente coloca seu pênis na vagina, ânus ou boca de outra pessoa sem o consentimento desta ou sem acreditar razoavelmente que ela deu consentimento. Oito em cada dez estupros não são denunciados à polícia. Muitas mulheres dizem que não comparam sua própria experiência ao que leem na mídia. Por quê?
O drama de Gisèle Pélicot será capaz de mudar algo no comportamento da mídia
O artigo da EVAW se baseia num exame de 12 anos de reportagens de estupro na imprensa britânica, de 2008 a 2019, publicado no ano passado e conduzido por Alessia Tranchese, uma palestrante em Comunicação e Linguística Aplicada na Universidade de Portsmouth (Reino Unido). Ela usou uma metodologia que envolve análises de linguagem baseadas em computador. Tranchese mapeia como o estupro violento, de “perigo de estranho”, e o estupro pelo “outro”, o desviante, dominam a cobertura: “monstros” como Josef Fritzl, condenado à prisão perpétua em 2009, que manteve sua filha, Elizabeth, encarcerada num porão durante 24 anos, onde ela deu à luz sete filhos, e o “monstro do tráfico sexual” Jeffrey Epstein. Em 90% dos estupros a vítima conhece, porém, o perpetrador, e uma em cada três vítimas é estuprada em sua própria casa. Tranchese diz que celebridades e homens brancos bem-sucedidos acusados de agressão sexual e estupro também costumam ser tratados de forma mais branda na mídia, suas ações são minimizadas pelo foco em suas carreiras e as vítimas são marginalizadas.
Algumas atitudes em relação ao estupro mudaram. Em janeiro, o Ministério Público da Grã-Bretanha divulgou suas descobertas de pesquisas sobre a compreensão pública do estupro. A maioria reconhece que ainda pode ser estupro se a vítima não resistir e o ato acontecer em uma parceria íntima. Mas apenas 39% sabiam que a maioria dos estupradores conhece suas vítimas. Particularmente preocupante é “a regressão alarmante nas atitudes dos jovens”: aqueles entre 18 e 24 anos são mais propensos a espalhar mitos sobre estupro. A cobertura da mídia sobre Andrew Tate e seu irmão, Tristan, vem à mente. Tranchese diz que o estereótipo de “pedir por isso” com uma saia curta foi substituído por duvidar da credibilidade da mulher estuprada. Segundo a promotoria britânica, apenas 0,6% das denúncias são falsas, mas o assunto ocupa a mídia.
As mulheres não se apresentam porque não esperam que acreditem nelas. A Organização Independente de Padrões de Imprensa oferece orientações sobre como reportar crimes sexuais, mas não “busca limitar a linguagem que os jornalistas podem usar”. A EVAW, com razão, exige “padrões mais altos definidos pelos reguladores da imprensa”. “Sabemos que jornalistas frequentemente sofrem pressão para produzir grande quantidade de conteúdo de forma que gere engajamento, mas é preciso que os veículos de mídia sejam motivados a fazer melhor”, diz Simon. Por exemplo, o uso de “suposição” implicando dúvida – como em “suposto estupro”, “suposta vítima” – poderia ser substituído pelo neutro “relatado”. E por que escrever que os acusados negam “veementemente” o estupro?
Trinta estupradores denunciados, sem serem detectados, seguem livres em Mazan e nas aldeias próximas – o marido, o filho, o vizinho de alguém. Ainda assim, Louis Bonnet, prefeito de Mazan, tentou atenuar seus crimes. “As pessoas aqui dizem: ‘Ninguém foi morto’”.
A esta altura, essa história repelente deveria ter chegado ao fim. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1329 de CartaCapital, em 25 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dupla punição’
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