Sociedade
Direitos suspensos: relato de um debate em praça pública
A PM prendeu arbitrariamente e provocou os presentes o tempo todo. A comparação com a ditadura não é mais metafórica


Participei na noite desta terça-feira 1º do debate público pela liberação dos presos políticos que aconteceu na Praça Roosevelt, em São Paulo. O debate tinha por objetivo divulgar a prisão, semana passada, de dois manifestantes que protestavam contra a Copa com base em evidências muito frágeis. Tratava-se de um debate e não de uma passeata de rua – havia uma mesa e oradores simplesmente falariam para um grupo de cerca de mil pessoas sentadas no chão.
Apesar de ser apenas um debate, bem no meio da praça, a Polícia Militar enviou centenas de policiais da Tropa de Choque e da cavalaria, prendeu arbitrariamente e provocou os presentes o tempo todo. A sensação de todos nós é que a comparação com a ditadura não é mais metafórica. Simplesmente a liberdade de reunião e a liberdade de manifestação estão suspensas. Também como nos anos de chumbo, quem está dentro da ordem, apenas acompanhando e torcendo pelos jogos, nem percebe as graves violações pelas quais o país está passando.
Fui convidado para fazer uma breve fala pelos organizadores do ato-debate. Chequei com minha companheira Beatriz Seigner e encontrei logo amigos e conhecidos como o escritor Ricardo Lisias, o padre Julio Lancelotti, os professores da Unifesp Edson Telles e Esther Solano, além de muitos outros, inclusive vários colegas professores da Faculdade de Direito da USP.
Assim que cheguei, o advogado Daniel Biral, do grupo Advogados Ativistas, me cumprimentou e contou que o coronel que comandava a operação o tinha abordado e perguntado em tom ameaçador quem ele estava representando — ao que respondeu, “estou representando a democracia”.
Como a polícia cercava toda a praça, muitos dos que chegavam eram revistados. Como relatou o site da Veja, a revista incluía perguntas sobre livros “suspeitos” que as pessoas carregavam, como a biografia de Marighella, de Mário Magalhães. Todos os revistados tinham o nome e o número do RG anotados. Muitas pessoas não entraram na praça por medo de serem revistadas e presas.
Já na praça, enquanto os presentes aguardavam o começo do debate, dois policiais com armamento de choque e carregando uma filmadora passavam pelas pessoas e filmavam muito de perto o rosto de cada uma, em tom provocativo e sem qualquer motivo. Certamente esperavam alguma reação indignada para que pudessem revidar com bombas e agressões. No entanto, as pessoas apenas gritaram palavras de ordem contra a ditadura. Quatro outros policiais da tropa de Choque fizeram um cordão de proteção em torno deles e, durante todo o debate, esses policiais filmaram o rosto de todos os oradores a menos de três metros de distância da mesa.
Assim que as primeiras pessoas começaram a discursar, as prisões começaram a ocorrer. O advogado Daniel Biral, que já havia sido ameaçado pelo coronel, foi preso após protestar contra a falta de identificação dos policiais. Aliás, ele não foi apenas preso, mas agredido com tal brutalidade que ficou desacordado na viatura. Com ele, foi também presa a advogada Silvia Daskal.
Os organizadores conseguiram acalmar a indignação dos presentes e retomar os discursos. Menos de dez minutos depois, policiais revistaram de maneira completamente desnecessária e gratuita um rapaz negro que apenas andava pela rua, bem ao lado do debate, claramente para provocar. A imprensa foi toda para lá, o público pediu pela soltura do rapaz e a PM jogou bombas, atirou balas de borracha e gás lacrimogêneo e prendeu outras duas pessoas.
Os organizadores conseguiram acalmar os ânimos e retomar o debate. A tropa de Choque fechou todos os acessos da praça e ficou por mais de uma hora em formação, pronta para atacar. A presença policial muito numerosa e ostensiva era apenas para intimidar e tentar uma provocação para um ataque que seria um verdadeiro massacre.
Ao final do debate, grupos de pessoas saíam da praça para o metrô andando em grupo, com medo de serem revistadas, de serem presas e terem objetos plantados na mochila como parece ter acontecido com Fabio Hideki (que completou uma semana na penitenciária de Tremembé). A tropa de choque acompanhou de maneira ostensiva esse deslocamento e outro contingente da tropa as esperava dentro do metrô.
Amigos e amigas que ainda não tinham participado das manifestações dos últimos dias estavam chocados. Todos só falavam da sensação de volta da ditadura.
Pablo Ortellado é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP
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