Sociedade

Dias de angústia e terror no Pará

Movimentos sociais enfrentam despejo de sem-terras, violência da polícia e morte de defensores históricos de direitos humanos

Policiais prontos para ação de reintegração no Pará
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O Pará vive dias de tristeza e angústia, com pânico e terror em razão de uma mega operação da Polícia Militar e o falecimento de personalidades históricas na luta em defesa de direitos humanos. 

Na segunda-feira 27, o Comando de Missões Especiais (CME) da PM começou a cumprir mandados de reintegração de posse contra acampamentos em latifúndios da região, com foco em áreas ocupadas pelo MST contra terras da Agropecuária Santa Bárbara Xinguara S/A, do Grupo Opportunity, pertencente ao banqueiro Daniel Dantas. Iniciada às 7 da manha, a reintegração teve momentos de tensão, mas lideranças do movimento negociam constantemente uma saída política. 

A operação contra o MST se deu no dia seguinte ao falecimento de frei Henri Burin des Roziers, no domingo 26, em Paris, de causas naturais. Aos 87 anos, frade dominicano e advogado, sua trajetória de vida foi um marco na luta pela reforma agrária, contra o trabalho escravo e contra a impunidade dos assassinatos de lideranças sindicais no sul do Pará. 

Roziers era um alicerce moral e intelectual para os movimentos sociais. Formado em direito na Universidade de Cambridge, com doutorado pela Sorbonne, foi fundamental para condenar pistoleiros e fazendeiros criminosos nos anos 1980 e 1990. “Passei grande parte do meu tempo no Brasil tentando agir para que a Justiça julgasse e condenasse os assassinos”, disse frei Henri em entrevista à CartaCapital em 2015.

mst henri .jpg Frei Henri foi fundamental na luta pelos direitos humanos no Pará

Não fosse o bastante, frei Henri partiu exatamente um mês depois da morte repentina, por enfarte, de Paulo Fonteles Filho, membro da Comissão Estadual da Verdade do Pará e um dos principais investigadores dos escombros do massacre da Guerrilha do Araguaia. Era também um gigante defensor dos direitos humanos no Pará, cujo pai, o advogado Paulo Fonteles, corajoso no enfrentamento ao latifúndio, foi assassinado por pistoleiros em 1987.

As mortes se dão no mesmo momento em que desembarca no sul do Pará, na região de Marabá, uma mega operação de reintegração de acampamentos já consolidados pelos movimentos sociais. 

São pelo menos 14 liminares determinadas pelo juiz da Vara Agrária de Marabá, a serem cumpridas até o fim do ano. Na semana passada, os movimentos sociais deram início a uma jornada de mobilizações, com bloqueios de estrada e marcha, contra os despejos das famílias.

A primeira reintegração aconteceu na Fazenda Cristalina, em Itupiranga, em 2 de novembro. Na segunda-feira 27 foi a vez do acampamento Helenira Resende, do MST.

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Com mais de 700 famílias, o Helenira Rezende, nome dado em homenagem a uma guerrilheira do Araguaia, está instalado nas fazendas Cedro e Fortaleza, da Santa Bárbara, desde 2009. Grande parte das famílias havia se organizado para deixar pacificamente a área da fazenda Cedro, objeto do pedido de reintegração. Ocorre que ela está emendada, sem um limite muito bem definido, com a Fazenda Fortaleza, área pública grilada a qual o Incra poderia requerer para a reforma agrária, mas que ainda não o fez.

Há um impasse que deve perdurar ao longo da semana. Houve relatos de tensão. A Santa Barbara enviou 15 caminhões e uma retro-escavadeira para agir junto da polícia. Os sem-terras resistiram quando jogaram o trator em cima da escola.

O MST informou que as famílias estão acampadas há quase uma década, produzem cerca de 1,5 mil litros de leite por dia, além de possuírem mais de 10 mil pés de bananeiras e 40 hectares de mandioca. O resto é uma imensidão de pastagem com esqueletos de castanheiras há lembrar que ali, um dia, antes do latifúndio se estabelecer, havia sido a floresta amazônica. 

Estão ameaçados também os acampamentos Dalcídio Jurandir, na fazenda Maria Bonita, do Grupo Santa Bárbara, com audiência marcada para 1º de dezembro, e o acampamento Hugo Chávez, localizado numa fazenda de um ex-minerador da região, responsável por um dos maiores desmatamentos da história da Amazônia, com audiência para o dia 13 de dezembro. Em julho, pistoleiros atacaram o acampamento Hugo Chávez.

As fazendas Cedro, Fortaleza e Maria Bonita integram a estratégia de investimentos em terra de Daniel Dantas. São latifúndios comprados da decadente família Mutran, que no passado constituiu a brutal oligarquia dos castanhais. Na Fazenda Cabaceiras, da família Mutran, desapropriada em 2008 para dar lugar a um assentamento liderado pelo MST, foi encontrado um cemitério clandestino. 

Essas ações de reintegração caminham em paralelo com a política do governo federal de estancar a reforma agrária. Desde o golpe, Temer passou a aparelhar aparelhar o Incra com ruralistas e, no ano passado, editou uma medida provisória (759/2016) para “modernizar a reforma agrária”. O intuito era favorecer a reconcentração de terras.  

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Essas medidas de anti-reforma agrária do governo federal, conforme explica o advogado da Comissão Pastoral da Terra na região, José Batista Afonso, tem aumentado a tensão. “Elas sinalizam que o governo não irá promover desapropriações e indenizações, o que mobiliza os fazendeiros a forçar medidas de expulsão das famílias”, afirma.

Em carta aberta na qual denunciam a escalada da violência, Maurílio de Abreu Monteiro, reitor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa); Raimunda Nonata Monteiro, reitora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa); e Cláudio Alex Jorge da Rocha, reitor do Instituto Federal do Pará (IFPA), manifestaram “solidariedade à luta dos povos do campo pelo direito de viver com dignidade.”

Violência e memória

Enquanto a PM é utilizada contra os trabalhadores rurais para defender o latifúndio, nesse ano já ocorreram 20 assassinatos de trabalhadores rurais no Pará. No dia 24 de maio, dez foram mortos por 13 policiais, no episódio que ficou conhecido como o Massacre de Pau D’Arco. Com grande mobilização de organizações de direitos humanos, e inicialmente com investigação da Polícia Federal, foi possível individualizar a conduta dos policiais assassinos e hoje 11 estão presos. A PF, no entanto, foi tirada do caso, o que preocupa o andamento das investigações. 

Se o Massacre de Pau d’Arco perpetrado pela polícia trouxe para a memória coletiva da região o período das chacinas dos anos 1980, a iminência das ações de reintegração pela polícia reaviva as terríveis lembranças do Massacre de Eldorado de Carajás, em 17 de abril de 1996, quando a PM do Pará matou 19 trabalhadores rurais. 

Essas ações em defesa do latifúndio, conduzidas pelo governo e pelo Judiciário, produzem a verdadeira “insegurança jurídica”, em oposição à bravata da “segurança jurídica” comumente utilizada pelo latifúndio para desqualificar as demandas territoriais de camponeses, indígenas e quilombolas. 

A ausência do frei Henri

Nessas horas de tensão diante da violência estrutural, frei Henri Burin des Roziers era uma figura chave para a defesa da democracia e da justiça. Também por isso sua partida cria uma ampla sensação de depressão na militância.  

Em maio do ano passado, ele enviou uma carta para um acampamento que leva seu nome, em Curionópolis (PA). Atacada por pistoleiros, a chamada Fazenda Fazendinha é alvo de um mandado de reintegração em favor do Incra expedido pelo Tribunal Regional Federal. Ali, curiosamente, a polícia não age, enquanto pistoleiros são mobilizados para aterrorizar acampados. A lei está do lado de vocês”, escreveu frei Henri: “Mas tem muita sujeira da parte dos fazendeiros para falsificar algumas coisas e facilitar a grilagem.” E completou: “Fiquem firmes, unidos, confiantes, determinados, e não deixem esses fazendeiros se apropriarem da terra de vocês.”

mst henri 2.jpg Frei Henri morreu na França

Em maio de 2014, realizei uma entrevista com o frei no convento Saint Jacques, onde ele morava, em Paris, sobre a violência nessa região. Ele descrevia os massacres como “crimes contra a humanidade, como a Ditadura, o genocídio. Não importa quanto tempo leva, é preciso que seja julgado, que seja dito que é um crime contra a humanidade. Na história, vai ficar registrado como um crime muito grave”.

Defendia a Justiça não só como punição, mas como a construção da memória coletiva, da história de um povo. “Um crime grave que não vai cair no esquecimento.”

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