Sociedade

Defender a pena de morte é negar o catolicismo, diz especialista

A decisão de Francisco de abolir a punição “medieval” do catecismo, afirma Fernando Altemeyer Jr., da PUC de São Paulo, tem um significado profundo

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“A partir de agora, se alguém é católico, precisa ser a favor da vida. Se defende a pena de morte, está fora”. Este é, segundo o professor Fernando Altemeyer Junior, o maior e mais profundo significado da decisão do Vaticano de abolir de suas leis a possibilidade de execução de seres humanos.

Segundo Altemeyer, chefe do Departamento de Ciências da Religião da PUC de São Paulo, a liderança moral do “estadista” Francisco é um ganho significativo para o combate à pena de morte no planeta, apesar de a maioria dos países que adotam a punição estar fora da esfera de influência da Igreja Católica, a começar pelo protestante EUA, a budista China e as nações muçulmanas.

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Francisco suprimiu um artigo “medieval”, define o professor, publicado em 1983 pelo então papa João Paulo II e que admitia a aplicação da pena de morte de indivíduos considerados perigosos para uma sociedade ou país.

O especialista acredita, porém, que a condenação à pena de morte tende a reforçar a posição do Vaticano contra o aborto. “Nos dois casos, há uma defesa intransigente da vida em todas as suas etapas”.

CartaCapital: O que muda na Igreja Católica com a condenação à pena de morte?

Fernando Altemeyer: O papa lançou duas formulações jurídicas que alteram o artigo 2267 do catecismo da Igreja Católica, que, quando lançado em 1983, ocasionou uma grande celeuma. Não se esperava que João Paulo II incluísse a excepcionalidade da pena de morte. Depois de todo o caminho da luta contra a tortura e a pena de morte em várias instâncias, na ONU inclusive, imaginava-se superado o tema.

Mas João Paulo deixou essa brecha medieval presente: em algumas circunstâncias estaria permitido matar alguém considerado perigoso para uma sociedade ou país. Francisco aboliu essa interpretação. Para ele, a vida humana e a recuperação dos indivíduos, em sociedades democráticas, são perfeitamente possíveis. Os seres humanos podem se redimir, resume o papa. E ele nem entra na seara dos erros jurídicos e das injustiças. Se há perdão, pensa o pontífice, não pode haver pena de morte, que é a completa negação do perdão.

É bem profundo, pensando não só no Brasil, onde muitos católicos são favoráveis à pena de morte. A partir de agora, segundo a interpretação jurídica do Vaticano, se alguém é católico, precisa ser a favor da vida. Se defende a pena de morte, está fora.

CC: Será esta a consequência sobre a comunidade católica?

FA: Ao menos em termo de expressão. Se os católicos vão mudar de ideia por conta desses comunicados, são outros quinhentos. Uma pesquisa recente no Brasil mostra que a pena de morte recebe mais apoio de fiéis da Igreja Católica do que entre evangélicos, budistas e ateus.

É até um paradoxo. O cristianismo nasceu de um indivíduo condenado à pena de morte pelas leis romanas. É uma barbaridade que algum católico ainda seja a favor desse tipo de punição. A frase do papa é lapidar: “A pena de morte é inadmissível, por atentar contra a inviolabilidade e a dignidade humana”. Como legislador maior, ele mudou a lei. A igreja se torna agora defensora incansável da abolição da pena de morte no mundo.

CC: A maioria dos países que adota a pena de morte está fora da influência política do Vaticano. Qual o efeito prático desse novo posicionamento do papa?

FA: Embora a Igreja Católica seja pequena nos Estados Unidos, ela é poderosa. Trata-se de um corolário. Quando o Vaticano abole de suas regras a possibilidade de pena de morte, abre-se espaço para a crítica à indústria de armas, à noção de guerra justa, ao terrorismo de Estado ou de grupos ideológicos… São vários dominós.

O governo de Pequim, é claro, pode dizer: ‘E eu com isso’. Mas continua a existir a força simbólica do papa, também dirigida ao 1,3 bilhão de chineses. O efeito sobre países muçulmanos é o fato de haver agora um horizonte ético ocidental da Igreja Católica, do papa, recriminando a punição. Além disso, o Vaticano é um Estado observador na ONU e daqui para frente passa a integrar o grupo de nações que combatem a pena de morte. É mais uma voz.

CC: E uma voz de um papa que se destaca no cenário internacional…

FA: Exatamente. Há quem aponte Francisco como o único estadista do planeta. Alterar um item do catecismo foi uma ação forte.

CC: O papa fez vários movimentos para adaptar o pensamento do Vaticano ao mundo contemporâneo. A maior dificuldade tem sido, no entanto, trafegar pela questão da descriminalização do aborto. Pode se esperar alguma mudança neste campo?

FA: Não. A mudança de posicionamento em relação à pena de morte reforçará a posição do Vaticano sobre o aborto. Ou seja, uma defesa intransigente da vida em todas as suas etapas.

Para o papa, não é só uma questão antológica ou política. Tem a ver com sua visão a respeito do humano, com a totalidade da “criatura de Deus”. Inclusive a igreja no Brasil está articulada e alerta por conta do debate a ser retomado no Supremo Tribunal Federal sobre o aborto.

A maioria dos fiéis, os moralistas, é radicalmente contra. Outra coisa é como tratar uma mulher que aborta. Tem ocorrido mutações. Sob Francisco, essas questões passaram a ser conduzidas de maneira terapêutica. Não é mais dura lex. Mas a posição em relação ao aborto não mudará.

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