Sociedade

Da violação à indenização: Suprema hipocrisia

O Judiciário também é parte de uma realidade que viola os direitos dos presos e deveria reconhecer isso

STF ajudou a manter o caos carcerário
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Mal saiu a notícia de que o STF havia estabelecido que o preso que cumpre pena em condições degradantes deveria ser indenizado, muitos, bem-intencionados, saíram a aplaudir, no noticiário e nas redes sociais, aquilo que, em meio a tanta barbaridade que temos visto – jurídica ou não –, parecia, à primeira vista, algo a ser comemorado. Mas não há nada a festejar. E muitas são as razões.

Não se trata aqui de negar indenização a quem tem direito violado. E praticamente todos os presos brasileiros tiveram.

Se temos alguma política criminal, é a política do encarceramento em massa. Fazem parte da construção dessa política: nós, os cidadãos, que só enxergamos infração penal e castigo justo para o outro, o que explica um certo fetiche em ver a criminalização de quase tudo e o aumento cada vez mais frequente das penas; o Legislativo, que, guardadas as distorções da representação política formada pela supremacia do poder, sobretudo econômico, espelha boa parte do que somos enquanto povo, editando leis cada vez mais encarcerizadoras; o Executivo, que nada cumpre dos seus misteres em relação à população carcerária – que não dá e tira voto de quem com ela se preocupa; e, o Judiciário. Mas por quê o Judiciário?

Ressalvados os posicionamentos de um ou outro ministro sobre uma ou outra questão, de um modo geral, o que fez o STF nos últimos anos? Contribuiu, e muito, para potencializar o encarceramento em massa.

Apenas para ficar com alguns exemplos: demorou 16 anos desde a edição da Lei dos Crimes Hediondos para reconhecer a inconstitucionalidade da vedação à progressão de regime; tem restringido, cada vez mais, o acesso ao Judiciário, quando fecha – sem precedentes sequer na ditadura militar – as portas para o habeas corpus; vem chancelando um sem número de prisões cautelares sem a efetiva presença dos requisitos da prisão preventiva; e, quando, ao arrepio da Constituição de 1988, admitiu a prisão antes do trânsito em julgado da ação penal.

Isso é também ser, e em nada modesta proporção, responsável pela massa dantesca de encarcerados.

Sim, o Judiciário não funciona ao sabor da Constituição ou da lei, mas do vento. Se o ar fede, porque traz o cheiro de cabeças que rolam chocante e implacavelmente nos pisos das penitenciárias, é preciso “dar respostas” à população. Sim, em vez de julgar causas, o Judiciário tem se ocupado em “responder” à população, fagocitando os espaços deixados pelo esvaziamento do campo da política.

Mas está tudo resolvido. Para “solucionar” o problema, agora o Judiciário vem esfarelar, de forma carnavalesca – porque retumbantemente estufa o peito para dizer que se incomoda com quem, na verdade, jamais se preocupou –, as migalhas da via indenizatória, para varrer para debaixo do tapete aquilo com que coonesta há muito tempo: a violação da lei e da dignidade do ser humano preso.

O preso não precisa da indenização, muito menos de valor risível (o STF estabeleceu, por maioria de votos, o valor de 2 mil reais para a indenização para o condenado do Recurso Extraordinário n.º 580252). O que o preso precisa e tem direito, porque é lei, é de “cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório”, sendo requisitos básicos da unidade celular “salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana em 6m² (seis metros quadrados)”.

O que o STF precisa é fazer cumprir o artigo 88 da Lei n.º 7.210/84, cujos termos estão acima assinalados. Apenas, ou, no mínimo, isso.

Não pensem os senhores ministros que a Corte está fazendo qualquer coisa de bom ou legal, esperando que as sevícias aconteçam para depois esmolar os presos, ou o que sobrou deles, após viverem amontados, em cantos escuros, fétidos, em antros de tuberculose e outras doenças – boa parte respiratórias ou de pele –, que dormiram anos como morcegos ou amarrados para não caírem, sem fornecimento de colchão, sabonete, dentifrício etc.

Isso para não detalhar as condições a que são submetidas as presas mulheres, que não contam, na grande maioria dos casos, com o fornecimento de absorventes, muito menos qualquer estrutura mencionada no art. 89 da mesma Lei (de Execuções Penais), para abrigar gestantes, parturientes ou mães com a finalidade de assistir os filhos desamparados.

Senhores ministros, se vossas excelências não vão fazer cumprir a lei, que pelo menos deixem de escarnecer daqueles que têm vivido no inferno. Sim, o inferno existe e está bem aqui do nosso lado. 

*É Professor de Direito Penal da PUC/SP e advogado criminal

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