Sociedade
Curandeirismo eletrônico
Promessas de falsas curas na televisão e nas redes sociais movimentam um mercado bilionário no Brasil. A regulação frouxa facilita a vida dos charlatões


Em grupos de ajuda de 12 passos, um dos primeiros ensinamentos passados aos novatos é que o alcoolismo é uma doença incurável, progressiva e potencialmente fatal, que, se não for controlada a tempo, pode levar o dependente à demência ou à morte. A assertiva pode parecer um tanto fatalista, mas o melhor protocolo de tratamento disponível no Brasil, baseado no uso de ansiolíticos e antidepressivos e combinado com psicoterapia, promete apenas auxiliar o alcoólatra a se manter mais tempo longe do copo, uma vez que recaídas ou “lapsos” parecem ser inevitáveis para a ampla parcela dos pacientes. Há estudos promissores, sobretudo no exterior, envolvendo o uso de microdoses de cetamina, potente analgésico de uso veterinário, ou de psilocibina, substância extraída dos famosos cogumelos mágicos. Ainda assim, espera-se que essas drogas contribuam para prolongar o período de abstinência. Nenhum dos pesquisadores ousa falar em cura para a moléstia.
A comunidade científica internacional talvez esteja defasada, alheia aos notáveis avanços obtidos pelo curandeirismo nativo. Há anos, em seu programa televisivo na Rede Vida, o padre sertanejo Alessandro Campos anuncia um produto milagroso, 100% natural, que “vai acabar definitivamente com o seu problema de alcoolismo”, garante. Bastam dez gotinhas do Tad Control, duas vezes ao dia, para livrar qualquer pessoa do vício, até mesmo aqueles que resistem em aceitar o tratamento. Incolor, insípido e inodoro, o líquido pode ser diluído até na bebida alcoólica. Assim, o alcoólatra relutante “nem vai perceber que está sendo tratado”, acrescenta o promotor de vendas ao lado do sacerdote de chapelão branco, sua marca registrada nos shows que faz pelo Brasil afora – além do trabalho à Santa Sé, Alessandro Campos é um famoso cantor, com milhões de álbuns vendidos.
Alertada por CartaCapital, a Anvisa decidiu investigar o suplemento que promete curar o alcoolismo
Esse tipo de propaganda domina a programação da televisão brasileira, oferecendo uma infindável gama de produtos absolutamente indispensáveis, capazes de operar maravilhas na vida dos consumidores. Do Ômega 3 das profundezas dos fiordes noruegueses ao colágeno do cume do Himalaia, passando por uma planta trepadeira que se alastrou pelos programas vespertinos da tevê aberta, como relata Marcio Alemão à pág. 18, há soluções para todos os males da humanidade. As dadivosas ofertas transbordam para os recônditos das redes sociais, de sorte a deixar Brás Cubas, célebre personagem criado por Machado de Assis, envergonhado de um dia ter cogitado lançar no mercado seu vulgar “emplastro anti-hipocondríaco”, destinado a “aliviar a nossa melancólica humanidade”.
No site da fabricante Vivena do Brasil, é revelada a composição milagrosa do Tad Control: zinco, cobre, cromo e as vitaminas A, B6 e B9. “Aprovado pela Anvisa nos termos da RDC 240 de 26/7/2018”, o tratamento de 12 meses com o produto tem um “índice de sucesso” de 95%, assegura a página. Antes que o leitor não consiga controlar a ansiedade para procurar o produto na internet e efetuar a compra, um alerta: a Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa mencionada dispõe sobre produtos dispensados ou não da obrigatoriedade de registro sanitário. Por se tratar de um simples “suplemento alimentar”, sem a presença de enzimas nem probióticos, o Tad Control não possui e nem precisa ter registro na Anvisa. A fabricante só precisou informar ao órgão local de Vigilância Sanitária sobre o início da fabricação do produto, com substâncias previamente autorizadas.
Ao ver as propagandas, o fundador da Anvisa sugeriu encaminhar o caso à ouvidoria do órgão – Imagem: Werther Santana/Estadão Conteúdo
Além disso, por não ser um medicamento com testes de segurança e eficácia revisados pela agência reguladora, o Tad Control não pode, em hipótese alguma, ser anunciado com a finalidade de tratar, prevenir ou curar doenças. “Suplementos alimentares não estão autorizados a fazer alegações terapêuticas, tampouco relacionadas ao alcoolismo”, informa a Anvisa, em resposta aos questionamentos de CartaCapital. “Atualmente, não existe medida restritiva publicada em relação à venda do produto, mas, diante do subsídio enviado (anúncios), foi aberto dossiê de investigação sanitária para apuração e para que sejam adotadas as providências cabíveis”.
Antes de encaminhar a denúncia à agência, a reportagem consultou o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, fundador e ex-presidente da Anvisa, sobre as alegações feitas pela fabricante do Tad Control em peças publicitárias. “A forma de divulgação do produto é criminosa. Que ‘índice de sucesso’ é esse? É o caso de acionar a Ouvidoria da Anvisa”, recomendou o especialista, hoje professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Lamentavelmente, não se trata de um caso isolado. O próprio padre Alessandro Campos anuncia uma série de outros produtos com alegações terapêuticas duvidosas, a exemplo de um adesivo detox, destinado a “remover as toxinas” do organismo. Em 2021, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, conhecido pela sigla Conar, suspendeu propagandas veiculadas no programa que atribuíam ao suplemento alimentar Condroleve, da marca Eleve, a capacidade de combater as “dores nas juntas”. A peça recorria ao testemunho de idosos que atestavam a eficácia do produto. Uma reportagem do portal Metrópoles revelou, porém, que um dos entrevistados trabalhava como ator, modelo e figurante de comerciais de tevê, e ele admitiu ter recebido cachê para falar bem do produto.
Agora, a indústria tabagista vende o engodo do HealthVape, dispositivo para “inalar vitaminas”. Pelé contribuiu para a expansão do setor de vitaminas e suplementos, lembra Temporão – Imagem: Brazil Africa Institute, Redes sociais e iStockphoto
Há três anos, uma pesquisa da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (Abiad) estimou que os suplementos alimentares estavam presentes em 59% dos lares do País. Esse mercado, segundo a consultoria Euromonitor, movimentou 6,6 bilhões de reais no Brasil em 2019. A reposição de vitaminas e nutrientes pode ser necessária para pessoas com condições clínicas específicas, mas a prescrição deveria ser feita apenas por profissionais da saúde. Não é o que ocorre no Brasil, onde os apresentadores de tevê e promotores de venda se encarregam da tarefa de prestar assistência a quem padece com doenças crônicas.
Alguns desses produtos milagrosos têm claro apelo religioso, a exemplo dos “feijões mágicos” do apóstolo Valdemiro Santiago. “O Estado não deve se imiscuir em temas relacionados à fé. O maior problema, a meu ver, são os produtos com roupagem pseudocientífica, que fazem alegações terapêuticas sem comprovação científica. Normalmente, as fabricantes têm o cuidado de não fazer afirmações taxativas nas embalagens, mas abusam no momento da publicidade”, observa Vecina Neto. “A Anvisa não tem braço para fiscalizar tudo que é anunciado. Tenho dúvidas, inclusive, se seria conveniente ampliar a estrutura da agência para essa finalidade. Por se tratar de propaganda enganosa, talvez seja mais adequado deixar a fiscalização sob a responsabilidade dos órgãos de proteção ao direito do consumidor. A Vigilância só costuma intervir quando o produto em si causa danos à saúde.”
O mercado de suplementos movimenta mais de 6 bilhões de reais por ano
Foi o que aconteceu em abril, quando a Anvisa suspendeu a venda de suplementos, chás e shakes produzidos pela Labornatus do Brasil. A medida foi tomada após a agência constatar graves violações das “boas práticas de fabricação” na sede da empresa, em Marataízes, no Espírito Santo. Foram identificados problemas na documentação, na estrutura física, na higiene da fábrica e dos trabalhadores, no controle de pragas, na potabilidade da água utilizada e no controle de qualidade de matérias-primas. Somente após a empresa se adequar às normas, a Anvisa relaxou a interdição, em 1º de junho deste ano.
Por outro lado, também há casos em que a Anvisa atuou contra empresas que faziam alegações terapêuticas não comprovadas. Em julho do ano passado, o órgão proibiu a venda, a distribuição, a produção e a publicidade da lipotramina e da lipozemina, vendidas irregularmente como emagrecedoras. Determinou ainda o recolhimento dos produtos ofertados pela Guki Nutracêutica. À época, a agência esclareceu que nenhuma alegação de emagrecimento para suplementos alimentares foi aprovada. “Dessa forma, qualquer propaganda que veicule esse tipo de alegação é irregular.” Ainda assim, uma simples pesquisa no Google revela a existência de centenas de produtos que prometem acelerar a perda de peso.
“O sistema de Vigilância Sanitária, com atuação nos níveis municipal, estadual e federal, não pode se eximir da responsabilidade de fiscalizar a publicidade desses produtos”, avalia o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, hoje presidente da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), estatal vinculada ao Ministério da Educação. “De fato, há numerosos casos de polícia envolvendo esse pantanoso mercado de suplementos, mas cabe aos profissionais da Vigilância fiscalizar e acionar as autoridades policiais ou do Ministério Público, quando for o caso. Se faltam profissionais, então é o caso de se abrirem novos concursos e investir na fiscalização.”
Os serviços de emergência sofrem o impacto do estímulo permanente à automedicação – Imagem: Daniel Castellano/Prefeitura de Curitiba
A avaliação é compartilhada pela nutricionista Ana Paula Bortoletto Martins, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP. “Hoje, o sistema nacional de Vigilância Sanitária padece com a redução do seu quadro de funcionários e um volume muito grande de produtos e locais para vistoriar, o que faz com que a fiscalização seja apenas parcial ou dependa de denúncias externas”, avalia a especialista, que coordenou o Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, de 2016 a 2020. “A Anvisa precisa ter um protagonismo maior. O Código de Defesa do Consumidor prevê punições a quem faz propaganda enganosa ou abusiva, mas os Procons locais por vezes não têm capacidade técnica para identificar ameaças à saúde pública.”
A vocação brasileira para o curandeirismo tem raízes profundas. Diante do atraso da medicina portuguesa, que não conseguiu evoluir entre os séculos XVI e XVII por conta da obscurantista perseguição do Tribunal do Santo Ofício, os habitantes do Brasil Colônia costumavam recorrer a mulheres que detinham conhecimentos ancestrais de uso de ervas medicinais para tentar curar toda a sorte de moléstias cotidianas, como documentou a historiadora Mary del Priore na obra História das Mulheres Brasileiras (1997). Somente no século XIX, com a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, a medicina começou a institucionalizar-se no Brasil, com a criação das primeiras academias médico-cirúrgicas, na Bahia, em 1808, e no Rio, em 1809. Após a Independência, não tardou para os jornais lucrarem com a publicidade de fármacos do incipiente mercado que se constituía, observa o ex-ministro José Gomes Temporão, autor do livro Propaganda de Remédios e o Mito da Saúde, publicado em 1984.
Em cinco anos, foram registrados quase 10 mil casos de intoxicação por vitaminas e suplementos
“Entre o fim do século XIX e início do século XX, tornaram-se comuns as propagandas de unguentos, xaropes e elixires com promessas de cura para os males da época. A partir dos anos 1930, com a chegada do rádio na casa das pessoas, esse tipo de anúncio vive sua época de ouro. Então essas peças chegam à televisão, sobretudo a partir da década de 1970, quando Pelé se torna garoto-propaganda de fortificantes e polivitamínicos”, observa Temporão. “Houve inúmeras tentativas para abolir, restringir ou regular de maneira mais adequada os medicamentos de venda livre e demais produtos com alegação terapêutica, mas isso não foi possível. Por isso, volta e meia nos deparamos com propagandas na tevê com alegações absurdas.”
Diante do alcance amplificado das redes sociais, com regulação frouxa e extremamente permissiva, o problema representa uma grave ameaça à saúde pública, avalia o ex-ministro. “Esse fenômeno tem uma dimensão econômica, porque movimenta um mercado bilionário e leva as famílias a gastarem recursos com produtos desnecessários ou sem eficácia alguma. Segundo, há uma dimensão epidemiológica, porque muitos desses produtos podem não ser seguros ou trazer efeitos colaterais. Por fim, há uma dimensão ideológica, que atribui a esses produtos poderes curativos inexistentes. É um processo de deseducação permanente, muito danoso em um país com níveis educacionais tão baixos”, enumera Temporão. “Historicamente, a Anvisa buscou disciplinar a publicidade desses produtos, mas não avançou muito. Agora, com a dimensão que o problema ganhou em uma internet totalmente desregulada, talvez seja hora de rever toda a legislação e apertar o cerco.”
No campo regulatório, o banimento da publicidade de cigarros é apontado como uma das maiores vitórias da Anvisa. A iniciativa contribuiu para a drástica redução da prevalência de fumantes com mais de 18 anos no Brasil: passou de 34,8%, em 1989, para 12,6% em 2019. Agora, o mercado clandestino de cigarros eletrônicos e vapes ameaça essa conquista. Em duas ocasiões, 2009 e 2022, a agência proibiu a comercialização desses produtos, por não haver qualquer benefício à saúde comprovado. Mesmo a alegação de redução de danos tem sido contestada por estudos mais recentes. Não é difícil, porém, encontrar os dispositivos à venda em tabacarias e shoppings de importados, além de haver farta oferta em incontáveis sites na internet.
“A Vigilância Sanitária não pode se eximir da responsabilidade de fiscalizar”, diz Chioro – Imagem: Luis Fortes/MEC
Não bastasse, o mercado clandestino vale-se de estratégias sujas de marketing para atrair jovens para o vício, como a criação do HealthVape, vendido com a absurda promessa de fortalecer a saúde do usuário, por meio da “inalação de vitaminas”. “O grande problema das fake news é que, muitas vezes, as pessoas querem acreditar nelas para justificar as próprias escolhas”, lamenta a médica sanitarista Deborah Carvalho Malta, professora associada da Escola de Enfermagem da UFMG. “Precisamos melhorar a capacidade de fiscalização do Estado e aumentar a difusão da informação sobre os riscos desses produtos clandestinos. Da mesma forma, é necessário avançar na regulação da internet, hoje uma terra sem lei. Quase todos os brasileiros têm celular, mas não necessariamente um pacote de dados para buscar outras fontes de informação além das mensagens recebidas pelo WhatsApp.”
Outra falácia é a alegação de que produtos naturais não causam danos à saúde. Vecina Neto lembra o caso da Hypericum perforatum, conhecida como erva-de-são-joão, até hoje vendida clandestinamente na internet. Por determinação da Anvisa, remédios fitoterápicos à base da planta, usados no tratamento de depressão leve a moderada, só podem ser vendidos com prescrição médica. O motivo? Estudos recentes comprovaram que a erva pode reduzir a eficácia de contraceptivos e antidepressivos, além de apresentar efeitos colaterais resultantes de interações medicamentosas. Além disso, o consumo exagerado de vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K), que não são facilmente excretadas pelo organismo, pode causar lesões hepáticas. A vitamina A, em particular, nem sequer deve ser consumida por gestantes, devido ao risco teratogênico, isto é, de causar danos ao feto.
“Os idosos estão particularmente mais vulneráveis aos apelos comerciais desses produtos. Por vezes, a propaganda induz o consumidor a acreditar que uma doença crônica, que só pode ser controlada, tem cura. E cobram pequenas fortunas pela solução milagrosa. Certa vez, minha própria mãe comprou um desses produtos e sofreu uma intoxicação”, relata o ex-ministro Chioro, que escreve sobre o tema em sua coluna, à pág. 17.
Somente nos últimos cinco anos, os Centros de Informação e Assistência Toxicológica registraram 9.903 casos de intoxicação por vitaminas e suplementos minerais. Desse montante, 2.445 casos ocorreram por ingestão de polivitamínicos associados com ciproeptadina, princípio ativo largamente utilizado para estimular o apetite. “Neste caso, as principais vítimas são crianças de 3 a 5 anos, que acabam atraídas pelas pílulas coloridas, assemelhadas a balas, ou por xaropes com gosto adocicado”, comenta Marlene Zannin, ex-presidente e integrante do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Centros de Informação e Assistência Toxicológica, a Abracit. Mesmo com a dosagem terapêutica correta, há registros de intoxicação pela substância, alerta a especialista.
Zannin relata o caso de um menino de 6 anos, previamente sadio, que deu entrada na emergência de um hospital com quadro de ataxia (falta de coordenação motora), midríase bilateral (dilatação anormal das pupilas) e alucinações visuais e auditivas. Exames indicaram a possibilidade de intoxicação por antidepressivos tricíclicos, mas os pais do garoto negaram a ingestão ou presença desse medicamento no ambiente doméstico. Somente após investigação mais detalhada, os médicos descobriram que a criança fazia uso de uma vitamina com ciproeptadina, que pode, em casos raros, resultar em efeitos adversos compatíveis com seu quadro clínico. “Nenhuma vitamina ou suplemento mineral está imune a reações adversas”, alerta. “Esses produtos só deveriam ser prescritos por médicos, com controle da dosagem e acompanhamento de eventuais complicações.” •
Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.