Sociedade

Maria Araújo, a mulher trans que passou na UFPE

Mulher transexual, negra e de infância pobre, Maria Clara Araújo causou comoção ao ser aprovada

Aos 18 anos, Maria Clara Araújo vai cursar Pedagogia. Na tatuagem, a frase em espanhol: “Não se nasce mulher, torna-se uma”
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Aos 18 anos, Maria Clara Araújo já se tornou um símbolo da luta pelos direitos das transexuais. Aprovada pelo Sisu para cursar Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco, a jovem de Recife comemora o fato de ser mais uma transexual matriculada em uma universidade pública. Passada a euforia, no entanto, um percalço na hora da matrícula: mesmo tendo encaminhado os papéis para adequar seus documentos com seu nome social, precisou fazer a matrícula com o seu nome civil, aquele que recebeu ao nascer e que não corresponde ao seu gênero.

Em entrevista a CartaCapital, Maria Clara conta que a boa notícia é que a universidade se mostrou sensível ao seu apelo e deve permitir o uso de seu nome social. O caso ganhou forte repercussão nas redes sociais nos últimos dias.

Após passar na faculdade, Maria Clara publicou um relato longo e forte em seu Facebook (leia a íntegra ao final do texto) no qual desabafa sobre todo o preconceito sofrido em sua vida como transexual: “Se ontem a professora tirou a boneca de minha mão, hoje o Reitor diz não ter demanda para meu nome social. Eu existo! Nós existimos!”, escreveu.

Maria Clara se acostumou a crescer num ambiente muito hostil. Uma menina periférica, filha de um pai trabalhador servente, como se define, a jovem trans precisou galgar seu espaço na sociedade para driblar o fato de ser mulher, transexual, pobre e negra. “Da mesma forma que eu tive que me construir mulher numa sociedade que te atribui um gênero, eu tive que me construir como uma pessoa negra numa sociedade racista.”

Foi sua mãe quem investiu para que estudasse em bons colégios públicos, distantes da periferia em que mora. Mesmo sendo muito católica, sua mãe adotiva nunca deixou transparecer qualquer traço de preconceito, segundo a jovem. “Cresci ouvindo que eu era uma pessoa diferente. E antes de eu escutar isso, mamãe foi quem escutou primeiro.”

Sua experiência na escola fez com que percebesse porque as transexuais abandonam os estudos. “Desde muito cedo o âmbito escolar me foi hostil. A escola sempre foi um local de retaliações”, conta. “Uma vez eu cortei o cabelo e estava me achando meio estranha, sabe? Ficou muito pequeno. Ai, eu fui de lenço pra escola. Quando cheguei, o próprio diretor olhou pra minha cara e disse: tire esse lenço agora, tome jeito de homem.”

O acontecimento marcou Maria Clara a ponto de ela refletir sobre o que enfrentaria quando se declarasse de vez como mulher. “Isso foi no início da transição, eu ainda estava me construindo. Daí eu coloquei na balança e pensei como seria minha vida daqui em diante.”

A luta pelo seu direito de ser Maria Clara é diária, e a faz perceber o quanto a sociedade é transfóbica e afasta as travestis das universidades e postos formais de trabalho. “Quando converso com minhas amigas travestis, é unânime: todas largaram a escola porque são rejeitadas naquele ambiente. Não tem transexual em universidade porque desde de cedo é colocado que o ambiente educacional não é lugar para elas”.

“Tem muita gente dizendo: porque você conseguiu, as outras poderiam conseguir também. Mas eu acho que não, porque se eu fui forte o suficiente pra lidar com tudo isso e ainda ter coragem de entrar na universidade, foi uma conquista pessoal. E torço para que muitas outras também consigam”, explica a caloura.

Longe das oportunidades, restam poucas opções. “A prostituição, embora seja uma situação de marginalidade extrema, é o único lugar em que essas meninas encontram um certo reconhecimento. E isso é muito triste, você só encontra reconhecimento numa situação muitas vezes sub-humana.”

Maria Clara já procurou emprego em áreas como telemarketing e vendas, mas nunca foi chamada. “Mesmo com boas entrevistas, nunca fui contratada.” Além das dificuldades de serem chamadas para as vagas, as transexuais precisam lidar com outras questões cotidianas. “Quando a menina trans consegue o emprego, em todo momento ela é deslegitimada, ela não pode usar o banheiro feminino, não pode ter seu nome social no crachá…”.

A escolha por Pedagogia não foi por acaso. “Anseio pautar uma educação mais libertária e inclusiva, e que realmente crie respeito. Se hoje não tem transexuais na faculdade é porque desde lá de baixo falta acolhimento na educação.”

Maria Clara não desanima: “A escolha é apenas uma: lutar ou lutar. E eu, Maria Clara Araújo, escolhi ser um símbolo de força. A revolução será travesti!”.

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Leia, após a foto, a íntegra do desabafo de Maria Clara no Facebook:

Maria Clara A mãe de Maria Clara raspa a sobrancelha da filha para comemorar sua aprovação na UFPE

Hoje, eu tive minha sobrancelha raspada por minha mãe, emocionada por eu ter sido a primeira pessoa de minha família a ser aprovada na Universidade Federal de Pernambuco. O que pra ela é uma realização pessoal de mãe que, diga-se de passagem, sempre me incentivou a estudar, para mim, uma travesti negra, é uma conquista com imenso valor simbólico. 

Desde muito cedo, o âmbito educacional deixou o mais explicito possível suas dificuldades em compreender as particularidades de minha vida: aos 6 anos, desejando ser a Power Range Rosa , aos 13 usando lenços na cabeça, aos 18 implorando pelo meu nome social e, logo, o reconhecimento de minha identidade de gênero. Nenhuma foi atendida. Nenhuma foi levado a sério como algo que eu, enquanto um ser humano, preciso daquilo para me construir e ter minha subjetividade. 

Se ontem a professora tirou a boneca de minha mão, hoje o Reitor diz não ter demanda para meu nome social. 

Eu existo! Nós existimos! 

As violências por conta de minha identidade sempre trouxeram retaliações em salas, corredores e banheiros durante toda minha permanência na escola. Lembro-me de, inúmeras vezes, minhas amigas entrando em rodas feitas por rapazes para me bater e tentarem me salvar. ‘’Para com isso! Deixa ela!’’

Não era só comigo, mas fui a única que aguentei. Vi, de pouco em pouco, outras possíveis travestis e transexuais desaparecendo daquele ambiente, porque ele nunca simbolizou um espaço de acolhimento, educação e aprendizagem. Mas sim de opressão, dor e rejeição. 

Uma vez encontrei na rua com uma das que estudou comigo. Eu voltava do curso, ela ia se prostituir. ‘’Mulher, o que tu ainda faz em lugares desse?’’, ela me perguntou. Indignada, aliás. Ela me questionava com a testa franzida porque eu insistia em permanecer em um lugar que, cada vez mais, desmarcava que eu não era bem-vinda. Quando fui? 

Os banheiros femininos estão com as portas fechadas, o nome nas cadernetas não pode ser alterado e os olhares de escárnio estão por todas as partes. De corredor à sala, de banheiro à secretaria. 

‘’O que ela faz aqui?’’, se perguntam diariamente ao me ver andando na luz do dia. Afinal, eu, enquanto travesti, devo ser uma figura noturna. Assim, sedimentando a posição que a sociedade me atribuiu: de sub-humana. E quando falo isso, meus queridos, estou sendo o mais honesta que posso.
Olhe ao seu redor! Quantas travestis e mulheres trans você se depara no seu dia a dia? Quantas estão na sua sala de aula? Quantas te atendem no supermercado? Quantas são suas médicas?

Espere até as 23hrs. Procure a avenida mais próxima. As encontrará. Porque lá, embaixo do poste clareando a rua escura, é onde nós fomos condicionadas a estar por uma sociedade internalizadamente transfóbica.

Quando vi minha aprovação, foi uma alegria por eu ter tido uma conquista, mas para além disso, eu tive a consciência de forma imediata, que dentro de minhas perspectivas de vida, ver uma pessoa como eu em um espaço acadêmico é algo utópico. Até quando será? Até quando minhas irmãs irão ter que ser submetidas a essas condições de vida?

Sem moradia, sem estudo, sem trabalho. Se prostituindo por 20 reais.

Onde está a dignidade?

Não somos iguais. Eu, travesti, não sou igual a você. Eu, travesti, além de ter batalhado por minha entrada, a partir de agora irei batalhar por minha permanência.

Optei por Pedagogia com a esperança de poder ser um diferencial. De finalmente pautar a busca por uma educação que nos liberta e não mais nos acorrente. 

A escolha é apenas uma: lutar ou lutar. E eu, Maria Clara Araújo, escolhi ser um símbolo de força. 

A revolução será travesti!

10464048_832740483435420_8163911444488468499_n.jpg Maria Clara comemora a aprovação na UFPE ao lado de sua mãe

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