Sociedade

Como Francisco se tornou inimigo da extrema direita ocidental

A movimentação política anti-papa encontra eco dentro do próprio Vaticano

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A rejeição que o papa argentino experimenta desde que assumiu o Vaticano nunca foi segredo entre a ala ultraconservadora da igreja. Essa repulsa ultrapassa a praça São Pedro e se mistura à política: ele foi apontado como um “inimigo” por Steve Bannon, estrategista da extrema direita e ex-diretor de campanha de Donald Trump.

Evocando o resgate das tradições judeu-cristãs do Ocidente e o fim da imigração, Bannon está em plena cruzada pela Europa para alavancar os candidatos de extrema direita nas eleições europeias, em maio. Um país recebe atenção especial: na Itália, ele corteja o governo populista de Roma, uma influência que começou bem antes de a Liga Norte chegar ao poder.

Segundo reportagem publicada na revista britânica The Observer, Bannon se aproxima desde 2016 do agora ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, a quem aconselhou a reagir publicamente às declarações do papa sobre a imigração, um dos temas mais caros aos ultranacionalistas.

Desde o encontro, Salvini passou a não perder uma ocasião de tuitar contra Francisco. Ele declarou, por exemplo: “O papa diz que os migrantes não são um perigo. Que besteira!”. Salvini já foi fotografado com uma camiseta na qual se lia “Meu papa é Bento” – uma referência ao conservador Bento 16, que renunciou ao papado em 2013.

“Papa está completamente errado”

Em uma entrevista à rede NBC em março, Bannon reagiu a advertências do papa quanto ao perigo representado pela emergência de movimentos populistas. “Você pode percorrer a Europa toda e o populismo está pegando fogo. O papa está totalmente errado”, respondeu.

“Logo no início do pontificado, o papa Francisco foi atacado pelos católicos do mundo todo que se identificam com movimentos nacionalistas e xenófobos. Os apelos do papa pelo acolhimento e a solidariedade ao outro o fizeram ser considerado até por grandes partidos de extrema direita, como a Liga Norte, como inimigo contra o qual é preciso reagir”, analisa o pesquisador Jean-Yves Camus, um dos maiores especialistas em extrema direita da França.

A movimentação política anti-papa encontra eco dentro do próprio Vaticano: o cardeal americano Raymond Burke, crítico ferrenho da atuação de Francisco, é o maior aliado da dupla Bannon-Salvini. Ele ajudou a viabilizar o projeto do estrategista americano de abrir um centro de estudos de direita nacionalista, situado a cerca de 100 quilômetros do Vaticano. Instalado em um antigo monastério, o local tem vocação a se tornar um núcleo de propagações do ideal ultraconservador de Bannon. Burke é o presidente honorário do instituto.

Ausência de liderança religiosa

Os principais pontos sensíveis que unem o trio contra Francisco são dois: a defesa dos migrantes e a maior abertura da igreja aos homossexuais, temas que, de uma maneira mais ampla, refletem o apreço de Francisco aos direitos humanos. Com essa pauta, o papa se coloca como opositor, e não como aliado natural da agenda conservadora. A articulação contra o pontífice também responde a uma carência do movimento de ultradireita ocidental de um líder religioso.

Com defesa dos migrantes e maior abertura da igreja aos homossexuais, papa se coloca como opositor, e não como aliado natural da agenda conservadora (Foto: Mazur)

Em fevereiro, durante uma reunião da igreja para tratar dos abusos sexuais cometidos por padres, Burke divulgou uma polêmica carta aberta, na qual afirmava que “o mundo católico está à deriva” e os abusos sexuais de menores fazem parte “de uma crise muito maior” originada “na praga da agenda homossexual”. A fraca reação de Francisco ante aos escândalos, aliás, tem sido utilizada de munição para a ala ultraconservadora do Vaticano tentar enfraquecer o pontífice por dentro da instituição.

 

O desprezo da extrema direita pelo papa levanta dúvidas até sobre a segurança do pontífice. Grupos minoritários, como o francês Brigandes, chegaram a pedir a morte de Francisco, em um vídeo que acabou censurado pelo YouTube.

Apesar da hostilidade, Camus avalia que o pontífice acaba protegido por um sistema de submissão à autoridade papal na igreja. “Os católicos têm o dever da obediência e a grande maioria deles aprova o papa Francisco, que aos seus olhos é infalível. Steve Bannon e seus amigos dizem que ele é infalível sob o ponto de vista dogmático, mas não necessariamente quando faz pastoral, ou seja, quando interpreta o Evangelho”, explica Camus, à RFI. “Na questão da imigração, Bannon tenta convencer que a opinião do papa é pessoal e os católicos não são, portanto, obrigados a concordar.”

Correntes no Brasil de Bolsonaro e na França de Le Pen

O Brasil de Bolsonaro não escapa dessa campanha contra Francisco. O papa, chamado de “esquerdista” por aliados do presidente, é alvo frequente dos disparos pelo Twitter do ideólogo dos bolsonaristas, Olavo de Carvalho.

Ele pediu, por exemplo, que “Bergoglio seja retirado do trono de Pedro a pontapés, e o quanto antes”. Tanto Olavo quanto os filhos de Bolsonaro já se encontraram mais de uma vez com Steve Bannon, antes e depois da eleição do ex-militar ao Planalto.

Na França, o descontentamento dos católicos praticantes com o papa traduziu-se nas urnas: nas últimas eleições presidenciais, 38% deles votaram em Marine Le Pen e contra Emmanuel Macron. Um dos maiores especialistas na religião do país, o escritor Henri Tincq, autor de La Grande Peur des Catholiques de France (O Grande Medo dos Católicos da França, em tradução livre), alerta para o viés reacionário que uma parte dos fiéis franceses passou a adotar, ante ao papado progressista de Francisco.

Até a postura simples e o linguajar acessível do argentino viraram alvo de críticas desses católicos, em geral de classe média e média alta, exasperados em ver a tentativa do papa de reaproximar a igreja do povo. Ao misturar esses sentimentos à política, a reação se volta contra os defensores da laicidade – representados por Macron, ante a uma Le Pen que pregava a exaltação das origens cristãs da França e contrária à suposta invasão islâmica do continente europeu.

“A ascensão das forças de direita, e até de extrema-direita, no catolicismo francês é uma cruel decepção. Ela se traduz em reflexos identitários, neoconservadores, que desfiguram a história e o patrimônio da Igreja em nosso país”, afirmou Tincq ao jornal Libération, no ano passado. Envolvido na preparação de um novo livro, o autor recusou o pedido de entrevista à RFI.

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