Sociedade

Cinco anos depois, avanços do Estatuto da Igualdade Racial são controversos

Maioria das normas não é obrigatória e algumas penas são mais brandas e até inconstitucionais, afirmam especialistas. Mas outros veem efeitos positivos, que se refletem sobretudo na política de cotas

Cinco anos depois, avanços do Estatuto da Igualdade Racial são controversos
Cinco anos depois, avanços do Estatuto da Igualdade Racial são controversos
A principal crítica ao Estatuto é que a maioria das normas não é obrigatória
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Por Marina Estarque

O Estatuto da Igualdade Racial teve impactos controversos no combate ao racismo no Brasil. Entre os especialistas ouvidos pela DW Brasil, há quem defenda a sua importância, mas há também quem o considere prejudicial para a luta do movimento negro no país.

Composto por 65 artigos, o Estatuto trata de políticas de igualdade e afirmação nas áreas da educação, cultura, lazer, saúde e trabalho, além da defesa de direitos das comunidades quilombolas e dos adeptos de religiões de matrizes africanas.

A publicação da lei completa cinco anos nesta terça-feira 21. Também nesta semana, na quarta-feira, a ONU lança oficialmente no Brasil a Década Internacional dos Afrodescendentes, com o objetivo de propor medidas concretas para combater o racismo e a desigualdade racial em todos os países.

Para o ativista e diretor executivo da ONG Educafro, Frei David, este é um momento importante para se refletir sobre as políticas raciais públicas, entre elas o Estatuto. Segundo ele, o conjunto de leis significou um retrocesso. “Foi um tiro no pé bem grave”, afirma.

Ele cita como exemplo o Termo de Ajustamento de Conduta assinado pela São Paulo Fashion Week com o Ministério Público Estadual, um ano antes da aprovação da lei, estabelecendo cotas de 10% para modelos negros.

“Quando saiu o Estatuto, nós exigimos que eles ampliassem para 20%, já que 35% da população de São Paulo é negra. Mas eles disseram que não, porque o estatuto é autorizativo, não determinativo. Ou seja, faz quem quer. E o MP deu razão a eles. Quanto não havia o Estatuto, o MP podia obrigar, depois acabou essa possibilidade”, exemplifica Frei David.

A principal crítica ao Estatuto é que a maioria das normas não é obrigatória e não prevê penas para o seu descumprimento – com exceção de leis já existentes, que foram incorporadas.

“A proposta original foi desfigurada. Isso comprometeu muito a eficácia do Estatuto”, afirma Frei David. Para ele, o Estatuto reflete o pequeno poder político dos negros no Congresso Nacional, onde eles são menos de 2%.

Penas mais brandas

O promotor de Justiça e professor de Direito Penal Christiano Jorge Santos, da PUC-SP, concorda que o Estatuto deixou a desejar. “Em relação ao acesso à Justiça são normas programáticas, que não resolveram nada. Não tem nada de concreto. Não houve nenhuma mudança na prática por conta do Estatuto”, diz.

Ele lembra que o crime de racismo já está previsto desde a Constituição de 1988 como inafiançável e imprescritível, com pena de reclusão. A lei 7716, de 1989, regulamentou esse crime.

Santos ressalta ainda que houve mudanças para pior na área penal, com alterações que, em certos casos, são contraditórias com a legislação em vigor e permitem penas menores. Ele cita como exemplo o artigo 60, que trata do racismo no local de trabalho. “Há uma parte inconstitucional porque a Constituição prevê reclusão e, no Estatuto, há uma punição com prestação de serviços à comunidade, uma pena menor”, argumenta. “Foi muito mal redigido. Ele apresentou algumas alterações que atrapalharam.”

Outra fragilidade do Estatuto é que não há previsão de recursos para as políticas afirmativas e para o monitoramento delas, o que torna difícil a avaliação dos avanços e também dos gargalos. “Defendo o Fundo Nacional de Combate ao Racismo. Mas, sem recursos e sem acompanhamento, o Estatuto vira uma letra morta”, afirma o professor de sociologia Ivair dos Santos, da Universidade de Brasília (UNB).

Cotas são efeito positivo

Para alguns estudiosos, apesar de todos os problemas, o balanço de cinco anos do Estatuto é positivo. O conjunto de leis, que tramitou por sete anos no Congresso, é visto por esses especialistas como uma síntese das demandas históricas do movimento negro.

Segundo Hédio Silva Júnior, advogado e professor de direito da Faculdade Zumbi dos Palmares, o grande avanço – presente no Estatuto, mas não criado por ele – é a mudança de abordagem do racismo, que deixa de ser apenas punitiva, para incluir uma combinação de instrumentos.

“A punição desencoraja e é exemplar, mas sozinha não resolve um racismo estrutural. Além dela, precisamos de políticas afirmativas, que mudam as taxas de desigualdade; e de educação, que alteram o sistema de valores”, explica o professor, que já foi secretário de Justiça do Estado de São Paulo.

Os especialistas que consideram o Estatuto positivo argumentam que o documento estabeleceu princípios e inspirou iniciativas importantes, como as leis que criaram cotas nas universidades federais (2012) e no funcionalismo público federal (2014).

“É verdade que o Estatuto não obriga, mas o seu caráter permissivo não tem colocado obstáculos às ações afirmativas”, diz Silva. Ele argumenta também que, no conjunto de leis, há a indicação de deveres do Estado, o que permitiria à sociedade cobrar dos poderes públicos uma atuação eficiente e a defesa de direitos.

As cotas são unanimidade entre os especialistas. Elas são, de longe, as medidas que mais avançaram entre as políticas afirmativas, segundo eles. “Elas são o cartão de visita e estão transformando o Brasil. Nas universidades, essas políticas começaram no inicio dos anos 2000, no Rio de Janeiro, e tiveram resultados muito positivos”, afirma Silva.

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