Sociedade

Chacina de Paraisópolis é uma nova prova de autoritarismo galopante

Sob aplausos de uma fração da sociedade e amparada por um discurso cínico, a PM mata jovens em um baile funk em São Paulo

Embate. Moradores de Paraisópolis sepultam uma das jovens vítimas. O governo Doria defende a ação da polícia
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A Polícia Militar de São Paulo chacina garotos que trabalham e estudam num baile em Paraisópolis. Ambientalistas em trabalho voluntário em Alter do Chão, no Pará, são presos sob falsa e mirabolante acusação de iniciar as queimadas que combatiam. O noticiário dá conta da ocorrência de tortura contra cidadãos praticada por militares durante a intervenção no Rio de Janeiro. E por aí vai.

A nova forma de autoritarismo, líquida, por meio de medidas de exceção, tem semeado violência primitiva e abjeta na relação do Estado com os indivíduos, em especial os pobres. Fez parte do longo processo de sua implantação a criação pelos meios de comunicação de um circuito afetivo de medo e violência na população, que antepara qualquer ato de barbárie estatal, por mais imoral e desumano que seja.

A disputa, interpretada pelo escritor Achiles Mbembe, entre um niilismo primitivo e violento e o humanismo ocorre no País com franca vantagem do primeiro. No ambiente social observa-se o desprestígio de virtudes humanistas até pouco tempo incontestáveis, ao menos no âmbito do discurso, como bondade, solidariedade, compaixão, generosidade, prudência etc. A criação de uma subjetividade ultraindividualista e perversa faz parte desse processo autoritário que vai muito além do âmbito governamental e se transfere para quase todas as esferas da existência, caracterizando mais que uma forma política, uma forma de vida.

O niilismo cognitivo é também parte essencial desse processo. Os profundos conhecimentos e consensos, entre eles o fato de o planeta não ser plano e de as vacinas serem uma forma eficaz de prevenção de doenças, bem como os direitos e garantias serem elementos essenciais para a obtenção de decisões judiciais justas, são descartados sem pejo, estimulados por uma noção alienada do discurso e da verdade, como se percepção, linguagem, significado e sentido fossem construções criativas do indivíduo e só dele. Uma incompreensão que eventuais esferas de relatividade não se confundem com alienação.

A ralé, base social do populismo autoritário, festeja a violência vulgar e covarde da polícia

A consequência no âmbito jurídico é nefasta ao extremo. Não apenas séculos de construção de significado e sentido dos direitos são desprezados, como cada aplicador da lei e da Constituição se julga em condições de interpretá-las por esse viés alienante, atribuindo a elas o sentido necessário a realizar seus intentos pessoais e não o sentido comum que a vida democrática e a comunicação normativa exigem. 

Matar, de crime passa a ser lícito, a depender de quem é o agente. Direitos e garantias são aplicados ou não de acordo com o réu (aos amigos os termos, aos indesejáveis os rigores da lei). O arbítrio é a natureza dessa hermenêutica de exceção. Liquefaz-se a fronteira entre o lícito e o ilícito próprio do Estado de Direito. 

A degradação dos direitos e da Constituição não se dá por revogação, mas pelo esvaziamento de sentido, a erosão de seu significado. O texto constitucional permanece a existir formalmente como mera aparência, mas de fato temos instaurado no País o que o jurista italiano Luigi Ferrajoli chama de “processo desconstituinte”, que reduz a nossa Constituição a uma mera aparência, uma maquiagem, fetiche de uma força normativa, de fato, inexistente.

A Constituição do ano III, em seu último artigo, determinava que o “povo francês confia a presente Constituição à lealdade” dos órgãos incumbidos de sua aplicação e à “vigilância dos pais de família, às esposas e às mães, aos afetos dos jovens cidadãos, à coragem de todos os franceses”. Ou seja, o velho texto francês compreendia que, quando falham as cortes e Parlamentos na guarda do sentido comum da Constituição, a esta só resta o povo como defensor. Se o povo não a garantir, não haverá quem o faça.

O problema maior, creio, é que parte significativa da sociedade abandonou o sentido axiológico e político de povo na democracia, aqueles que se reúnem num mesmo território e que entendem a comunidade que forma a luz da realidade existencial humana, fraturada em interesses, cuja composição pacífica depende da política democrática e do direito. Preferem traduzir-se no que a filósofa Hannah Arendt chama de ralé, a base social do populismo autoritário que procura no indivíduo ou estamento líder a ordem, a segurança para aplacar seu medo e não a justiça, a tolerância ou a paz.

Estarrece ler nas redes sociais os comentários ao anúncio da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo, que postulava pela investigação da ação policial em Paraisópolis, algo óbvio a uma entidade do ofício jurídico. Advogados com declarações bárbaras, estabelecendo a terrível relação entre ir a um baile funk e, por isso, ser bandido e como tal merecer a morte. Racismo e genocídio embalados em punhos de renda, cada vez mais puída. 

Esse autoritarismo líquido das medidas de exceção, que envolve governo, sistema de Justiça e nossa sociabilidade, só pode ser combatido pela assunção clara dos valores e princípios humanísticos que emanam de nossa Constituição. Contra a barbárie só a Constituição empunhada por seu guardião social, o povo. Aqueles que não se prestam ao papel de ralé.

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