Sociedade

Câmara tem espetáculo grotesco de discriminação racial

Partidos de oposição pedem que a PGR avalie a conduta dos parlamentares

Entre amigos. Após vandalizar uma exposicão, Coronel Tadeu (de paletó azul) foi saudado pelo colega Daniel Silveira
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“É evidente que mais negros morrem. Eu tive o prazer e o desprazer de operar em todas as favelas do estado do Rio de Janeiro. Tem mais negros com arma, tem mais negros cometendo crime, mais negros confrontando a polícia”, afirmou, às vésperas do Dia da Consciência Negra, o deputado Daniel Silveira, do PSL. Policial, ele conquistou uma vaga no Parlamento no embalo da onda bolsonarista, aproveitando-se da repugnante popularidade alcançada por destruir uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco, executada com quatro tiros na cabeça em março de 2018. Agora é um dos mais agressivos integrantes da Bancada da Bala no Congresso. “Não venha atribuir à Polícia Militar as mortes, porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado.”

O plenário da Câmara dos Deputados serviu de palco para o grotesco discurso racista, feito por Silveira em defesa do ato igualmente deplorável do colega Coronel Tadeu, que minutos antes havia vandalizado uma charge da mostra (Re)Existir – Trajetórias Negras Brasileiras, exposta nos corredores da Casa Legislativa. De autoria do cartunista Carlos Latuff, a peça denuncia o genocídio da população preta e parda nas periferias das grandes cidades, com a representação de um corpo negro estendido no chão, enquanto um policial se afasta com sua arma fumegante. Em vídeo divulgado no Twitter, o parlamentar gaba-se do feito. “Isso aqui não vai ficar na parede, é contra a polícia. A polícia está aí para defender a sociedade”, disse Tadeu, também do PSL.

O PT apresentou uma queixa contra o deputado no Conselho de Ética da Câmara por quebra do decoro parlamentar. “A destruição da exposição trata-se de ato de extrema gravidade e que reforça as estatísticas de uma cultura racista e de violência diária contra a população negra”, afirma o texto, subscrito pela deputada Gleisi Hoffmann, presidente do partido. Um grupo de 14 parlamentares do PSOL, PCdoB, PSB e PT encaminhou uma representação à Procuradoria-Geral da República, na qual pede a apuração das práticas de discriminação racial e apologia do crime imputadas a Silveira e Coronel Tadeu. “O racismo, promovido e incentivado pelos parlamentares representados, demonstra a face mais perversa da lógica colonial”, diz a peça.

Nas redes sociais, Latuff foi certeiro na reflexão sobre o simbolismo do ataque. “Se fazem isso contra um cartaz, imagina contra gente de carne, osso e pele negra”, escreveu o autor da charge vandalizada. Os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública dão uma pista. Embora os negros constituam pouco mais da metade da população, 75,4% dos mortos em intervenções policiais em 2017 e 2018 eram pretos ou pardos. Da mesma forma, três em cada quatro vítimas de homicídio são negras.

O lamentável ataque racista protagonizado pelos parlamentares acabou por obscurecer uma das mais relevantes conquistas obtidas pelo movimento negro no Brasil, último país das Américas a abolir formalmente a escravidão. De acordo com o relatório “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, lançado recentemente pelo IBGE, pela primeira vez na história os estudantes pretos e pardos passaram a compor a maioria nas universidades públicas brasileiras (50,3%), em 2018. 

Alerta. Frei David e Edneia Gonçalves cobram ações para garantir a permanência dos estudantes negros nas universidades

“Ainda que esse grupo continue sub-representado, uma vez que os negros constituem 55,8% da população, não há como ignorar o êxito das ações afirmativas, que democratizaram o acesso à rede pública de ensino superior”, afirma a socióloga Edneia Gonçalves, da ONG Ação Educativa. “Temos de celebrar essa conquista, não há dúvida, mas também precisamos fazer algumas ponderações. O trabalho não mostra como esses estudantes estão distribuídos nos cursos de graduação. Em áreas como Medicina, Engenharia e Direito ainda somos minoria”, observa. “Além disso, devemos levar em conta as especificidades do racismo brasileiro. Do total de alunos negros, quantos são pretos e quantos são pardos? Destes, quantos têm características físicas mais próximas dos pretos ou dos brancos? No Brasil, o racismo expressa-se, sobretudo, pela cor da pele, e não pela descendência.”

A Lei nº 12.711, sancionada por Dilma Rousseff em 2012, garante a reserva de metade das vagas em cursos de graduação de universidades federais a estudantes que cursaram o Ensino Médio integralmente na rede pública. As cotas raciais incidem sobre essas matrículas, e as instituições de ensino devem levar em conta, na hora de preenchê-las, o porcentual de cidadãos autodeclarados pretos, pardos e indígenas no estado em que estão localizadas. “O problema é que as fraudes abundam. Em cursos mais concorridos, como Medicina, às vezes a maioria das cotas é preenchida por brancos fraudadores, que se declaram pardos para se beneficiar indevidamente da política afirmativa”, denuncia o frei David Santos, diretor-executivo da Educafro, ONG dedicada à democratização do acesso ao Ensino Superior no Brasil. “As universidades não estão cumprindo o seu dever de fiscalizar a execução das ações afirmativas. Por isso, em 2020, cogitamos apresentar denúncias ao Ministério Público contra reitores por improbidade administrativa.” 

Avanço. Segundo o IBGE, pretos e pardos representam 50,3% dos alunos de graduação nas instituições públicas

Não é tudo. A permanência dos estudantes negros no Ensino Superior está ameaçada pelos cortes promovidos pelo governo federal, sobretudo aqueles que impactam as bolsas de pesquisa e os programas de auxílio à moradia e à alimentação, alerta Santos. “As maiores vítimas são os pretos e pardos, que sabidamente têm um poder aquisitivo inferior ao dos brancos.” 

Beneficiária das cotas, a pesquisadora Tamiles Alves confirma a dificuldade. Nascida em Ubatã, município de 25 mil habitantes no litoral baiano, ela conseguiu graduar-se em Comunicação Social e fazer mestrado pela UFBA, financiada por uma bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia. Recentemente, foi aprovada em um programa de doutorado em políticas públicas na USP, mas desta vez não obteve o apoio de qualquer agência de fomento, nem das federais CNPq e Capes nem da estadual Fapesp. “Tenho contrato de trabalho temporário com um centro cultural, mas daqui a três meses isso acaba. Não sei o que fazer para me sustentar.” Atualmente, ela vive de favor na casa das irmãs no Jardim Ângela, um dos bairros mais pobres e violentos da capital paulista.

Nas universidades públicas, os negros agora são maioria, mas o apartheid persiste no mercado de trabalho

“O fato de ter 50,3% de negros nos cursos de graduação não quer dizer que as universidades públicas estão oferecendo acesso equitativo”, acrescenta Edneia Gonçalves, da Ação Educativa. “A permanência passa por numerosos desafios que não se limitam à questão econômica. Vou dar um exemplo didático. Em 2003, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi alterada, e passou a prever o ensino de história e cultura africana nas escolas. Mas as universidades não modificaram os seus conteúdos para formar os professores da Educação Básica. Permanecemos com um currículo eurocêntrico.”

O acesso ao Ensino Superior tampouco é sinônimo de um futuro profissional emancipatório. O mesmo estudo do IBGE que identificou uma maioria negra nas universidades públicas atesta a manutenção do apartheid no mercado de trabalho. Os negros representam dois terços dos desempregados (64,2%) e dos subutilizados (66,1%) – aqueles que trabalham menos de 40 horas semanais ou sobrevivem de bicos. Em 2018, enquanto 34,6% dos brancos estavam na informalidade, entre os pretos e pardos o porcentual atingiu 47,3%.

A desigualdade de renda é abissal. Em 2018, o rendimento médio mensal dos brancos (2.796 reais) era 73,9% superior ao dos negros (1.608 reais). As disparidades mantêm-se mesmo quando se comparam trabalhadores com o mesmo nível de escolaridade. Na distribuição dos cargos gerenciais, atesta o IBGE, 68,6% são ocupados por brancos e 29,9%, por pretos ou pardos.

“O racismo é um sistema de dominação social que opera nos planos comportamental, cultural e institucional. Muita gente não percebe, mas uma das formas mais comuns de mascarar o problema é reduzi-lo às condutas individuais, quando as práticas discriminatórias estão entranhadas nas instituições”, afirma o advogado Adilson Moreira, doutor em Direito Constitucional Comparado pela Universidade Harvard e professor da Universidade Mackenzie. “Hoje, em grande parte das ocupações de nível superior, as contratações ocorrem por meio das redes de relacionamento. Quando o filho precisa de estágio em um escritório de advocacia, o pai médico passa a mão no telefone e pede para o amigo do clube empregá-lo. Depois retribui o favor quando a filha desse amigo precisar de indicação para a residência clínica. Como os brancos costumam ter, em seus círculos de amizades mais íntimas, outros brancos, o favoritismo racial persiste.”

Autor de numerosos livros sobre a questão racial, entre eles O Que É Racismo Recreativo (Editora Letramento), Moreira presta consultoria para companhias que desejam aumentar a participação de minorias em seus quadros de funcionários. “Um número cada vez maior de empresas busca adotar modelos de governança corporativa antidiscriminatórios, mas o caminho é longo”, afirma. “O Estado pode e deve, porém, criar programas de incentivos tributários para que as organizações adotem programas de inclusão, garantindo acesso equitativo às oportunidades para negros, mulheres, LGBTs e outros grupos.” De fato, com um legado de três séculos e meio de escravidão, o governo não pode mesmo se esquivar da responsabilidade.

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