Sociedade

Cabra marcado para resistir

Augusto Marcelino da Silva faleceu aos 84 anos, após meio século de lida no campo e resistência ao latifúndio

Cabra marcado para resistir
Cabra marcado para resistir
Augusto Marcelinho da Silva (na foto com seu neto Bruno) tornou-se símbolo local daqueles que lutam contra a invasão da monocultura na Comunidade KM 69, hoje extinta dos mapas regionais. Foto: Luiz Antonio Cintra
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“Antes eu caçava preá e outros bichos pra comer, além de plantar algodão na parte da fazenda que deixavam pra mim. Também tinha muita fruta por aqui, carnaúba. E a água no poço dava pra gente beber”, me dizia o cearense Augusto Marcelino da Silva, então com 82 anos, mais de meio século de trabalho intenso no campo como meeiro de um latifundiário local.

Havia motivos de sobra para os verbos serem conjugados no passado. Em agosto de 2010, quando o visitei para uma para CartaCapital, ao redor da casa do seu Augusto, um sítio modesto e agradável na zona rural de Limoeiro do Norte, interior do Ceará, o que se via no entorno era a terra nua, uma área de 1,5 mil hectares pertencentes à multinacional norte-americana Del Monte Fresh Fruits. E um poço no quintal, agora de água insalubre. Morando na região desde 1977, a história bateu à porta de seu Augusto alguns anos atrás – e foi engolindo aos poucos a vida pacata que ele escolhera para a sua família.

Na tarde em que me sentei na varanda do seu Augusto, ficamos os dois olhando para fora: a casa era uma ilha em meio a um campo que tinha sido usado para plantar abacaxi até uns meses atrás e que logo estaria coberto de bananeiras. Tudo da Del Monte, inclusive o “veneno” usado em pulverizações aéreas. “O senhor não teme medo desse veneno ser trazido pelo vento?”, perguntei. “Esse veneninho vai fazer mal pra gente? Ele não mata nem muriçoca”, respondeu-me, sem deixar margem a dúvidas.

O tempo passou, seu Augusto resistiu até onde pode. “Recentemente, um mês antes de seu falecimento, fizemos um trabalho de campo (eu, Jucelino, Cintia, Tadeu e Thomaz Jr.) na comunidade. Ele dizia que ainda estava vivo porque teimava em viver e que ia continuar teimando”, me escreveu a geógrafa Bernadete Freitas, profunda conhecedora dos inúmeros problemas ambientais e sociais decorrentes da fruticultura na região. “Liguei esses dias para dona Rosa (a viúva), que se encontra numa tristeza imensa. Os filhos querem que ela saia da comunidade. Acontecendo isso, provavelmente a comunidade em breve não existirá, já que restam duas ou três famílias.”

Nos últimos anos, seu Augusto foi homenageado com um documentário (“KM69: Memória e Resistência”), de Bernadete Freitas e colegas de universidade. E tornou-se símbolo local daqueles que lutam contra a invasão da monocultura na Comunidade KM 69, hoje extinta dos mapas regionais.

“Antes eu caçava preá e outros bichos pra comer, além de plantar algodão na parte da fazenda que deixavam pra mim. Também tinha muita fruta por aqui, carnaúba. E a água no poço dava pra gente beber”, me dizia o cearense Augusto Marcelino da Silva, então com 82 anos, mais de meio século de trabalho intenso no campo como meeiro de um latifundiário local.

Havia motivos de sobra para os verbos serem conjugados no passado. Em agosto de 2010, quando o visitei para uma para CartaCapital, ao redor da casa do seu Augusto, um sítio modesto e agradável na zona rural de Limoeiro do Norte, interior do Ceará, o que se via no entorno era a terra nua, uma área de 1,5 mil hectares pertencentes à multinacional norte-americana Del Monte Fresh Fruits. E um poço no quintal, agora de água insalubre. Morando na região desde 1977, a história bateu à porta de seu Augusto alguns anos atrás – e foi engolindo aos poucos a vida pacata que ele escolhera para a sua família.

Na tarde em que me sentei na varanda do seu Augusto, ficamos os dois olhando para fora: a casa era uma ilha em meio a um campo que tinha sido usado para plantar abacaxi até uns meses atrás e que logo estaria coberto de bananeiras. Tudo da Del Monte, inclusive o “veneno” usado em pulverizações aéreas. “O senhor não teme medo desse veneno ser trazido pelo vento?”, perguntei. “Esse veneninho vai fazer mal pra gente? Ele não mata nem muriçoca”, respondeu-me, sem deixar margem a dúvidas.

O tempo passou, seu Augusto resistiu até onde pode. “Recentemente, um mês antes de seu falecimento, fizemos um trabalho de campo (eu, Jucelino, Cintia, Tadeu e Thomaz Jr.) na comunidade. Ele dizia que ainda estava vivo porque teimava em viver e que ia continuar teimando”, me escreveu a geógrafa Bernadete Freitas, profunda conhecedora dos inúmeros problemas ambientais e sociais decorrentes da fruticultura na região. “Liguei esses dias para dona Rosa (a viúva), que se encontra numa tristeza imensa. Os filhos querem que ela saia da comunidade. Acontecendo isso, provavelmente a comunidade em breve não existirá, já que restam duas ou três famílias.”

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