Sociedade

“Bolsonaro é o próprio túmulo do Carnaval”, diz historiador

Para Luiz Antonio Simas, o Carnaval é “resistência” que transcende a bagunça e avança para além do feriado

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Prepare-se para a safra recorde de laranjas. Nas ruas do País, um pulsante laranjal desfilará em centenas, quiçá milhares, de blocos carnavalescos. Outras fantasias, não tanto cítricas, porém ainda mais contundentes, tomarão até cidades como São Paulo e Belo Horizonte, outro dia mesmo destinos seguros aos que do Carnaval preferiam se refugiar. Em ambas as cidades, a festa de rua renasceu a partir dos movimentos que politizaram a ocupação do território urbano, transformando-se numa balbúrdia de homéricas proporções. Laranjas ao alvo, Bolsonaro será o saco de pancada da turba desfilante. As mulheres comandarão a massa, peitos e bundas de fora, soberanas de seus corpos. Na Sapucaí, há de surgir um novo Temer Vampirão.

Na música de Erasmo Carlos, houve um João que “dormiu no tombo e foi pisado pela escola,/ morreu de samba, de cachaça e de folia,/ tanto ele investiu na brincadeira,/ para tudo tudo se acabar na terça-feira”. É nóis: fechada a janela de transferência da nossa revolta, é vida que segue, casa-grande e senzala, nenhuma Bastilha a se queimar na quarta-feira, embora de Cinzas. Para o historiador Luiz Antonio Simas, no entanto, o Carnaval é “resistência” que transcende a bagunça e avança para além do feriado. Autor de 16 livros sobre a cultura popular, entre eles o recente Almanaque Brasilidades e o ganhador do Prêmio Jabuti A História Social do Samba”, Simas é um dos mais respeitados pesquisadores do Carnaval brasileiro. Ele fala a Carta Capital:

Para Simas, a festa coloca em disputa o território das cidades

Carta Capital: O Carnaval é uma festa que aliena ou politiza?
Luiz Antonio Simas: Tem a fama de ser uma festa da alienação, mas sempre foi muito politizada. Porque tensiona, por exemplo, os usos da cidade, e isso é absolutamente político. O Carnaval dialoga dessa forma tensa com o poder instituído. Houve carnavais, ainda nas vésperas da Abolição da Escravatura, em que a questão abolicionista estava presente como um tema forte nas ruas. É uma festa de tensionamento político e uma festa, sobretudo, de disputa pelo território da cidade.

CC: Os nossos presidentes foram sempre alvo dessa galhofa do Carnaval?
LAS: Em menor ou maior escala, sim. O Carnaval é bagunceiro com o exercício do poder. Você pega, por exemplo, um presidente como Floriano Peixoto (1891-1894). Seu governo tentou mudar o Carnaval para junho, com o argumento de que o mês de verão é propenso para epidemias. A população deu uma banana para esse tipo de coisa e houve dois carnavais. Em 1912, iam adiar o Carnaval do Rio de Janeiro porque o Barão do Rio Branco havia morrido, e a turma foi para as ruas sacanear o Barão. Não existe Carnaval a favor. Sobretudo o Carnaval de rua, ele é o Carnaval do contra, aquele que galhofa do poder.

“A resistência está no corpo preto que entra na avenida e exerce sua centralidade na dança da passista”, defende o historiador

CC: Mesmo durante as ditaduras?
LAS: Nessas ocasiões, a postura zombeteira tinha de acontecer nas brechas do poder instituído. Era difícil, porque ali você tinha um Estado que trabalhava com a assistência da repressão. Mas ao mesmo tempo o Carnaval estava na rua, ele acontecia. Em momentos de autoritarismo, a população de certa forma se apropria de alguns espaços, de algumas festas e ali pode expressar suas insatisfações e desejos. Isso valia para o Carnaval, como valia para o que era um estádio de futebol durante a ditadura militar, o momento em que se tinha a perspectiva de um enfrentamento por território. O Carnaval não é político só no discurso explícito. É uma festa política quando você veste uma fantasia galhofeira e ocupa um espaço da cidade que o poder público não quer que você ocupe. Então existem dimensões do Carnaval que chamo até de “gramáticas não normativas”, e que são políticas mesmo. Refiro-me à questão do território. É um momento em que a cidade está sendo disputada.

Leia também: Carnaval como forma de protesto: os blocos que pulam e fazem política

CC: Inclusive disputada também com o dinheiro. Há alguns carnavais, São Paulo tenta impor uma marca de cerveja aos ambulantes que trabalham na rua durante a passagem dos blocos.
LAS: O Carnaval de rua lida com três instâncias que tentam domesticá-lo, cada uma a seu modo. Tem o discurso da ordem pública, que busca exigir alvarás, estabelecer horários em que a rua pode ser ocupada, determinar onde o bloco desfila, se a prefeitura autoriza que se vá aqui ou ali. Uma segunda instância é de ordem moral, com o discurso conservador ligado aos costumes. O Carnaval seria a festa da depravação, e hoje isso é muito em voga no Brasil, por causa do avanço neopentecostal e em razão de um governo com pautas obscurantistas do ponto de vista do comportamento. A terceira instância, que funciona como um mecanismo que tenta estabelecer controle sobre o Carnaval, é a do mercado. Sua perspectiva é a do marketing, do dinheiro circulante. É a marca de cerveja, é o cartaz que não deve afrontar o patrocinador.

“A luta contra o obscurantismo será uma marca efetiva deste Carnaval”

CC: A crítica política no Carnaval é uma característica muito mais dos blocos de rua do que da escola de samba?
LAS: Sem dúvida. Escola de samba não é uma instituição de resistência. Ela surge como uma cultura de brecha, que negocia na fresta. Desde suas origens na década de 1930, as escolas negociam com o Estado, com a contravenção, com o turismo, com a mídia, com o mercado. Você tem num ano um carnavalesco que faz algo com uma pegada mais politizada, que critica o poder. Não significa que a escola seja isso. No ano seguinte ela pode fazer o Carnaval mais chapa-branca e conservador que você imaginar. Já os blocos de rua têm de fato uma tradição de galhofa e afronta ao poder, um Carnaval anti-institucional que é muito mais efetivo.

CC: O que se pode esperar dos blocos este ano com relação aos protestos políticos?
LAS: O governo que aí está é um alvo fácil, porque afronta o próprio espírito carnavalesco. É um prato feito para o Carnaval cair em cima na base da galhofa. Por outro lado, teve um avanço muito significativo nas pautas comportamentais, que foram respondidas com um discurso de retrocesso. Os festejos de Rio, São Paulo, Belo Horizonte têm apresentado uma grande novidade, que é o protagonismo da mulher brincando o Carnaval. Há blocos só de mulheres, que são da maior relevância. Está presente uma pauta firme das mulheres contra o assédio no Carnaval. Esse protagonismo feminino e a luta no campo comportamental, que envolve a tolerância, contra o obscurantismo, será uma marca muito efetiva deste Carnaval.

A Paraíso do Tuiuti desfilou o Temer Vampirão e promete agora mostrar o laranjal. (Foto: Mauro Pimentel/AFP)

CC: O Bolsonaro é o anticarnavalesco por excelência?
LAS: De todos os presidentes da história da República, incluindo os militares, Bolsonaro é o que se apresenta com a postura mais anticarnavalesca. Porque não tem nada ali que passa nem perto da força do Carnaval, da espontaneidade do Carnaval de rua, da maneira como a festa lida com o corpo. Ele é o anticarnaval por excelência. O próprio túmulo do Carnaval.

Leia também: "Não é não": o Carnaval é a chance de mostrar que aprendemos algo

CC: Marchinhas com mensagens homofóbicas ou misóginas começaram a desaparecer dos repertórios, ou tiveram letras modificadas. O que acha desse aspecto politicamente correto numa festa que é anárquica, com boa dose de loucura e transgressão?
LAS: Acho muito saudável que tenha ocorrido o amadurecimento de certas pautas, e que os próprios carnavalescos pensem no que vão cantar e no que não vão cantar. Muita gente tem a dimensão hoje de que algumas coisas não cabem mais. Além disso, outros temas vão surgindo. A marchinha era para ser uma música ligeira. Algumas permaneceram porque são muito boas, mas a intenção não era essa. A Cabeleira do Zezé é uma brincadeira brilhante que fez sucesso enorme. Se durou, ótimo que tenha durado. Mas é evidente também que as marchinhas vão acompanhando a dinâmica da sociedade, que cria novas demandas. Então, se tem a marchinha homofóbica dos anos 50, 60, hoje tem aquela que combate a homofobia.

“Mas, se você conhecer o seu presidente, vai ver que passa longe de uma escola politizada”, defende o historiador.

CC: O senhor diz que o Carnaval é uma forma de resistência. Por que a multidão não permanece nas ruas e faz a revolução?
LAS: Quando eu penso no Carnaval como resistência, é na seguinte perspectiva: no Brasil, a República fechou os canais institucionais de exercício da cidadania. Em contrapartida, as populações, sobretudo as mais pobres, criam mecanismos muito próprios para vivenciar o espaço público. Eu acho que isso é cidadania. Ao mesmo tempo, esse exercício que não é formal é muito evidente no Carnaval, mas não morre quando o Carnaval acaba. Ele está presente na maneira como as esquinas estão ocupadas por rodas de samba, nos bailes funk do subúrbio, nas rodas de rap, na cultura de periferia que se expande. Isso está absolutamente fora dos canais institucionais de exercício da política que a gente está acostumado a conceber e que achamos que seria saudável. Quando falo do Carnaval como uma festa de resistência, não é exatamente uma resistência direta, explícita.
É claro que vai ter uma marchinha que sacaneia o Bolsonaro, mas o Carnaval trabalha com outras gramáticas. A gramática do corpo que dança, do corpo preto que entra numa avenida e exerce seu protagonismo na dança da passista, a maneira como esse corpo é audacioso. A expectativa que a gente tem de que as multidões permaneçam nas ruas depois do Carnaval é uma perspectiva que trabalha com um viés muito institucional e é, para o bem ou para o mal, pautada por um certo racionalismo das luzes, enquanto as massas que fazem o Carnaval foram obrigadas por vários dilemas da sociedade brasileira a experimentar a cidade o tempo todo pelas frestas.
O Carnaval talvez seja esse momento de ebulição, porque é a hora em que essas frestas estão abertas. Mas, depois dele, isso continua, sim, sendo exercitado. No Rio de Janeiro, por exemplo, na Zona Norte, nas periferias, na Zona Oeste, a cidade está sendo experimentada. Eu sou, em certo sentido, otimista por causa disso. Quem sai das ruas nessa perspectiva de brincar o Carnaval e ir embora não é o povão. O povão continua usando a cidade da maneira possível diante de todos os canais fechados. Ele continua criando formas cotidianas de experimentar a cidade, que, se não afrontam diretamente o poder público, é um mecanismo de exercer a cidadania e tensionar o tempo todo.

“No Rio, em São Paulo e Belo Horizonte, as mulheres serão as protagonistas”

CC: Aqui em São Paulo, a gente viu nos Acadêmicos do Baixo Augusta algumas mulheres que desfilaram sem camisa, como a questionar: “Se nós homens podemos, por que elas não?” Por outro lado, as mulheres estão seminuas na avenida, e a cobertura da tevê ou da internet é extremamente objetificadora de seus corpos. Isso te parece contraditório?
LAS: A maneira que uma passista é vista pela comunidade dela é completamente diferente da maneira como a gente vê aquela passista na tevê, e está muito distante dessa objetificação do corpo da mulher. É até o contrário. Sua função é de centralidade, de soberania sobre o próprio corpo. Aquela passista é sujeito de sua própria escolha, da sua própria corporeidade, é um corpo soberano e tem sua fala. É preciso cuidado, porque, paradoxalmente, ao criticar a objetificação, a gente acaba por objetificar.

CC: Ano passado, a gente teve o Temer Vampirão na Tuiuti, este ano temos a Mangueira com o Brasil dos negros. A Sapucaí está se inspirando nessa contestação do Carnaval de rua?
LAS: A sorte da Sapucaí chama-se crise. Sou muito crítico às instâncias diretoras do Carnaval no Rio de Janeiro: dirigentes de escola de samba, presidente de liga de escola de samba, eu não levo a mínima fé nessa turma. Eles não têm perspectiva nenhuma sobre a relevância cultural de uma escola de samba. O que acontece é que o dinheiro ficou minguado, o patrocínio some, o jogo do bicho já não investe como investia. A crise abriu espaço para a renovação. Artistas novos ganharam a oportunidade de propôr enredos autorais. Se não fosse por isso, a mesma escola que está fazendo um enredo crítico sobre a política brasileira poderia fazer enredo sobre o extrato do tomate.

A atriz Maria Casadevall. Não é prestar-se à objetificação, é pela soberania do corpo.

CC: Talvez o sucesso da Paraíso do Tuiuti, com o Temer Vampirão, tenha influenciado…
LAS: Se você conhecer o presidente da Paraíso do Tuiuti, vai ver que passa longe dessa perspectiva de uma escola politizada. O que aconteceu ali foi um carnavalesco, que é o Jacques Vasconcelos. Se ele sai, isso desaparece.

CC: Tem muito uma meninada nos blocos de rua vestidos de laranja, dizendo que Bolsonaro é miliciano. A continuar assim, o senhor acha que um dia o Carnaval vai derrubar um presidente, que vamos tacar fogo na Bastilha numa Quarta-Feira de Cinzas?
LAS: A função do Carnaval não é essa. Até me lembrei de uma charge do Jota Carlos de 1928, era chargista de uma revista chamada O Malho, aqui no Rio. A Câmara Municipal inventou um projeto maluco para extinguir o Carnaval, e isso chegou a ser debatido. Aí a charge do Jota Carlos era uma porrada de gente fantasiada tentando invadir a Câmara Municipal. Aí um cara virava para o presidente da Câmara e dizia: “Conselheiro, conselheiro, os senhores vão acabar com o Carnaval. Por muito menos o povo fez a Revolução Francesa”. O grande elemento de subversão do Carnaval é aquele que, às vezes, a gente não está atento para reparar. O Carnaval é uma festa da luta do corpo contra a morte. Essa experiência do protagonismo do corpo pode parecer alienante, mas isso faz muito sentido para quem experimenta esse protagonismo, sobretudo os corpos dos desvalidos, mais do que os nossos. A gente não consegue alcançar isso. Reconhecer o protagonismo desses corpos no Carnaval é de uma dimensão muito grande.

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