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Bezerro de ouro

A disputa entre uma mineradora e a população do Serro contamina a Festa do Rosário

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A cidade resiste ao assédio – Imagem: Prefeitura Municipal de Serro/MG
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Serro, cravado na Serra do Espinhaço, era há 300 anos um ponto de parada no Caminho dos Diamantes pelo qual colonos e bandeirantes desbravaram a região. A cidade tem inúmeros atrativos históricos e ecológicos, mas nos últimos meses virou notícia por ser o palco de um embate entre a população de pouco mais de 20 mil habitantes e a Herculano Mineradora, que luta na Justiça pela licença de um polêmico projeto de extração de 300 mil toneladas anuais de minério de ferro no entorno ao longo de uma década.

A disputa não poupa nem as tradições religiosas. No afã de conquistar os moradores, a Herculano fez enorme pressão para patrocinar a tricentenária Festa de Nossa Senhora do Rosário, também conhecida nos tempos coloniais como Festa do Rosário dos Homens Pretos do Serro, momento de celebração da fé e do sincretismo religioso que ao longo de três séculos foram passados de geração em geração entre descendentes de portugueses, indígenas e africanos. Os festejos duram uma semana e o auge se dá na Festa do Rosário propriamente dita, no primeiro domingo de julho. Durante os preparativos, a mineradora escamoteou uma proposta de patrocínio sem consultar a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, responsável pela organização da festa, o que foi visto como tentativa de aliciamento.

Após a contrapartida, a exibição de faixas e materiais promocionais de suas atividades, ter sido recusada pela irmandade, a Herculano adotou a intriga como estratégia e tentou jogar os moradores contra a organização do evento: “Infelizmente não vamos poder patrocinar sobre o seu pedido da Festa do Rosário (sic). O presidente da Irmandade nos comunicou que não vai assinar o contrato de patrocínio, pois a entidade recebe só doações e esmolas”. O estratagema causou mal-estar entre grupos distintos, fato raríssimo em uma festa erguida justamente a partir de um senso comum de colaboração e doação espontânea da população.

Presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário desde maio, Cláudio Ferreira conta que no mesmo dia de sua eleição foi procurado por um festeiro que o informou da intenção da Herculano em “ajudar a festa”. Para tanto, seria preciso fornecer o CNPJ da entidade para um depósito. “De cara, disse tudo bem, achava que era uma ajuda.” Na sequência, representantes da mineradora entraram em contato com Ferreira e apresentaram um contrato a ser assinado. “Uma advogada da empresa me disse que todos os festeiros iriam receber, mas também teriam de estender faixas com propaganda da empresa durante a festa. Eu disse que não poderia assinar.” A reação não tardou. “Enviaram um áudio jogando os festeiros contra mim”, afirma o presidente da irmandade. “Alguns vieram com quatro pedras nas mãos, mas fui firme e disse que não se pode fazer uma festa para Nossa Senhora, uma coisa de fé, e colocar dinheiro de mineradora no meio.”

A empresa tentou jogar a população contra a tradicional irmandade que organiza os festejos

Também integrante da irmandade, Cristiano Tolentino afirma que há mais de 300 anos a Festa do Rosário é realizada mediante a contribuição popular e de comerciantes locais, baseada na união e na solidariedade. “Jamais alguém exigiu como contrapartida a colocação de faixas. Além disso, não se pode nem chamar de ‘patrocínio’, pois a contribuição oferecida, de 20 mil reais, é irrisória”. Segundo Tolentino, trata-se de uma tentativa de comprar apoio popular e demonstrar o poderio econômico na esfera cultural e religiosa. “Como a parte religiosa da festa nunca foi realizada sob patrocínio de qualquer espécie, mas somente com ajudas e contribuições anônimas, a fixação de faixas demonstrando a ‘benesse’ da mineradora é, acima de tudo, afrontosa.”

A Herculano afirma ter exercido o legítimo direito de tentar patrocinar a festa e dar continuidade à “política de apoio” às manifestações culturais e aos festejos da região. A prefeitura, que chegou a ser procurada por alguns devotos incomodados com a situação, afirma que qualquer repasse financeiro destinado a uma entidade, salvo se realizado pelo setor público, é questão privada e fora do alcance da intervenção do poder municipal. O objetivo, disse o prefeito Nondas Miranda, do PL, é manter o município como a maior instituição de fomento da celebração: “Houve um repasse recorde para a Associação dos Congados, com a aquisição e manutenção do fardamento dos dançantes, auxílio aos festeiros e reforma da igreja”. O repasse somou 180 mil reais.

Desde abril, o processo de licenciamento ambiental para as atividades minerárias da Herculano em Serro está suspenso por determinação da Justiça Federal, até a apresentação dos estudos de impacto ambiental e social. A decisão do desembargador André Prado de Vasconcelos determina ainda a realização de consultas prévias elencadas pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, segundo a qual “povos indígenas e tribais interessados deverão ser consultados toda vez que estejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.

Em nota, a Herculano afirma ter recebido “com surpresa” a decisão judicial, pois “vem cumprindo absolutamente tudo o que a legislação exige”. A empresa garante apoiar “povos tradicionais e todas as comunidades não apenas da região do Serro, mas de todas as regiões do entorno de suas operações”. Por iniciativa da deputada estadual Beatriz Cerqueira, do PT, a Comissão de Administração Pública da Assembleia Legislativa instou o Ministério Público e a prefeitura do Serro a iniciar investigações e tomar as devidas providências acerca da construção de uma estrada que corta a Comunidade Quilombola de Queimadas. “O empreendimento atende tão somente aos interesses da ­Herculano Mineradora e não ao interesse público, além de antecipar a implementação de um projeto que ainda não possui concessão de licença ambiental”, diz a parlamentar.

Embora tenham barrado o avanço da mineradora sobre a festa tradicional, os moradores temem a força econômica da empresa.

“Eles estão chegando no Serro de tudo quanto é jeito, e sempre usando o dinheiro. Aí, parte do povo cai igual pato. Com o poder do dinheiro, eles estão persuadindo muita gente”, lamenta Ferreira. •

Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bezerro de ouro’

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