Sociedade

As mortes pelo frio e o processo de higienização

Na semana em que a Arquidiocese de São Paulo conta cinco mortes pelo frio, moradores de rua dizem ter colchões retirados pela GCM

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O frio excessivo deste mês de junho já provocou a morte de cinco moradores de rua na capital paulista, de acordo com a Pastoral de Rua da Arquidiocese de São Paulo.

Na semana em que a cidade registrou a temperatura mais baixa dos últimos 12 anos – 0 grau na madrugada do dia 13 de junho, de acordo com o Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE) –, moradores de rua contam que tiveram colchões e papelões levados por agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM).

A gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) tem tido dificuldade para explicar como tem conciliado esse trabalho de “reorganização urbana”, palavras da GCM – que consiste em retirar das calçadas e das ruas os objetos que prejudiquem o fluxo de pedestres e veículos – com o respeito aos direitos da população em situação de rua.

“O rapa levou meu colchão ontem, enquanto eu estava no hospital”, disse Leonora, de 70 anos, em vídeo divulgado semana passada pela Rede Rua, ONG que trabalha com população em situação de rua. “Eu estou falando meu desabafo como moradora de rua. Eu não vou fazer parte da estatística”, disse a idosa que vive na praça 14 Bis, no centro de São Paulo.

Em nota divulgada pela prefeitura, o comandante da GCM, Gilson de Menezes, afirma que os agentes apenas fazem a segurança dos servidores das subprefeituras e que uma das ordens do comando é que cobertores e lençóis não sejam retirados. A retirada dos colchões, contudo, foi admitida. “A ideia de retirar os colchões é evitar que o espaço público seja privatizado”, disse o comandante, segundo reportagem publicada na terça-feira 14 pelo jornal O Estado de S.Paulo.

Haddad foi mais direto e disse que a orientação é “não deixar favelizar praças públicas”. “Fizemos a desfavelização de 17 praças públicas da cidade de São Paulo, sem nenhum higienismo. Todo mundo que estava na praça foi acolhido pelos equipamentos da prefeitura. O que estamos tentando impedir é a refavelização, que acontecia com muita frequência”, disse mais tarde ao Estadão.

O padre Julio Lancellotti, da Pastoral de Rua, afirma que há, sim, um processo de higienização em curso, decorrente da especulação imobiliária. De acordo com Lancellotti, a gestão Haddad está apenas perpetuando um tipo de ação que ocorre desde os governos de José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD). O padre, que denunciou a conduta inadequada da GCM há pelo menos um ano, diz que o problema ganha maior visibilidade com o frio e as mortes.

“Segurando armas, chutam a comida, tiram os documentos, as roupas, a coberta. As práticas higienistas da Prefeitura de São Paulo estão se tornando a forma de agir permanente em relação aos moradores de rua”, disse em entrevista publicada pela Ponte Jornalismo no dia 11 de maio de 2015.

Em nota divulgada no último domingo, após a quarta morte pelo frio, a Arquidiocese expressou “profunda tristeza e preocupação” e pediu às autoridades a realização de “ações emergenciais de socorro aos moradores de rua durante os dias frios”, bem como a promoção de “políticas estáveis e permanentes para assegurar a dignidade dessas pessoas”. 

Além da perda dos itens que os protegem contra o frio, os moradores de rua afirmam que objetos pessoais como documentos, roupas, utensílios e remédios são levados durante as ações da GCM. Conforme relatou ao portal de notícias G1, a moradora de rua Ana Paula de Jesus Souza teve sua carroça levada pelos agentes da guarda no dia 1º de junho, e tudo que havia dentro foi perdido, inclusive exames médicos que deveria apresentar ao INSS.

Ao Estadão, Haddad também disse que a retirada de objetos como “lençol, coberta, documentação e vestuário” é proibida. “Nada disso pode ser tocado sequer. Essa é a orientação, e o comandante da Guarda está instruído. Falo com ele todo dia sobre o assunto”, afirmou.

Assim que os termômetros caem a menos de 13 graus, a prefeitura põe em prática a operação Baixas Temperaturas, que amplia temporariamente o número de vagas em abrigos. De acordo com a gestão Haddad, além das 10 mil vagas em 79 centros de acolhida, desde o dia 16 de maio foram abertas 1.517 vagas em 13 abrigos emergenciais.

O problema é que a vida nos abrigos não se encaixa na realidade de toda a população de rua. Entre as principais queixas daqueles que rejeitam esses espaços estão a falta de segurança – são frequentes os relatos de roubo, por exemplo –, a baixa quantidade de vagas para famílias, a ausência de lugar para deixarem carroças e a impossibilidade de levarem animais de estimação.

Diante da pressão popular dos últimos dias, a Prefeitura São Paulo anunciou na quinta-feira 16 que vai mudar o protocolo de abordagem da Guarda Civil Metropolitana (GCM) e dos agentes das subprefeituras.

Também foi anunciada a instalação de quatro tendas que poderão acolher um total de mil pessoas na região central, em caráter emergencial. As tendas serão montadas na Sé, no Anhangabaú, no Glicério e na Mooca, e cada uma terá um canil para animais de estimação, supervisionado pelo Centro de Controle de Zoonoses. De acordo com Haddad, as instalações deverão estar prontas em até uma semana, antes da chegada de uma nova frente fria.

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