Sociedade

As cidades e a cultura: uma reflexão a partir do Movimento Ocupe Estelita

Movimentos como esse traduzem uma mudança de comportamento dos movimentos sociais no Brasil: não há salvação sem outra mentalidade, sem uma outra atitude com relação ao meio ambiente urbano

Ocupação cultural do cais Estelita em 2014
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Minha Terra

Saí menino de minha terra.
Passei trinta anos longe dela.
De vez em quando me diziam:
Sua terra está completamente mudada,
Tem avenidas, arranha-céus…
É hoje uma bonita cidade!

Meu coração ficava pequenino.
Revi afinal o meu Recife.
Está de fato completamente mudado.
Tem avenidas, arranha-céus.
É hoje uma cidade bonita.
Diabo leve quem pôs bonita a minha terra! (Manuel Bandeira In Belo Belo, 1948) 

*

Os movimentos sociais urbanos vêm, nos últimos anos, em todo o território nacional, extrapolando segmentos sociais, territórios e contextos para articularem-se em torno da agenda do direito à cidade.

Mais do que ter acesso aos recursos do meio ambiente urbano, há nesses movimentos uma mudança de perspectiva: há neles um desejo coletivo de transformar a cidade, remodelando os processos de urbanização, tendo a qualidade de vida como centro articulador, organizando reivindicações que demandam mobilidade, energia, moradia, saúde, educação.

Utopia? Sim, se vista na perspectiva de Boaventura de Sousa Santos, como “oposição da imaginação à necessidade do que existe só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem o direito de desejar e pelo que vale a pena lutar”.

Foi por não reconhecer a utopia nos arranha-céus e nas novas avenidas de Recife que, lá em 1948, Manuel Bandeira recusou a transformação da sua cidade em favor de um aparentemente novo e aparentemente belo. O mesmo nos diz, quase setenta anos depois, o Ocupe Estelita: “nem tudo que é novo é bom e nem tudo que é novo é novo”, um movimento social por direitos urbanos dos mais perseverantes, ruidosos e desafiadores dos últimos tempos, surgido em 2011 em Recife como reação a um empreendimento imobiliário de grande envergadura.

Não por acaso este movimento ganhou projeção nacional. Ele é resultado de um ponto de saturação de um modelo que atinge todo o Brasil, de uma história de descaso, comum a todas as cidades brasileiras. Há décadas, nossas cidades estão decadentes e colapsadas por um desenvolvimento urbano caótico. Este é um fato. Nossas cidades estão a nos exigir soluções inteligentes para um convívio harmonioso no espaço urbano. Responsabilidade de todos: dos entes federados, de todos os setores socioeconômicos e da cidadania em geral.

Devemos reconhecer que foi a democratização de nosso país, em certa medida, a grande responsável pela gradual mudança de paradigma no urbanismo brasileiro. Vivemos uma cultura política que ao menos nos tem feito ver o tamanho do desafio que temos pela frente.

Aos poucos estamos formando um novo entendimento a respeito da relação entre cidade, cultura e democracia. Depois de décadas de equívocos urbanísticos passamos a ter Planos Diretores, Estatuto para nossas cidades e Plano Nacional de Saneamento, que inclui água, esgotamento, destinação de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais.

Mas ainda são gigantescas as mazelas a extinguir. Temos que admitir. Este é o primeiro passo para a mudança que se deseja. O Ocupe Estelita nos indica que, a partir da participação e do diálogo, podemos ter esperança de ver nascer uma outra cidadania, uma outra relação com a cidade, outro direito a ela. Sinaliza para a possibilidade de conquistarmos um outro nível de pactuação, capaz de requalificar radicalmente o planejamento e os usos de nossos espaços públicos.

Movimentos como o Estelita, que se multiplicam pelo país, traduzem uma mudança de comportamento dos movimentos sociais no Brasil contemporâneo. Há um desejo coletivo de barrar a degradação de nosso tecido urbano. Não há salvação sem outra mentalidade e visão de mundo, sem uma outra atitude com relação ao meio ambiente urbano.

A essa altura, parece óbvia e até mesmo tardia a correlação entre a agenda do Ministério da Cultura e a agenda do direito à cidade, ou entre a política cultural e a política urbana. O Ocupe Estelita mostra a força da cultura como instrumento que dá liga à cidadania.

As cidades, é fato, ainda que com incontáveis problemas, triunfaram sobre o catastrofismo de alguns urbanistas do século passado e hoje aproximam bilhões de pessoas em todo o mundo, não apenas espacialmente, mas sob a forma de práticas culturais, expressões e comportamentos que transitam ativados pelos fluxos globais da comunicação e da economia.

Mesmo com tanta diversidade, múltiplas identidades e distantes realidades, mesmo com distintas utopias e desejo de qualidade de vida, é possível se falar de uma “cultura urbana” em larga escala, ou de uma “condição urbana” em cuja base estão linguagens e ritos de convivência em um espaço público comum que é o espaço da cidadania.

Para além do contexto global, o discurso da política urbana, incluindo a cultura, é hoje mais necessário do que nunca entre nós que estamos vivendo uma crise com raízes profundas. O estado brasileiro dos últimos anos foi capaz de distribuir renda, de universalizar o acesso a muitas das políticas públicas, de realizar maiores investimentos em infraestrutura.

Mas essas transformações ainda não redundaram em uma reconfiguração democrática do nosso território, nem funcional, nem ética e muito menos esteticamente. Ainda mantemos os velhos e mesmos modos de produção e reprodução do espaço urbano.

Quando o lucro imobiliário é parâmetro decisório exclusivo, desaparecem as possibilidades de interlocução e de conciliação da cidade existente com a dinâmica da cidade que se renova. Não podemos perder a chance de que novos padrões de urbanidade se estabeleçam, que sejam democráticos e inclusivos. O que se vê num país que tanto alardeia sua diversidade cultural é, de norte a sul, de leste a oeste, a homogeneização radical de nossas cidades.

Uma homogeneização do tecido urbano, bom que se diga, sempre associada à hegemonia quase unilateral do capital, e que vem resultando em progressiva perda da nossa qualidade de vida. Atributos como escala e proporções, espaço público amigável, e receptivo à multiplicidades de usos e de práticas, vão ficando definitivamente esquecidos, retidos apenas como fragmentos na nossa memória, a partir de umas poucas cidades tradicionais ou de esparsas áreas tombadas.

Não podemos ficar reféns dos interesses exclusivistas do capital imobiliário. O problema, por todos os ângulos que se olha, é complexo e a abordagem cultural está longe de ser a única capaz de decifrá-lo e de oferecer instrumentos para enfrentá-lo.

O Ocupe Estelita eleva o debate político e cultural no contexto urbano brasileiro, evidencia uma cidade exaurida, uma Recife encurralada por leis urbanísticas que não se apropriam dos instrumentos compensatórios previstos pelo Estatuto da Cidade e que permitem um adensamento e verticalização incompatíveis com uma urbanidade sustentável.

A falta de cumprimento dos marcos legais existentes – atropelados pela lógica do lucro, além da insuficiência dos mesmos para dar conta de uma nova cidadania e da falta de eco sobre as lideranças e instituições locais fizeram com que esse movimento social recorresse ao Ministério da Cultura e ao Iphan, buscando ancorar seu desejo de alcançar uma melhor solução para a área, de início propondo o tombamento do Cais Estelita como sítio histórico da memória ferroviária.

O Iphan vem analisando a argumentação apresentada, mas sabe que dificilmente encontrará elementos para rever análises sobre o acervo ferroviário remanescente, ao que tudo indica, insuficiente para ser considerado como um patrimônio cultural e também para dar sustentação a um tombamento federal.

Prossegue o clamor por uma solução que, à luz da competência concorrente dos entes federativos sobre o patrimônio, não pode prescindir de um pacto que envolva um amplo conjunto de atores no ambiente local, sobretudo o executivo e a câmara de vereadores municipal, principais gestores desse vasto território. Somente instrumentos compartilhados poderão ser efetivos de fato e permitir que a municipalidade também assimile os princípios de proteção da paisagem, alargando o campo de ação dos instrumentos de política urbana e do planejamento da ocupação de seus espaços.

É preciso reconhecer que os movimentos sociais explicitam o apreço coletivo pelos valores da cidade, que há neles vigor criativo e desejo genuíno de influir nos destinos do lugar onde se vive. É a sociedade assumindo o protagonismo do lugar. Mais do que um incômodo, esse deveria ser o caminho para se construir algo efetivamente novo.

É mesmo imprescindível a participação cidadã. Os caminhos da democracia, enfim, passam inevitavelmente pelo diálogo entre os movimentos sociais e as diversas instituições públicas e privadas, sobretudo com o governo municipal e sua câmara de vereadores, a quem constitucionalmente cabe a gestão do território.

A angústia de uma Recife enclausurada, cinza e claustrofóbica, que se tornou tema recorrente no cinema da nova geração pernambucana, precisa dar lugar à cidade reconciliada com o ambiente de diversidade e fertilidade que a envolve pelo mangue, pelos rios, pelos arrecifes e pelos séculos de riqueza cultural acumulada.

O Ministério da Cultura tem olhos e ouvidos presentes na construção desse projeto.

E viva Chico Science!

*Juca Ferreira é ministro da Cultura

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