Sociedade
As cidades e a cultura: uma reflexão a partir do Movimento Ocupe Estelita
Movimentos como esse traduzem uma mudança de comportamento dos movimentos sociais no Brasil: não há salvação sem outra mentalidade, sem uma outra atitude com relação ao meio ambiente urbano
Minha Terra
Saí menino de minha terra.
Passei trinta anos longe dela.
De vez em quando me diziam:
Sua terra está completamente mudada,
Tem avenidas, arranha-céus…
É hoje uma bonita cidade!
Meu coração ficava pequenino.
Revi afinal o meu Recife.
Está de fato completamente mudado.
Tem avenidas, arranha-céus.
É hoje uma cidade bonita.
Diabo leve quem pôs bonita a minha terra! (Manuel Bandeira In Belo Belo, 1948)
*
Os movimentos sociais urbanos vêm, nos últimos anos, em todo o território nacional, extrapolando segmentos sociais, territórios e contextos para articularem-se em torno da agenda do direito à cidade.
Mais do que ter acesso aos recursos do meio ambiente urbano, há nesses movimentos uma mudança de perspectiva: há neles um desejo coletivo de transformar a cidade, remodelando os processos de urbanização, tendo a qualidade de vida como centro articulador, organizando reivindicações que demandam mobilidade, energia, moradia, saúde, educação.
Utopia? Sim, se vista na perspectiva de Boaventura de Sousa Santos, como “oposição da imaginação à necessidade do que existe só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem o direito de desejar e pelo que vale a pena lutar”.
Foi por não reconhecer a utopia nos arranha-céus e nas novas avenidas de Recife que, lá em 1948, Manuel Bandeira recusou a transformação da sua cidade em favor de um aparentemente novo e aparentemente belo. O mesmo nos diz, quase setenta anos depois, o Ocupe Estelita: “nem tudo que é novo é bom e nem tudo que é novo é novo”, um movimento social por direitos urbanos dos mais perseverantes, ruidosos e desafiadores dos últimos tempos, surgido em 2011 em Recife como reação a um empreendimento imobiliário de grande envergadura.
Não por acaso este movimento ganhou projeção nacional. Ele é resultado de um ponto de saturação de um modelo que atinge todo o Brasil, de uma história de descaso, comum a todas as cidades brasileiras. Há décadas, nossas cidades estão decadentes e colapsadas por um desenvolvimento urbano caótico. Este é um fato. Nossas cidades estão a nos exigir soluções inteligentes para um convívio harmonioso no espaço urbano. Responsabilidade de todos: dos entes federados, de todos os setores socioeconômicos e da cidadania em geral.
Devemos reconhecer que foi a democratização de nosso país, em certa medida, a grande responsável pela gradual mudança de paradigma no urbanismo brasileiro. Vivemos uma cultura política que ao menos nos tem feito ver o tamanho do desafio que temos pela frente.
Aos poucos estamos formando um novo entendimento a respeito da relação entre cidade, cultura e democracia. Depois de décadas de equívocos urbanísticos passamos a ter Planos Diretores, Estatuto para nossas cidades e Plano Nacional de Saneamento, que inclui água, esgotamento, destinação de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais.
Mas ainda são gigantescas as mazelas a extinguir. Temos que admitir. Este é o primeiro passo para a mudança que se deseja. O Ocupe Estelita nos indica que, a partir da participação e do diálogo, podemos ter esperança de ver nascer uma outra cidadania, uma outra relação com a cidade, outro direito a ela. Sinaliza para a possibilidade de conquistarmos um outro nível de pactuação, capaz de requalificar radicalmente o planejamento e os usos de nossos espaços públicos.
Movimentos como o Estelita, que se multiplicam pelo país, traduzem uma mudança de comportamento dos movimentos sociais no Brasil contemporâneo. Há um desejo coletivo de barrar a degradação de nosso tecido urbano. Não há salvação sem outra mentalidade e visão de mundo, sem uma outra atitude com relação ao meio ambiente urbano.
A essa altura, parece óbvia e até mesmo tardia a correlação entre a agenda do Ministério da Cultura e a agenda do direito à cidade, ou entre a política cultural e a política urbana. O Ocupe Estelita mostra a força da cultura como instrumento que dá liga à cidadania.
As cidades, é fato, ainda que com incontáveis problemas, triunfaram sobre o catastrofismo de alguns urbanistas do século passado e hoje aproximam bilhões de pessoas em todo o mundo, não apenas espacialmente, mas sob a forma de práticas culturais, expressões e comportamentos que transitam ativados pelos fluxos globais da comunicação e da economia.
Mesmo com tanta diversidade, múltiplas identidades e distantes realidades, mesmo com distintas utopias e desejo de qualidade de vida, é possível se falar de uma “cultura urbana” em larga escala, ou de uma “condição urbana” em cuja base estão linguagens e ritos de convivência em um espaço público comum que é o espaço da cidadania.
Para além do contexto global, o discurso da política urbana, incluindo a cultura, é hoje mais necessário do que nunca entre nós que estamos vivendo uma crise com raízes profundas. O estado brasileiro dos últimos anos foi capaz de distribuir renda, de universalizar o acesso a muitas das políticas públicas, de realizar maiores investimentos em infraestrutura.
Mas essas transformações ainda não redundaram em uma reconfiguração democrática do nosso território, nem funcional, nem ética e muito menos esteticamente. Ainda mantemos os velhos e mesmos modos de produção e reprodução do espaço urbano.
Quando o lucro imobiliário é parâmetro decisório exclusivo, desaparecem as possibilidades de interlocução e de conciliação da cidade existente com a dinâmica da cidade que se renova. Não podemos perder a chance de que novos padrões de urbanidade se estabeleçam, que sejam democráticos e inclusivos. O que se vê num país que tanto alardeia sua diversidade cultural é, de norte a sul, de leste a oeste, a homogeneização radical de nossas cidades.
Uma homogeneização do tecido urbano, bom que se diga, sempre associada à hegemonia quase unilateral do capital, e que vem resultando em progressiva perda da nossa qualidade de vida. Atributos como escala e proporções, espaço público amigável, e receptivo à multiplicidades de usos e de práticas, vão ficando definitivamente esquecidos, retidos apenas como fragmentos na nossa memória, a partir de umas poucas cidades tradicionais ou de esparsas áreas tombadas.
Não podemos ficar reféns dos interesses exclusivistas do capital imobiliário. O problema, por todos os ângulos que se olha, é complexo e a abordagem cultural está longe de ser a única capaz de decifrá-lo e de oferecer instrumentos para enfrentá-lo.
O Ocupe Estelita eleva o debate político e cultural no contexto urbano brasileiro, evidencia uma cidade exaurida, uma Recife encurralada por leis urbanísticas que não se apropriam dos instrumentos compensatórios previstos pelo Estatuto da Cidade e que permitem um adensamento e verticalização incompatíveis com uma urbanidade sustentável.
A falta de cumprimento dos marcos legais existentes – atropelados pela lógica do lucro, além da insuficiência dos mesmos para dar conta de uma nova cidadania e da falta de eco sobre as lideranças e instituições locais fizeram com que esse movimento social recorresse ao Ministério da Cultura e ao Iphan, buscando ancorar seu desejo de alcançar uma melhor solução para a área, de início propondo o tombamento do Cais Estelita como sítio histórico da memória ferroviária.
O Iphan vem analisando a argumentação apresentada, mas sabe que dificilmente encontrará elementos para rever análises sobre o acervo ferroviário remanescente, ao que tudo indica, insuficiente para ser considerado como um patrimônio cultural e também para dar sustentação a um tombamento federal.
Prossegue o clamor por uma solução que, à luz da competência concorrente dos entes federativos sobre o patrimônio, não pode prescindir de um pacto que envolva um amplo conjunto de atores no ambiente local, sobretudo o executivo e a câmara de vereadores municipal, principais gestores desse vasto território. Somente instrumentos compartilhados poderão ser efetivos de fato e permitir que a municipalidade também assimile os princípios de proteção da paisagem, alargando o campo de ação dos instrumentos de política urbana e do planejamento da ocupação de seus espaços.
É preciso reconhecer que os movimentos sociais explicitam o apreço coletivo pelos valores da cidade, que há neles vigor criativo e desejo genuíno de influir nos destinos do lugar onde se vive. É a sociedade assumindo o protagonismo do lugar. Mais do que um incômodo, esse deveria ser o caminho para se construir algo efetivamente novo.
É mesmo imprescindível a participação cidadã. Os caminhos da democracia, enfim, passam inevitavelmente pelo diálogo entre os movimentos sociais e as diversas instituições públicas e privadas, sobretudo com o governo municipal e sua câmara de vereadores, a quem constitucionalmente cabe a gestão do território.
A angústia de uma Recife enclausurada, cinza e claustrofóbica, que se tornou tema recorrente no cinema da nova geração pernambucana, precisa dar lugar à cidade reconciliada com o ambiente de diversidade e fertilidade que a envolve pelo mangue, pelos rios, pelos arrecifes e pelos séculos de riqueza cultural acumulada.
O Ministério da Cultura tem olhos e ouvidos presentes na construção desse projeto.
E viva Chico Science!
*Juca Ferreira é ministro da Cultura
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