A companhia teatral “Os Fofos Encenam” apresentaria, no dia 12 de maio, no Itaú Cultural, a peça chamada “A mulher do trem”. Escrevi “apresentaria” porque uma personagem dessa peça, que não por acaso é a empregada doméstica, é caracterizada com blackface, a representação esdrúxula do negro. Após manifestações de repúdio nas redes sociais, o Itaú Cultural resolveu cancelar a apresentação da peça nesse dia e, no lugar, realizar um debate com militantes, historiadores e pessoas ligadas ao teatro. O objetivo do debate é discutir por diversos ângulos o problema de se utilizar black face ainda nos dias atuais.
O black face surgiu por volta de 1830, durante a era dos shows dos menestréis, quando homens brancos se pintavam de preto de forma bem caricata e se apresentavam para grupos formados por aristocratas brancos com o intuito de ridicularizar pessoas negras. Isso, posteriormente, ganhou espaço nos cinemas e televisão. A prática serve tanto como estereótipo racista quanto como forma de exclusão, porque se no primeiro caso ridiculariza, no segundo nega papéis a artistas negros.
Pessoas ligadas à companhia se defenderam dizendo que máscaras fazem parte da tradição circense. Atores defendendo a peça disseram haver exagero por parte dos militantes e alguns usaram a justificativa de que quem criticava não era do teatro. Bom, não é preciso ser teledramaturgo, por exemplo, para perceber que uma novela é racista ou se utiliza de componentes racistas; basta ter olhar crítico e conhecimento histórico.
Mesmo assim, fui ouvir pessoas ligadas a arte para falarem sobre esse caso e a resposta delas foram no mesmo sentido da dos militantes. Renata Felinto, artista visual e doutoranda em Artes Visuais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), diz: “Como dizia Mário de Andrade, ‘a arte é uma expressão interessada na sociedade'”, diz. “Os Fofos enquanto artistas que se dizem conscientes estética e politicamente devem, portanto, acatar e ponderar acerca de um segmento da sociedade que se ofende a partir de um elemento presente em seu trabalho. Elemento que ofende, subjuga, recoloca o negro em um lugar passível de ridicularização que é anacrônico, pois vivemos um momento de reivindicações e de conquistas – na contemporaneidade não há lugar para essa forma de estética. Além do que, na commedia dell’ art, não existe a máscara do negro, mas existe no ministrel show. É básico, é pesquisa e cuidado com seu público, pois negros compõem esse público”, conclui.
Luma de Oliveira, atriz do grupo Teatro da Oprimida Mulheres Negras (TOMN), tem visão semelhante: “É inadmissível que tentem silenciar nós negras/os diante de manifestações históricas de racismo como um grupo de teatro se valer do blackface”, diz. “Não adianta tentarem justificar o injustificável, nos devem desculpas públicas e a reformulação da peça. Quero ser protagonista da minha história e não personagem caricato para uma sociedade racista. Todo teatro é político e fazer blackface também é um posicionamento político”.
Já Bel Antunes, ativista cultural, diz que seguirá se manifestando contra a peça: “Não, ainda não nos cansamos porque o sistema racista nunca se cansa. Isto, que alguns intelectuais estão chamando de fenômeno, ocorre pois nós nos fortalecemos. Apontamos racismo até num “mero’ e “insignificante” (sic) recurso de máscara blackface. Ficamos chatos, segundo os nossos perseguidores, incomodamos e é só o começo de uma nova etapa desta luta que começou há muito tempo. É necessário avançar”.
Que o debate do dia 12 de maio sirva para trazer consciência e o entendimento de que a arte não está descolada dos valores da cultura e não é neutra. Cômico, se não fosse trágico, é ainda em 2015 ter de pontuar o quanto o blackface é ofensivo a população negra.