Sociedade

Ao deixar Fundação Casa, 30% dos adolescentes não retornam à escola

Relatório do Instituto Sou da Paz mostra o peso da vulnerabilidade social sobre os adolescentes internos

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“Desde que eu sou pequeno vejo minha mãe trabalhando de manhã até a noite pra ganhar mil reais e sustentar quatro bocas. Tiro de quem tem, pra mim isso tá certo”, contou Roberto, 17 anos, à equipe do Instituto Sou da Paz. O jovem faz parte do grupo de menores de 18 anos que se envolveram com atos infracionais e cumprem medidas socioeducativas na Fundação CASA.

Roberto descreveu a comunidade onde morava como “um bairro entre dois bairros de gente rica”, “a favela fica no meio”. Ao que ele viu em seu cotidiano, “asfalto e saneamento não é pra todo mundo”. Ele conta que um dia será como eles, os “ricos”, “não sei se vai ser trabalhando, ou no crime”.

O depoimento do jovem faz parte do relatório “Aí Eu Voltei Para o Corre – Estudo da Reincidência Infracional do Adolescente no Estado de São Paulo”. Suas palavras mostram que o envolvimento infracional não está apenas associado à pobreza ou à miséria em si, mas, sobretudo, “à desigualdade social, ao não exercício da cidadania e à ausência de políticas sociais básicas”.

O estudo mostrou que o peso da vulnerabilidade socioeconômica é grande. Uma das entrevistadas na Fundação relacionou a reincidência – realidade de 65% dos internos entrevistados – ao fato de que dentro da medida socioeducativa o jovem tem acesso a cinco refeições, ao passo que em casa é bem possível que tenha menos de três ou nenhuma.

A reincidência, foco principal do estudo, também pode ser explicada pelo acesso limitado a serviços públicos, vulnerabilidade socioeconômica, discriminação e seletividade da justiça criminal.  Dentre os adolescentes entrevistados, 43% teve de contribuir para a renda familiar durante a sua vida e 75% já havia exercido alguma atividade remunerada, quando deveriam dedicar-se apenas aos estudos.

Segundo Ana Carolina Pekny, pesquisadora do Instituto e uma das autoras do relatório, dentro esses adolescentes, “há dificuldades de verbalizar algum sonho”. Mas há uma vontade de participar do mercado de consumo, impulsionada pelas desigualdades sociais. “Todo mundo quer consumir, todo mundo quer ter coisas, pra esse adolescente ter algo é uma forma de ser alguém no mundo”, afirma Ana. 

“Filho de rico não vem para cá. A justiça é seletiva, pune por ser pobre”, afirmou um profissional da Fundação Casa. Tudo isso pode justificar o envolvimento infracional. Os números corroboram as observações e são importantes frente às propostas que visam a redução da maioridade penal e o endurecimento de sanções destinadas a menores de 18 anos que cometeram infrações, e que começaram a serem bombardeadas com mais força no Congresso desde 2015.

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“Ao deixar a Fundação CASA, 30% dos adolescentes não retorna à escola”

O relatório mostra que há uma forte relação entre a prática da primeira infração, o rompimento dos vínculos familiares e a evasão escolar. “Enquanto o abandono escolar está associado ao envolvimento infracional cinco meses mais cedo, em média, o encaminhamento para um abrigo antecipa a idade da primeira infração em nove meses”, afirma.

Quase 70% dos jovens estavam fora da escola quando ingressaram na Fundação CASA e ao deixá-la, 30% deles não retornam à sala de aula.

Metade deles abandonou a escola até os 14 anos, sendo que quase 60% dos reincidentes tinham 14 anos ou menos quando evadiram, ou seja, deixaram de frequentar as aulas. Antes da evasão, 83,7% deles  repetiu de série, 39,8% foi expulso ou transferido e 33,7% sofreu discriminação por envolvimento infracional.

Segundo o estudo, a interrupção dos estudos aconteceu logo depois da entrada no mundo infracional para a maior parte dos adolescentes. Quase dois terços deles abandonaram a escola quando já tinham cometido a primeira infração.

Em diversos casos, essa primeira infração foi o furto de itens de pequeno valor, como gêneros alimentícios em mercados. Depois do furto, vem o tráfico de drogas, que também figura entre as maiores razões da incidência. Diferente do que a realidade os oferece, o tráfico dá a eles uma opção de renda fixa. Somados, tráfico e roubo correspondem a mais de 90% dos casos, sendo que 67% dos internados por roubo contaram ter feito uso de arma de fogo durante a prática.

“65% dos entrevistados são reincidentes”

A volta à sua comunidade pós internação é perversa em muitos casos. Isso porque 30% não retornou à escola e somente 20% conseguiu emprego. Reflexo disso, é o fato de que a vulnerabilidade social entre os reincidentes em internação é ligeiramente mais acentuada. Segundo Ana Carolina, para a maioria dos jovens, “a vida fora da Fundação é uma vida sem perspectivas”. “Eles chegavam a se questionar se sabiam fazer algo diferente daquilo”, afirma a pesquisadora.

“Chama atenção que, proporcionalmente, mais reincidentes em internação já tenham “morado na rua”: quase metade dos entrevistados que moraram na rua eram reincidentes, sendo que eles representaram somente um terço da amostra total de respondente”, indica o estudo.

Outras realidades recorrentes, após o cumprimento da medida socioeducativa, são a discriminação e as dificuldades do egresso  na escola e no mercado de trabalho, o que contribui significativamente para a continuidade do ciclo infracional.

Segundo o relatório, um profissional apontou que alguns adolescentes sequer conseguem matrícula escolar devido à discriminação: “Enquanto aqui falamos da importância dos estudos… quando os meninos saem, não conseguem estudar. Assim não dá para mudar de vida”.

Martim, de 17 anos, internado por roubo, afirmou que a discriminação pós-internação contribuiu para que ele decidisse cometer novos delitos. Para parte desses adolescentes, a “pena já cumprida se revela perpétua e os egressos são, na prática, empurrados em direção a estratégias ilegais de sobrevivência”.

Quase metade dos reincidentes foram apreendidos entre um e seis meses após a última saída da Fundação. “Trata- se do período de maior risco para a reincidência infracional, o que deve orientar a formulação de ações de acompanhamento de egressos, com especial atenção ao retorno destes adolescentes para suas realidades e comunidades”, afirma o Instituto.

“Cerca de 90% dos entrevistados sofreu agressões físicas de policiais”

A violência institucional, racial e socioeconômica é clara na vida desses jovens. Segundo o estudo, cerca de 90% dos entrevistados sofreu agressões físicas de policiais, principalmente em abordagens e apreensões, além dos corriqueiros relatos de humilhações perpetradas por policiais e outros agentes de segurança. Entre os jovens,  25% também relatou ter sofrido espancamento nas unidades de internação provisória e centros socioeducativos da Fundação CASA.

Não é por acaso que, em 2016, 26% das vítimas de “mortes decorrentes de oposição à intervenção policial” tinham entre 15 e 19 anos – faixa etária que correspondia a menos de 8% da população do estado no mesmo ano.

Há relatos de adolescentes que já foram vítimas de agressões por familiares (8,6%), ou testemunharam briga ou agressão na família (35,7%).

Fora do ambiente doméstico, casos de discriminação, racismo e constrangimento são frequentes. Um perfil desses jovens mostra o porquê: a maioria são homens (95,9%), negros (76,3%) e com idades entre 16 e 17 anos (52,9%). Casos de racismo nas escolas, em estabelecimentos comerciais, como lojas de rua e shoppings, e em entrevistas de trabalho são narrados no documento. João, de 17 anos, disse que era “normal” ser “perseguido em lojas”.

“A mãe foi a figura mais citada como a pessoa em quem mais confiavam”

Sete entre 10 adolescentes são visitados pela mãe, e três entre 10, pelo pai. Como já era esperado, para 69,4% dos jovens, a mãe é a figura em que mais confiam.

“De fato, a personagem da mãe (ou das tias) surgiu como a possibilidade de reflexão e superação do envolvimento infracional na narrativa de muitos adolescentes ouvidos”, afirma o relatório. Os casos são muitos. Daniel, por exemplo, de 17 anos, criado pela tia, sua figura materna, demonstrou grande afeto por ela e lamentou que ela não pudesse visitá-lo devido às suas condições de saúde. Outro jovem creditou à sua mãe grande responsabilidade por seu afastamento temporário do universo infracional

“Chegou um dia que minha mãe veio me visitar e ela estava acabada. Não me esqueço, não. Dava para ver que ela estava sofrendo por causa do meu BO. Eu quero dar orgulho para ela.”, relatou Ronaldo, de 18 anos.

Segundo Ana Carolina, a maioria dos jovens morava apenas com a mãe e tinham uma relação muito positiva com ela. “Eles têm a preocupação de não querer que a mãe vá visitar e querem sair para vê-las. Muitos presenciaram violência doméstica e assistiram brigas e agressões sofridas pelas mães dentro de casa”, afirma.

Para o estudo, o fator de risco é que muitas das mães de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas criam seus filhos sozinhas, exercem trabalhos de baixa remuneração e “lidam com um nível de estresse maior para prover financeiramente a casa e cuidar dos filhos”. Tudo isso, aliado à existência de “uma rede de apoio ineficaz”, com “ausência de apoio do parceiro, falta de recursos na comunidade, como creches, entre outros”.

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