Sociedade

Anderson França: “O Deus evangélico mata pessoas”

Evangélico e ativista contra a violência policial nas periferias, ele teve que deixar o Brasil após sofrer ameaças de morte

Escritor carioca Anderson França. Foto: Arthur Costa.
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Anderson França faz parte da nova geração de exilados políticos brasileiros. A classificação foi feita pelo jornal britânico The Guardian, que após quatro meses acompanhando sua história, colocou o escritor e ativista de direitos humanos carioca ao lado de Jean Wyllys e Márcia Tiburi, que também deixaram o País após sofrerem ameaças feitas por grupos de extrema direita. “A esquerda no Brasil só levou a sério que tinham pessoas saindo quando o Jean sai” critica.

Em entrevista a CartaCapital, Anderson, que é evangélico, critica a onda conservadora que cresceu no Brasil apoiado no discurso religioso. “O Deus evangélico mata pessoas. O Jesus da Bíblia mesmo, ele morre pelas pessoas. Não tem como ter paralelo entre o Jesus evangélico e o Jesus da Bíblia, porque o Jesus da Bíblia não é o evangélico. O Jesus da Bíblia nem cristão é”, diz. Para Anderson, a Bíblia rompe com as estruturas do capitalismo, pois não estabelece valores baseado em gênero, classe ou raça.

O jeito combativo levou o carioca a ser perseguido em sua comunidade, na zona norte do Rio de Janeiro. Anderson, hoje com 45 anos, já foi indicado ao prémio Jabuti de literatura e tem um currículo diverso antes de virar escritor. Trabalhou como vendedor de quentinhas, de planos de saúde e de revistas da Igreja Adventista.

Em um desses empregos, ele começou a fazer registros fotográficos das invasões dos PMs para implantação das UPPs. “Nessa época eu já era crítico disso, e eu fotografava e escrevia sobre isso”, relembra. Foi quando fez um post em suas redes denunciando PMs evolvidos na morte do pedreiro Amarildo. A postagem viralizou e Anderson teve sua casa invadida e destruída como forma de aviso. Daí em diante, só piorou.

“Quando vi que Bolsonaro venceu, todas essas questões vieram à mente e chegamos à conclusão de que não ia dar para ficar sem ser alvo. Se eu falasse metade das coisas que estou dizendo agora, se eu estivesse no Brasil, teria que estar trancado em um cofre. Tem policiais dizendo publicamente nas redes sociais que vão me matar.”

Morando em Portugal, o brasileiro estuda ciências sociais e escreve sobre direitos humanos. Em um artigo recente publicado no jornal Folha de S.Paulo, Anderson chama de “nazistas” artistas que não se posicionaram contra o ex-secretário da Cultura, Roberto Alvim, que fez um discurso com inspirações hitleristas. “Ai você cobra posicionamento da classe artística e a resposta deles é abrir a tampa para mais ódio. Eles têm que ter a maturidade para entender que estou falando da pessoa pública deles”, ressalta o escritor.

O carioca foi informado que vai ser processado pela dupla Maiara e Maraisa. As cantoras foram retratadas com uma suástica em uma ilustração na coluna polêmica. “Aquilo era apenas uma representação artística, o problema é quando você olha isso e se vê no espelho, aí tem que buscar terapia”, diz Anderson, que após a publicação voltou a receber inúmeras ameaças de morte via redes sociais, inclusive de polícias.

Confira a entrevista:

CartaCapital: De onde você vem? Originalmente de onde você se vê vindo do seu percurso até Portugal? 

Anderson França: Venho da zona norte do Rio de Janeiro. Sou uma pessoa do subúrbio, morei em uma comunidade chamada Vila Aliança durante um tempo, morei no Morro do 18 na zona norte, sou muito apegado ao território, então o que me define é meu território. Venho desse lugar que, na nossa história recente, se tornou bandeira. A periferia não é só um lugar mais, o subúrbio não é só um lugar mais, é uma bandeira. E foi a nossa geração que colaborou para isso, para que a periferia não fosse vista só como um lugar. Os Racionais já faziam isso, o Toni Tornado já fazia isso, a Elza Soares já fazia isso, muita gente fazia isso no território enquanto bandeira. E a minha geração ajudou a trazer esse discurso para o meio digital.

Então, quando venho para Portugal, digo “sou uma pessoa do subúrbio do Rio de Janeiro”. E eles ficam olhando porque o europeu não sabe exatamente essa particularidade, você tem que explicar o que é o Rio de Janeiro. Você fala que o Rio é uma cidade que tem sete milhões de habitantes e é uma cidade também desigual, em que um milhão de habitantes moram na zona sul, que é uma região extremamente privilegiada, e o resto está espalhado na zona norte, na zona oeste e na baixada.

É o pessoal da classe trabalhadora, e eu venho desse lugar, e é exatamente esse imaginário que é disputado no Brasil, inclusive pela cultura de massa nos últimos dez anos. Você pega as grandes novelas da Globo, são passadas no Alemão, no subúrbio, a periferia entrou em disputa nas narrativas da Globo. A nossa geração fez com que isso acontecesse. Eu contribuí, inclusive, para pautas da Globo levando questões de periferia para dentro de uma novela.

CC: O que levou você a ser educador popular e a escrever?

AF: Me tornei educador e escritor. Não sabia que me tornaria educador, e eu também não sabia que seria escritor. Não quero que ninguém veja isso como arrogância, eu realmente não sabia. Eu fiz outras profissões, eu participei de outras coisas, braçais até. E comecei a dar aula, por causa da Universidade da Correria, um projeto que eu criei. Até que me casei com a Suelen, minha companheira, e decidimos tornar isso um projeto regular.

Aí  tive que ver outros professores falando, professores na periferia, para eu aprender com eles. Basicamente copiei o que esses professores tinham para que eu pudesse fazer, e eu aprendi que o professor na periferia tem que ter mais paciência, mais afeto, tem que dar abraço, ele não acha ruim quando é chamado de tio, de pai. Tem uma série de coisas na educação popular que eu não via na educação formal, então eu fui entendendo que tinha uma coisa ali que eu precisava aprender para ser educador. E uma série de deficiências que eu tenho até hoje porque não fiz faculdade, mas eu fui me tornando educador popular. Só me defini como educador dois anos depois de estar fazendo isso. Tinha um cursinho dentro de casa e a gente fazia isso, e alguém falou “acho que você é um educador popular”. Como também disseram um tempo depois que eu era “intelectual orgânico”. Eu não fazia a menor ideia do que a pessoa estava querendo dizer com isso.

Bati nesses artistas, mas não na pessoa deles. Foi isso que Maiara e Maraísa não entenderam

CC: E agora você sabe?

AF: Tenho medo de falar errado porque as coisas mudam todo dia. Enquanto eu estou falando alguma coisa, já mudou. Me disseram que o intelectual orgânico é aquele que nasce no próprio território, pensa a própria realidade e é atravessado só por aquilo ali. Ele nasceu ali, é autêntico. Quem não gosta de mim, fala muito mal de mim. Agora quem gosta de mim também dá uma viajada.

CC: Pra quem você escreve?

AF: Vou falar das pessoas que me devolvem reações. Há pessoas que me leem no trem, há uma menina que me leu durante três anos no trem. Então escrevo para uma menina que trabalha e que pega trem para trabalhar. Escrevo para um segurança de uma loja de sapato no Norte Shopping. Escrevo pra um jovem, eu não sei exatamente o que ele faz, mas ele mora em Caxias e trabalha em Caxias. Escrevo para um monte de gente na Maré, um monte de gente no Alemão, um monte de gente no subúrbio do Rio. Escrevo para pessoas em São Paulo, pessoas da periferia e pessoas de algumas universidades, pessoas que já terminaram a faculdade e que pensam a sociedade, que são críticas da cidade de São Paulo, uma juventude boa, uma geração boa. Escrevo para uma classe artística que tem de tudo, tem evangélico, tem cantor pop fundamental na música popular brasileira, tem grandes nomes da MPB que me leem. Escrevo para uma classe política. Escrevo para intelectuais que pensam totalmente diferente de mim.

Eu escrevo para pessoas da direita? Sim. Tem textos meus que falam da sociedade, que falam até da teologia, escrevo às vezes sobre a Igreja, em que pessoas da direita leem. Trabalhadores, pessoas do povo, pessoas também com o mesmo recorte. Elas também leem. Entro na direita muitas vezes por causa da falta de costumes e de religião, porque eu sou um protestante, e a direita é essencialmente isso. Então eu acho que tenho até uma responsabilidade de, eventualmente, de vez em quando, ir lá falar com eles. Mas acontece que o Jesus que eu falo com eles é um Jesus que ainda eles não aceitam. Eu falo de Jesus como homem negro, morto pelo Estado, um homem que foi morto na frente da mãe no alto de um morro.

CC: Você falou que apanha e bate também. Você bateu, nesse seu último artigo, em alguns artistas para acordá-los?

AF: Bati nesses artistas, mas não na pessoa deles. Foi isso que Maiara e Maraísa não entenderam. Quando eu digo que elas são fascistas, que estão apoiando o governo e representam uma classe média odiosa, elas têm que ter o mínimo de maturidade para entender que estou me referindo à pessoa pública delas, que elas construíram. Falar de feminismo ou de 50 reais não pode sintetizar o que elas são. Não estou batendo nas pessoas porque não sei quem elas são quando batem a porta para viver com os próprios parentes. O Whindersson gravou um vídeo em que ele fez uma reflexão sobre o texto, foi extremamente respeitoso e sério para dizer que ele ficou chateado com o texto, mas se deu ao trabalho, parou e pensou que ele não era aquilo. Nele surtiu efeito. Ele fez uma reflexão e viu que não era com ele e sim com a pessoa pública dele. A gente, como persona, é cobrado. Sou cobrado por um monte de gente, gente que caminha comigo e lê o que escrevo. Não é a minha casa que as pessoas estão deslegitimando, é meu posicionamento público. Então, quando você escreve um texto é realmente para questionar. Já questionei o Chico Buarque, critico o Freixo, o Lula. Mas sempre a pessoa pública, no jogo de pessoas públicas.

Apóstolo Paulo escreve: não há macho nem fêmea, judeu nem grego, escravo ou livre. Ele diz isso, está na Bíblia

CC: O que você escreveu como resposta para elas?

AF: Depois que fui ameaçado de ser processado pela Maiara e pela Maraisa, escrevi um texto perguntando por que não repensam o que estão fazendo. A gente tem que se criticar. Falei como um religioso com elas. Elas, as outras que tiraram Iemanjá da letra da música, todas essas pessoas do sertanejo que é branco. Usei os elementos que o público delas gosta de ler para poder falar com elas. É um público que vai aos bares, mas é hegemonicamente cristão. Fiz um texto em outro tom, que elas falavam de valores que, em outro lado, elas não concordam. Falam de cachaça, de bebedeira, adultério, destruição da família e depois vêm dizer que isso é ruim. Jesus não apoia isso que vocês cantam. Vocês fazem uso do sertanejo, que nasce com o homem e a mulher do campo, que tem valores muito simples e propagam valores que vocês não se importam se são bons ou não, ganham rios de dinheiro com isso. Vocês se preocupam comigo, mas não se preocupam em dar uma nota sobre aquilo. Se vocês gostam tanto de Jesus, saibam que ele tem lado. Eu tenho lado e o meu lado é contra aquele cara [Alvim].

CC: O que você sente quando dizem que Deus é mulher ou que Jesus é gay?

AF: Sinto que é uma evolução da teologia. Até porque não está em nenhum lugar na Bíblia que Deus seja homem. E não tem um lugar na Bíblia inteira que diga que Deus é homem heteronormativo. Então a Damares, quando diz que menino veste azul e menina veste rosa, ela não encontra isso na Bíblia. Não é o azul e rosa que não está na Bíblia, é a ordem em que menino vista azul e menina vista rosa para ser identificada porque Deus disse que Adão deveria ser Adão e Eva deveria ser Eva. Aí quando você pega Levítico, que está na Bíblia, e Deus diz que homem não pode ficar com homem e mulher não pode ficar com mulher, você vê que não foi exatamente Deus que disse isso. Foram os teólogos daquele tempo com aquele pensamento deles. Porque não existe esse Deus, existe a ideia que nós fazemos de Deus.

O que a Bíblia fala exatamente sobre Deus ser homem ou mulher, ou não ser homem ou mulher, está numa das cartas de Paulo, um apóstolo. Ele diz algo que é bastante importante sobre Deus. Paulo escreve: não há macho nem fêmea, judeu nem grego, escravo ou livre. Ele diz isso, está na Bíblia. Qualquer pessoa da teologia que ler isso seriamente está diante de um problema, que é um apóstolo, uma pessoa que é uma autoridade apostólica pastoral, escrevendo no livro sagrado dessa religião que para Deus não existe gênero, classe e raça. Basicamente, a Angela Davis está aqui na Bíblia.

Deus não está preocupado em estabelecer seu discurso definindo valores e gênero, classe e raça. Aí que vem Leonardo Boff e fala “ele rompe com as estruturas do capitalismo”. O evangelho é libertador nesse sentido. Ele liberta a gente do pensamento que nos escraviza em valores patriarcais e heteronormativos dizendo “mulheres têm que vestir rosa e homens têm que vestir azul”. E o dono da Havan é rico porque Deus o abençoou. E se a gente está aqui na classe trabalhadora é porque Deus está provando a gente. E a gente tem que dar o dízimo porque uma hora essa tribulação vai passar. Deus não diz isso. A benção de Deus não é dinheiro. E a questão não é raça, como Feliciano já disse – que os negros foram amaldiçoados para serem negros.

E quando o público LGBT diz que Deus é gay, é uma mesma coisa. Porque um Deus que para tirar um povo do Egito faz 40 anos de milagres, e abre o mar. Isso é um escândalo maravilhoso. As pessoas estão passando ali, o Ney Matogrosso puxando. Moisés não era Moisés. Era o Ney Matogrosso puxando um bloco de carnaval. O pessoal totalmente colorido, entrando num mar seco. Não tem como Deus ser heteronormativo fazendo isso. O povo andando no deserto tinha uma coluna de fogo pra iluminar… É um Deus da rave, é um Deus da pegação.

Se um cara que é pastor e gay fala que Deus é gay, vou achar que é mesmo, porque é. As práticas de Deus são muito mais alegres, e talvez os heteronormativos daquele tempo tinham um problema sério com esse Deus, porque Ele era extremamente criativo. Deus não é um homem heteronormativo, ele pode ser mulher. Vamos lá, Deus criou a maçã, quantas maçãs existem? Se Deus fosse um homem heteronormativo, só teria uma maçã. Deus pensa como uma mulher, a criação é tão diversa.

CC: O que você sente com o Bolsonaro usando o slogan “Deus acima de todos”?

AF: A origem disso é autoritária, nazista, ela tem uma base nazista. “Brasil acima de tudo” é uma frase da Alemanha do Terceiro Reich, é ancorada ideologicamente pela religião cristã, pela Igreja alemã que apoia esse pensamento em que nós só temos um lugar de validação, só existe um lugar pra validar a sociedade, que é o Estado. E só existe um grande validador desse Estado, que é Deus. E que Deus? O nosso. A gente não tá falando do teu Deus, mas do nosso. Então quando ele fala “Brasil acima de tudo”, ele está falando do Brasil dele, e “Deus acima de todos”, o Deus dele.

O Deus do Bolsonaro, o Cristo do governo Bolsonaro, do Trump, o da direita, vem pra legitimar a morte das pessoas, Ele vem pra matar. Ele tem uma pistola na mão. Nas igrejas têm o símbolo da pistola. Ele faz, ele quer. O Deus evangélico mata pessoas. É muito importante, eu me garanto no que estou dizendo: o Deus evangélico mata pessoas. O Jesus da Bíblia, ele morre pelas pessoas. Não tem como ter paralelo entre o Jesus evangélico e o Jesus da Bíblia, porque o Jesus da Bíblia não é o evangélico, porque o Jesus da Bíblia nem cristão é. Isso é como tentaram traduzir.

Um dia chegaram pra Jesus e falaram “acho que você é uma coisa que iremos chamar de cristão” e ele disse “pode me chamar de cristão, se é assim que você entendeu”. Só que Jesus não era. Jesus era judeu. Só que era um judeu fora da curva e ele veio, na narrativa do Evangelho, para morrer pelas pessoas.  Como é que um Jesus que fala um negócio desses é um Jesus evangélico que ri da morte de Marielle? É um Jesus evangélico que ri da morte de pessoas negras, que ri da morte de pessoas no terreiro? As pessoas evangélicas estão fazendo isso, legitimando esse Jesus, dizendo que tem que ter arma, inclusive.

Minha mãe, até hoje, me pergunta quando eu vou voltar pra Jesus. Minha mãe acha que eu deixei Jesus, e eu entendo minha mãe. Ela tem 70 e alguns anos e é crente. Ela não entende muito do que eu falo, eu me sinto culpado, às vezes, de perceber que minha mãe não entende o que eu falo e eu deveria falar mais para ela entender. Eu falo de um Jesus que já não é mais o Jesus que eu inclusive aprendi dentro de casa. Tento explicar para ela e é um desafio muito grande. É por isso que eu digo que a esquerda e os progressistas, de uma forma geral, têm que olhar para trás, e os influencers e cantores, e falar com as pessoas de onde eles vieram, tem uma grande parcela do Brasil que ainda não entendeu.

O problema do maluco não é quando ele fala com a parede, mas quando ele ouve a parede falar com ele

CC: Você acha que a fé te protege do ódio das pessoas que te atacam?

AF: A fé me protege de ataques. A fé me protege de muita coisa. Eu moro numa casa em que a minha companheira é kardecista, mas ela vai mais para o ateísmo. Acho muito saudável, porque o ateu duvida e ele está do lado de uma coisa importantíssima, a ciência. Eu já vi ateus terem mais lucidez que um pastor. Então quando o ateu fala uma coisa, ele pelo menos tem uma equação perto dele, ou tem uma tese científica, ou tem um negócio que te mostra aquela coisa. É puro isso, e isso é bom. Ele não está tirando da cabeça dele que a Terra é plana porque ele colocou uma régua de plástico de 30 centímetros no mar e disse “a Terra é plana”. O cara estudou e diz “eu sou ateu por causa disso”.

E eu sou desse cristianismo transgressor, subversivo, eu não acredito mais nesse Jesus institucional, acredito em um Jesus da opressão, que está na opressão, que não a pratica, mas que está com o oprimido, sofrendo a opressão. E aí eu acho que é esse o Jesus que me ajuda em vários momentos, mas não quer dizer que eu seja santo. Eu pratico opressões, inclusive esse Jesus comigo, ele me pergunta o tempo todo se eu não estou sendo reprodutor da opressão. Se uma pessoa me chama de alguma coisa na internet, machista, racista, esse pessoal não sabe do grau de diálogo que eu tenho com esse Jesus, porque esse Jesus me chama de muito mais coisas.

CC: E você escuta uma resposta?

AF: O problema do maluco não é quando ele fala com a parede, mas quando ele ouve a parede falar com ele. Eu sou maluco nesse sentido. Todo mundo tem uma loucura. A Baby Consuelo ouve Deus falando com ela e eu acho do caralho. Eu sou maluco nesse nível. Deus me devolve coisas que são mais dolorosas, mas eu ouço a parede falar.

Deus fala comigo o tempo todo, e Deus está nas relações com os outros. Diferencia-se muito de uma pessoa que toma chá e vai pra uma ciranda, para o meio da floresta? Não. Diferencia-se muito de uma pessoa que vai para o terreiro e lá ouve a mensagem inspiracional que ela tem que ter do orixá? Não. É um fenômeno religioso. Acredito que tem uma pessoa que fala comigo e acho que essa pessoa é Jesus. No final vou descobrir que era uma só uma pessoa da minha cabeça, meu amigo imaginário, mas isso explica a vida. Ouço essa voz fazendo perguntas, ela não fala. Ela faz perguntas. E o que mata nessa relação com esse Deus são as perguntas que ele me faz. Ele pergunta coisas muito desconfortáveis.

CC: Que tipo de coisas?

AF: Vou dar um exemplo: “Onde você quer chegar com isso?”. É uma pergunta que qualquer ser humano precisa ouvir. Deus fez uma pergunta para Moisés. Ele era um cara que tinha um cajado e trabalhava com ovelhas, e tinha fugido do Egito porque matou um homem. Deus olha para Moisés e pergunta: “O que é isso na tua mão?”. Deus viu que tinha algo na mão, e Ele sabia o que era, mas Deus é uma pessoa que fala por perguntas, ele queria que Moisés viesse. Moisés falou que era um cajado. “O que você faz com esse cajado?” “Eu sou pastor de ovelhas, é minha profissão, é como me identifico na sociedade, é como eu ganho meu dinheiro.” “Então você vai usar isso para tirar o povo do Egito.” Deus foi Paulo Freire ali, você vai usar isso para libertar o povo. Mas Deus dialoga comigo através das perguntas, ele faz com que eu olhe pra mim. “Você não está sendo hipócrita falando isso? Não está sendo aplaudido por um monte de gente, no fundo você só é mais um deles? Quando você se olha no espelho, o que está vendo?” As perguntas de Deus são muito desconfortáveis.

CC: Você se considera um exilado político?

AF: Não me considero um exilado político, não gosto desse termo. Ninguém merece ser exilado. Quem definiu essa expressão foi o The Guardian. Esse termo traz um peso, traz uma mística do herói, que desperta uma coisa perigosa. O que mais se aproximou disso é a expressão autoexílio, mas não é a expressão que a Europa usa. E não usa porque a Europa viu as narrativas de cada pessoa e, olhando para o governo Bolsonaro, e por ser a América Latina e o Brasil um dos lugares mais perigosos para defensores dos Direitos Humanos, a Europa disse: “Vocês são uma nova geração de exilados políticos”.

CC: Jesus fala de direitos humanos, está na Bíblia. Como você acha que chegamos neste momento em que igrejas ignoram esta pauta?

AF: A igreja evangélica no Brasil não escolheu a pauta de direitos humanos. Historicamente, ela escolheu o campo da disputa de fiéis com a igreja católica. É uma máquina criada para tirar fiéis da igreja católica e trazê-los para uma outra ideia. Macedo, RR Soares, Valdomiro, Malafaia, Estevam Hernandes, Lagoinha, que veio para Portugal. Essas grandes igrejas nascem com o interesse de disputa de mercado, o mercado da fé. Você vê que a Universal quando fala em sessão de descarrego está disputando com o terreiro. E quando coloca o copo d’água, disputa com a igreja católica. O culto evangélico não tem nada a ver com essas junções. Direitos humanos nunca passaram pela mente de um pastor evangélico dessas neopentecostais porque são grandes igrejas criadas para fazer dinheiro. E se para ter dinheiro é preciso ter poder político, a gente vai trabalhar pelo poder político também.

Existe na igreja evangélica pessoas que estão fazendo outras coisas? Sim. O James Wright foi uma pastor presbiteriano que lutou contra a ditadura. O Luther King era um pastor batista, um pastor protestante. São pessoas que no seu tempo foram presas por lutar. Tem o Ronilson Pacheco, que estuda teologia negra em Columbia, o Henrique Vieira, a igreja Metodista da Luz em São Paulo. São pessoas que escolheram estar com minorias e falar sobre direitos humanos.

CC: Você disse que é bissexual. Na igreja evangélica é mais confortável ser LGBT do que na católica?

AF: Não. Nas religiões cristãs do Ocidente isso não é confortável. Nem nas religiões abraâmicas, não dá para você ser LGBT de jeito nenhum. No judaísmo sim, mas não é confortável entre os ortodoxos. Na igreja cristã no geral, não é. E isso se reflete nas pequenas comunidades nas favelas, que são altamente moralizantes. Todo mundo é gay na igreja.

CC: Como é para você ser LGBT na igreja, porque na visão das pessoas é meio contraditório, pela ideia de que a Bíblia renegaria a homossexualidade.

AF: Quando eu frequentava a Igreja Batista de Madureira, andava muito com um jovem. Nós dois éramos jovens, adolescentes. E éramos apaixonados um pelo outro sem saber. Quando você se apaixona por uma outra pessoa, não é necessariamente pelo gênero, mas pela pessoa. Os outros da igreja nos disseram que éramos doentes. Quem julga você por ser LGBT é quem está fora. Eu tinha 17 anos, algumas pessoas começaram a chamar a gente de “viado” e eu entrei em conflito pensando: “Não sou ‘viado'”. Porque sempre ouvi falar mal de “viado”, para debochar, sempre que querem te xingar chamam de “viado”. Você está no processo de formação, se descobre apaixonado por um cara e não vê nenhum problema nisso porque é só uma pessoa. Então eu esqueci isso, abafei da minha vida até minha companheira chegar. Eu já tinha quase 40 anos e só fui assumir isso dentro de mim com 42. Hoje tenho 45.

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