Política

Ameaça radioativa

No sertão do Ceará, uma comunidade move-se contra a exploração de uma jazida com fosfato e urânio

Medo. Os agricultores de Morrinhos temem a contaminação da água e dos alimentos que produzem, seguindo os preceitos da agroecologia. O exemplo de Caetité preocupa - Imagem: Erivan Silva
Apoie Siga-nos no

No primeiro ano de governo, Jair Bolsonaro anunciou a construção de seis usinas nucleares até 2050, incluindo a ativação de Angra III, com obras paralisadas desde 2015, ao ­custo de 30 bilhões de reais. O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, é o maior entusiasta do projeto. Sem alarde, o plano avança a passos largos, priorizando a extração de urânio para abastecer as usinas. Depois de reativar a exploração do mineral em Caetité, na Bahia, o alvo agora é a mina de Itataia, localizada no sertão do Ceará. Em 2020, no auge da pandemia , um projeto iniciado na década de 1970 para explorar a maior jazida de urânio do Brasil e a terceira do mundo ressurgiu, provocando a reação das comunidades no entorno, preocupadas com os efeitos da radiação liberada pelo mineral.

Trata-se do Projeto Santa Quitéria, um consórcio da empresa pública Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e da Fosnor – Galvani S.A., com vistas a explorar uma jazida de colofanito (urânio associado ao fosfato), fincada entre os municípios de Santa Quitéria e Itatira, distante 220 quilômetros de Fortaleza. Em março, o Ibama publicou no Diário Oficial da União o aval do projeto, quatro meses após ter recebido o Estudo de Impacto Ambiental do consórcio, documento com mais de 7 mil páginas. Esta é a terceira investida para se tirar o projeto do papel, depois de fracassadas tentativas em 2004 e 2011. As organizações sociais apontam irregularidades no processo e se queixam de não serem ouvidas. Com o parecer do Ibama, o próximo passo é a realização de audiências públicas, que devem começar ainda em maio.

Só após esta fase é que o licenciamento começa a ser liberado por etapas. Primeiro, será dada uma autorização prévia, depois a licença para instalação da estrutura e, por último, o consórcio será autorizado a operar. Mesmo com toda a pressa do governo Bolsonaro para passar a boiada, dificilmente todos os trâmites estarão concluídos ainda este ano. Pelo projeto, a INB, na condição de detentora do monopólio na exploração de urânio, faria a extração do mineral, que seria britado, processado e enviado ao exterior para, depois, voltar em pastilhas para abastecer as usinas nucleares Angra I e II e, futuramente, Angra III, no Rio de Janeiro. Com previsão para funcionar por 20 anos, o consórcio pretende produzir 2,3 mil toneladas de concentrado do mineral.

Raquel Rigotto, professora do Departamento de Saúde Comunitária da UFCE e membro da Articulação Antinuclear do Ceará, alerta, porém, para os riscos da contaminação por urânio. Segundo a médica, o processo da lavra começa com escavação mecânica ou uso de explosivo para retirar do subsolo o colofanito, que é levado para o pátio de britagem. Daí, passa por três etapas: moagem, peneiração e homogeneização, tudo isso a céu aberto. Haverá geração de poeiras com radiação, tanto na forma sólida de poeira como na gasosa, com capacidade de dispersão a longa distância. “O urânio é um metal instável, gera filhos a todo momento. A cada transformação, ele emite partículas de alfa ou beta ou compostos com radiação gama. Essa última é capaz de atravessar uma parede de concreto espessa ou uma barreira de chumbo e, no organismo humano, penetra com muita facilidade. A alfa e a beta podem ser inaladas na poeira, ingeridas através da água ou alimentos contaminados, serem absorvidas pelo nosso organismo e se depositarem em órgãos como rins, medula óssea ou cérebro”, explica Rigotto. “Ali, essas partículas ficam emitindo radiações o tempo todo, até terminar a vida útil delas. É como se você inalasse ou ingerisse um pedacinho de bomba atômica. Essa energia dentro do nosso corpo produz transformações no DNA, provocando câncer e más-formações congênitas.”

A radiação pode causar câncer e más-formações congênitas, alerta professora da UFCE

Enquanto a INB ficaria com a exploração do urânio, a Galvani, empresa vencedora da licitação para explorar o fosfato, terá o direito de comercializar o minério. A empresa está investindo 2,3 bilhões de reais e será a responsável pela parte de engenharia, estudos para licenciamento ambiental e construção do empreendimento. A Galvani garante que o fosfato é predominante na jazida e afirma que o consórcio produzirá, anualmente, perto de 1,05 milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados e 220 mil toneladas de fosfato bicálcico usado na nutrição animal, o suficiente para atender à demanda agropecuá­ria do Norte e Nordeste. Iara Fraga, assistente social e integrante da Articulação ­Antinuclear do Ceará, alega que a existência de mais fosfato é uma maneira de a Galvani desviar a atenção dos riscos provocados pelo urânio e suas partículas.

“A primeira tentativa de licenciamento foi em 2004. Naquela época, eles tentaram a licença pelo órgão ambiental estadual, argumentando que o urânio era residual e, portanto, não precisava passar pelo Ibama. Denunciamos que o minério não era residual e que a licença precisava passar por um órgão federal, pelo fato de o urânio ser monopólio da União. O processo foi suspenso. Na segunda tentativa, eles recorreram ao Ibama”, relembra Fraga. “Dizem que vão alcançar uma produção ­anual de 2,3 mil toneladas de um urânio beneficiado. Como isso pode ser residual?”

Fraga acusa a empresa de não apresentar um plano de como pretende fazer para separar os dois minerais e de não ter tecnologia que garanta que os fosfatados vão estar livres de radiação. A informação é rebatida pela Galvani, que afirma dispor de equipamentos modernos de controle ambiental. A preocupação maior da Articulação Antinuclear consiste no impacto que a radiação terá nas comunidades próximas à rocha e nas que ficam no trajeto entre a jazida e o Porto de Pecém, em Fortaleza, de onde o mineral deverá ser embarcado para o exterior. De acordo com dados da entidade, são mais de 150 comunidades camponesas, cerca de 35 terras indígenas em processo de demarcação, 16 quilombos, além de 28 povos de terreiro. Em resposta a CartaCapital, a empresa diz que a Funai, o Incra e a Fundação Palmares teriam sido consultados pelo Ibama e informaram que “não há terras indígenas ou comunidades quilombolas nas áreas de influência do Projeto Santa Quitéria”.

Visão estreita. O ministro Beto Albuquerque não esconde a empolgação com o projeto. Por que não priorizar energia renovável e limpa? – Imagem: Saulo Cruz/MME

Conhecida como Cristina Quilombola, a remanescente do Quilombo dos ­Caetanos, no município de Caucaia, acusa o consórcio de não respeitar os povos tradicionais. “O urânio vem para contaminar o nosso território, a nossa água, as nossas vidas. Eles vêm com o argumento de que vão gerar muitos empregos, mas são empregos da morte. A gente tem uma vida dentro do território e essa jazida não vai trazer nenhum bem”, adverte. A Galvani promete criar cerca de 8 mil empregos diretos e indiretos durante as obras e 2,8 mil na fase de operação, além do aumento na renda e oportunidades de negócios na região.

Professor e agricultor familiar do Assentamento Morrinhos, a 2 quilômetros da Fazenda Itataia, onde está localizada a jazida, Luís Paulo dos Santos relata o medo que o projeto provoca na comunidade. “Imagine o impacto de 2 mil trabalhadores que vão entrar numa pequena vila, com 45 famílias. No inverno regular, produzimos 2 mil toneladas de alimentos por família. Trabalhamos com a sustentabilidade, com agroecologia. Vamos consumir o quê se os nossos alimentos forem contaminados? A gente vai beber água de onde?”, questiona, citando o exemplo conhecido na Bahia e confirmado por Zoraide Vilasboas, moradora de Caetité.

“Devido à radiação do urânio, a rejeição nas feiras dos produtos cultivados em nossas roças é grande. De muitas casas, pode-se ouvir, e até observar, explosões das rochas na mineração que liberam radônio (gás radioativo).” O caso de Caetité virou objeto de estudo da UFBA, coordenado pelo professor Paulo Pena. Ele explica as sequelas da radiação na região baiana: “Todas as pesquisas apresentaram evidências de que o risco radioativo decorrente da exploração mineral se encontra sem controle adequado e representa uma ameaça ao ambiente e à saúde da população exposta, sobretudo para efeitos cancerígenos”.

No Ceará, a região tem grande dificuldade hídrica e a exploração do colofanito necessita de imensa quantidade de água. Embora o problema seja histórico na região e tenha motivado por diversas vezes a população a cobrar providências do governo do Estado, só agora, atendendo a uma demanda do consórcio Santa Quitéria, o governo estadual assinou memorando autorizando a construção de uma adutora de mais de 60 quilômetros, entre o açude Edson Queiroz e o reservatório do projeto. “Como é que no Semiárido, que não temos água, só carro-pipa e cisterna, o governo, em vez de abastecer os povos, vai favorecer o projeto?”, indaga Teka Potiguara, indígena da Aldeia Mundo Novo.

A região sempre dependeu de carros-pipa e cisternas. Só agora o governo topou investir em uma adutora

Em nota, o governo do Ceará confirma que a Secretaria de Recursos Hídricos “concedeu ‘outorga preventiva’ no sentido de disponibilizar uma vazão contínua de 287,78 litros por segundo, por 22 horas/dia, para viabilizar o empreendimento industrial. A outorga tem duração de um ano, podendo ser renovada”. A Galvani destaca que a obra também “abastecerá o distrito de Riacho das Pedras e os assentamentos de Morrinhos e Queimadas, o que deverá beneficiar famílias que hoje sofrem com a escassez de água”. O Estado comprometeu-se ainda a promover qualificação da mão de obra local, a melhora dos acessos rodoviários para a mina de Itataia e infraestrutura para o fornecimento de energia.

Na Assembleia Legislativa do Ceará, o deputado Renato Roseno, do PSOL, é autor de projeto que pretende limitar a ­exploração de urânio no estado. A proposta proíbe a exploração de rocha fosfática com urânio associado e de produtos derivados se a atividade trouxer riscos aos recursos hídricos, à saúde humana, às comunidades tradicionais e ao meio ambiente. “O urânio, quando extraído, permite a dispersão do radônio, gás radioativo cancerígeno, e que, a depender da velocidade do vento, pode chegar a até 10 quilômetros para além da mina. Em Santa Quitéria temos comunidades a 2 quilômetros. Não há níveis seguros da exploração de urânio em lugar algum do mundo. Temos alternativas de energias renováveis e limpas.”

O Ministério Público Federal foi acionado e acompanha o caso. Existe um processo no órgão para analisar os licenciamentos ambiental, nuclear e hídrico, o aspecto arqueológico, o direito de consulta das comunidades tradicionais e o impacto da mineração de elementos radioativos. Sobre o licenciamento, a reportagem acionou o Ibama, mas não obteve retorno. O mesmo aconteceu com o Incra e a Funai, que foram questionados sobre os impactos do empreendimento nas comunidades assentadas e nas terras indígenas. Dentre os órgãos federais, apenas o Iphan retornou, em resposta ao questionamento sobre os danos que o projeto poderia causar em sítios históricos próximos à região da jazida. O órgão disse existir um processo em andamento para analisar o caso, mas ainda não concluído. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1207 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ameaça radioativa”

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo