Sociedade

‘Alô Ambev’ e a parceria moralmente elástica com estrelas do sertanejo

Publicidade na voz de Zé Neto & Cristiano driblou Código de Defesa do Consumidor, conselho de autorregulamentação, concorrentes e até o manual da fabricante de cerveja

Ilustração: O Joio e o Trigo
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A exposição de cachês milionários pagos a estrelas do sertanejo por prefeituras de cidades pequenas ligadas ao agronegócio deixou evidente a influência do setor no processo de hegemonia econômica e musical do gênero no mercado fonográfico no Brasil.   

Mas há outra parceria estratégica nesse processo: a Ambev, líder na produção da bebida mais popular do país e a maior fabricante de cerveja do mundo, investe pesadamente nos artistas de maior visibilidade do sertanejo. 

Sucesso na voz de Zé Neto & Cristiano, pivôs do escândalo que revelou o pagamento de polpudos cachês com dinheiro público, “Alô Ambev” é mais um exemplo de que a moral no mundo corporativo e nos negócios pode ser bastante elástica.  

Amparada em uma brecha na legislação e no princípio de livre expressão artística, a música conseguiu driblar o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), o Código de Defesa do Consumidor e a concorrente Kaiser, além de contrariar o próprio manual da Ambev para o marketing de cerveja e a agenda de responsabilidade social da empresa sobre consumo moderado da bebida.  

No videoclipe, Zé Neto & Cristiano cantam ao vivo no palco da Brahma e circulam na fábrica da Ambev em Agudos, no interior de São Paulo. Apenas o clipe oficial contabiliza mais de 74 milhões de visualizações no canal da dupla no Youtube, sem contar outras versões e a reprodução da música por terceiros. Seguindo o script comum a outros sucessos do gênero, a letra fala de desilusão amorosa, sofrência e bebedeira. 

“Alô, Ambev?

Dobra a produção aí, que a gente bebe

Eu mandei saudade, ela mandou vida que segue

Então segue sua vidona

Eu sigo sofrendo e bebendo Brahma”

O lançamento aconteceu em setembro de 2020, no Dia Internacional da Cerveja, em uma ação que incluiu uma live e a gravação do videoclipe. “Além de entreter o público com mais essa live da dupla, poderemos mostrar algumas curiosidades da nossa produção, dos nossos processos e, é claro, da nossa Brahma”, afirmou na ocasião Maria Rachel Carvalho, gerente de marketing da marca.

A falta de identificação clara de que se trata de uma ação publicitária, como determina o Código de Defesa do Consumidor, e o desacordo com o princípio de responsabilidade sobre o consumo de bebidas alcoólicas geraram uma representação contra a Ambev e a dupla no Conar, após denúncia de um consumidor e da concorrente Kaiser. 

Placar apertado e decisão branda para Ambev

Ao Conar, a Ambev chegou a negar tratar-se de publicidade. “A música cantada pelos influenciadores data de 2019, sem qualquer ingerência da empresa, tendo havido citação espontânea da marca”, afirmou a empresa em sua defesa, conforme boletim anual com um resumo das decisões do Conar em 2021. 

“Está claro que é publicidade, tanto da instituição, como da marca Brahma. Se quem deu ideia foram os autores ou publicitários da Ambev, pouco importa. Na prática é publicidade e viola o Código de Defesa do Consumidor. O consumidor precisa saber claramente que se trata de uma propaganda”, explica a advogada Adriana Carvalho, diretora jurídica da ACT Promoção da Saúde, organização da sociedade que atua na área – a ACT é uma das financiadoras de O Joio e O Trigo

O Conar identificou infração a pelo menos quatro artigos do código de autorregulação, além do anexo que trata especificamente de cerveja e vinho, e é claro ao determinar o princípio do consumo com responsabilidade social e vedar o apelo ao consumo abusivo. 

A Kaiser recorreu da decisão em primeira instância e o julgamento terminou com um placar apertado e decisão branda. Foram sete votos pela alteração com advertência, contra cinco pela suspensão do videoclipe. Seguindo a determinação do Conar, a Ambev acrescentou a hashtag #publi na descrição do videoclipe, além da tarja “Beba com Moderação”. 

“Não sei como isso não foi retirado do ar, se o próprio Conar identificou como publicidade e se está contra o código de autorregulação ao sugerir um exagero no consumo”, avalia Roberta Denso, advogada especialista em Direito do Consumidor e professora da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. “A autorregulação publicitária bate justamente neste ponto, da identificação da publicidade. E há ainda o artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor: o anúncio deve ser claramente distinguido como tal, seja qual for sua fórmula”, explica. 

A música segue no canal oficial de Zé Neto & Cristiano no YouTube (e não nas redes da Ambev) e nos demais streamings de áudio.  

Um case de sucesso

“Como unir o gênero musical e a cerveja mais popular do país? Lançando uma música genuinamente sertaneja com um refrão contagiante, na qual o protagonista, que tem o coração partido por uma desilusão amorosa, pede uma Brahma para afogar as mágoas (…) pela primeira vez, uma marca de cerveja conseguiu inserir seu produto nesse contexto, de uma forma cômica e natural, trazendo irreverência para uma letra que fala sobre sofrimento e ciúmes”, gaba-se, em seu site, a agência responsável pela ação.  

De fato, Alô Ambev foi um case. Em pouco mais de uma semana, o videoclipe já contava com cinco milhões de visualizações. Foi também a 11º música mais executada nos streamings em 2021, segundo relatório do Ecad. 

A música foi composta em 2019 e lançada apenas no ano seguinte, após negociações com a empresa e ajustes no refrão para a inclusão da marca que patrocina a dupla. “É o jingle mais bem sucedido dos últimos tempos. O povo não pensa, mas é um jingle praticamente. E Brahma e Ambev, duas marcas. A gente jogou Ambev e plantou uma sementinha na cabeça do escritório: ‘Pô, vai lá buscar patrocínio’. Acabou que Deus fez as coisas, mexeu os pauzinhos e deu certo. Mas não tinha a palavra Brahma na música, não. Era ‘Eu sigo bebendo e torcendo contra’, aí colocou Brahma”, contou Bruno Sucesso, em entrevista a um podcast sobre o universo sertanejo. Ele assina a composição ao lado de Gabriel Agra e De Angelo.  

Em meio à decisão do Conar, Alô Ambev concorreu a prêmio em uma das mais importantes competições do meio publicitário, mostrando que a ética pode ser um conceito bastante elástico também neste mercado. “Se eu não estivesse ali, iria ganhar o prêmio máximo do júri. Tive o apoio de mais duas pessoas, mas ainda assim ficaram entre os semifinalistas”, disse ao Joio um dos jurados, incomodado com a contradição no discurso da empresa e as infrações do caso ao código de autorregulação publicitária.

Brecha legal

Alô Ambev se ampara em uma brecha da legislação brasileira que deixou a cerveja de fora das regras que restringem a publicidade de bebidas alcoólicas. A Lei 9.294, de 1996, vetou a propaganda de bebidas alcoólicas, mas fez uma ressalva: “consideram-se bebidas alcoólicas, para efeitos desta Lei, as bebidas potáveis com teor alcoólico superior a 13 graus Gay Lussac (GL)”.

“A lei é boa? É ótima. Foi um passo importante no Brasil em uma época em que o mundo inteiro já tinha feito isso. Depois da lei, veio uma pressão forte por parte da sociedade para a regulamentação da cerveja também, mas a lei só trata de bebidas acima de 13 graus. A publicidade de cerveja não é regulamentada completamente”, explica Roberta Denso. 

Nos anos 2000, houve uma ampla campanha do Ministério Público de São Paulo para incluir a cerveja na legislação, mas o tema não foi à frente. Um consultor legislativo do Senado ouvido pela reportagem diz que o assunto arrefeceu. “Houve um boom de PLs na época. Era uma estratégia do lobby das fabricantes de cerveja, apresentar vários projetos de lei ao mesmo tempo para dificultar a tramitação. De alguns anos pra cá não houve mais nenhuma movimentação nesse sentido, pelo menos por aqui. O tema sumiu”, observou. 

Caberia ao Ministério Público e aos órgãos de proteção de defesa do consumidor fiscalizar casos como o de Alô Ambev. “Há uma sensação de lentidão e inércia do poder público nesse sentido, causando uma percepção de que não há punição. E, se acontecer punição, leva muitos anos”, explica Adriana Carvalho, da ACT.  “Além do lobby fortíssimo por parte dessas empresas e associações que as representam, elas também contam com grandes escritórios de advocacia. É necessário uma postura firme do poder público para fundamentar. É preciso haver um comprometimento institucional muito forte no tema para que ele avance.” 

“A publicidade tem uma dinâmica própria e as técnicas mudam rapidamente ao longo do tempo. Hoje a questão principal não é mais a TV, mas é o streaming. É difícil regulamentar por lei. Tanto é assim que nos Estados Unidos toda a regulação é autorregulação, no Reino Unido, na França e em Portugal também”, pontuou Roberta Denso.

 

Desafios para regulação, oportunidade para anunciantes 

As redes sociais e a profusão de lives durante a pandemia trouxeram novos desafios para os órgãos fiscalizadores e novas oportunidades para a indústria de bebidas. 

Com o domínio do sertanejo no mercado fonográfico e no circuito de shows no Brasil, a  parceria com estrelas do gênero tornou-se estratégica para a indústria de bebidas, considerando o grande alcance de público desses artistas e letras que frequentemente abordam o consumo excessivo de bebidas alcoólicas.  

Gusttavo Lima, pivô involuntário do escândalo dos cachês milionários pagos com dinheiro público, é patrocinado pela Bohemia e reincidente em duas denúncias no Conar envolvendo o consumo exagerado e a publicidade irregular de bebidas. 

Em maio de 2020, o Conar abriu representação contra o cantor por conta do excesso de bebidas alcoólicas em uma live após denúncias de internautas. Alvo de ataques nas redes sociais por conta da denúncia, o Conar acabou decidindo apenas pela advertência ao músico. Foi a quarta transmissão ao vivo mais assistida em todo o mundo naquele ano, com 2,77 milhões de visualizações ao mesmo tempo, segundo o YouTube.  

Também em 2020, Bruno e Marrone foram alvo de representação por publicidade irregular na live patrocinada pela Brahma. A dupla e a empresa foram igualmente advertidos, considerando que àquela altura o formato era uma novidade para artistas e patrocinadores. 

Menos de um ano depois, em abril de 2021, houve uma nova representação contra Gustavo Lima, desta vez movida por iniciativa do próprio Conar, pelos mesmos motivos. O cantor aparece em suas redes sociais tomando uma cerveja Bohemia na divulgação de mais uma live. Aberta no mesmo dia da publicação, a representação levou à sustação da postagem até o julgamento final, chamando atenção de um aliado de peso, a Associação Brasileira de Bebidas, que tornou-se parte interessada no processo. 

Responsabilidade social para inglês ver 

Em 2020, mesmo ano que a Ambev fechou a parceria com Zé Neto & Cristiano e patrocinou as lives regadas a cerveja de Gusttavo Lima, a empresa lançou uma plataforma na internet para incentivar o consumo moderado de álcool e a promessa de impactar 2,5 milhões de consumidores até 2022. 

“Diversão não precisa ser sinônimo de exagero. Celebrar com consciência é ter liberdade para fazer escolhas conhecendo os seus limites, de maneira autêntica e equilibrada”, sugere a Ambev no texto de apresentação do site, uma iniciativa que faz parte das metas de ESG (sigla em inglês para Ambiental, Social e Governança, em livre tradução). 

No mês seguinte à decisão do Conar a respeito da música Alô Ambev, a empresa anunciou a controversa contratação da Monja Cohen como embaixadora do consumo moderado de suas marcas. 

“Isso mostra como a agenda de responsabilidade social não tem credibilidade. Tentam criar uma imagem positiva da empresa, ao mesmo tempo faz publi incentivando o consumo excessivo de bebida alcoólica”, critica Adriana Carvalho. 

Outro lado

O Conar informou que não pode comentar as decisões já transitadas em julgado e não respondeu às perguntas encaminhadas pela reportagem.

A dupla Zé Neto & Cristiano disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que não comentaria o caso.

Ao Joio, a  Ambev informou por meio de nota que cumpre todas as normas legais e de autorregulação publicitária do Brasil.

“O consumo responsável é um pilar fundamental do nosso negócio, pautado na promoção da moderação e na prevenção do consumo por menores e por todos que não podem beber. Temos o compromisso de comercializar e promover nossos produtos sempre de maneira responsável. Para tanto, é fundamental ter atenção na forma como nos comunicamos e anunciamos os nossos produtos. Temos diversos programas e campanhas de conscientização e prevenção e metas globais em relação a este tema (https://www.ambev.com.br/esg/consumo-responsavel/)”.

 

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