Sociedade

Alçados a patrimônio do Rio, ambulantes continuam proibidos de trabalhar nos trens

Trabalhadores não podem comercializar nos vagões administrados pela concessionária SuperVia e seguem sem ter a atividade regularizada

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Amendoim, água, fone de ouvido, carregador, massageador, brinquedos, apostilas, artigos de tabacaria, caixa de som, óculos de grau e de sol, roupas, cartela de ovos, remédios e, durante o fim do ano, peru de Natal. Os produtos que os camelôs anunciam no sistema ferroviário que liga a capital à região metropolitana – 270 quilômetros divididos em 102 estações e cinco ramais – é enorme, diversificado e nunca para de crescer. Só perde em pluralidade e história para os próprios ambulantes. Com um passado que se liga à ferrovia antes mesmo de sua inauguração, os vendedores se tornaram patrimônio cultural imaterial da cidade em 7 de janeiro, quando um projeto de lei assinado por 20 deputados estaduais foi sancionado pelo governador em exercício, Cláudio Castro.

O texto aprovado cita os “pregões criativos”, ressalta a relação entre o serviço informal e as taxas de desemprego e denuncia: “Ainda existe uma má cultura de associar esses trabalhadores a contraventores”. Apesar do reconhecimento oficial do governo do estado, os camelôs continuam, no entanto, proibidos de comercializar nos vagões administrados pela concessionária SuperVia e seguem sem ter a atividade regularizada, sonho de muitos. Por mais que o tombamento da categoria signifique um passo adiante, ambulantes que há anos percorrem as estações fluminenses cobram das autoridades uma decisão sobre o assunto.

Jorge Gonzaga, o Azulão (esq.), foi um dos que levaram a demanda do tombamento à Alerj (Foto: Arquivo Pessoal)

“Teve camelô que até chorou quando ouviu essa notícia”, descreve Jorge Gonzaga, o Azulão, representante da categoria e um dos responsáveis por apresentar a demanda ao presidente da Assembleia Legistativa, André Ceciliano, que acolheu a proposta. Aos 61 anos, Azulão começou no ramo em 1987 e atravessou períodos de maior repressão e de aproximação entre os camelôs e a concessionária dos trens. Segundo ele, o objetivo de unir uma categoria tão díspar e dispersa continua sem contar com o apoio de entidades públicas. “Não somos inimigos da SuperVia ou dos passageiros, ao contrário. Queremos conviver bem com eles e de forma legalizada, com cadastro, uniforme, crachá”. Há entre 2 mil e 2,5 mil ambulantes irregulares a trabalhar nos ramais, estima Azulão.

A história dos camelôs de trem na cidade, explica historiador Luiz Antônio Simas, deriva dos antigos pregoeiros que, no séc. XIX, vendiam no mercado informal artigos caseiros e quitutes. A habilidade de “cantar” os produtos têm um fundo lírico que se atualiza a partir dos novos gêneros musicais e pertence a uma cultura popular importantíssima para a cidade. “Se o tombamento servir para reconhecer o lugar do camelô na história da cidade, é um grande passo”, diz o acadêmico.

Simas cita a presença dos ambulantes em diversas expressões artísticas, entre elas o samba enredo “Destino Dom Pedro II”, da escola Em Cima da Hora, de 1984, sobre uma viagem de trem nos subúrbios cariocas. A repressão, afirma, também é histórica. De acordo com o código 40 do Regulamento de Transporte Ferroviário, é proibida a comercialização de produtos nos vagões, disposição na qual a SuperVia se escora para guiar os fiscais nas estações.

Sem poder de polícia ou porte de armas, os agentes, sempre que flagram os camelôs, convidam-nos a se retirar. Em caso de resistência, é acionado o grupamento ferroviário da Polícia Militar, agentes com histórico de “esculacho” contra os ambulantes, afirma Azulão.

Outra dificuldade para os vendedores são as taxas cobradas por criminosos. Como os trens passam por áreas dominadas por facções do tráfico e pelas milícias, é comum que os trabalhadores tenham de fazer uma “contribuição” caso queiram evitar problemas. A legalização deseja pelos trabalhadores não significa contratação pela SuperVia ou outras empresas em regime de parceria com a concessionária.

Entre as reivindicações mais básicas dos vendedores consta a manutenção da autonomia para fazer seu horário e comercializar os produtos de sua preferência. Tentativas de controlar um e outro, com a contratação de camelôs por empresas parceiras e a limitação dos produtos oferecidos, foram malsucedidas no passado. “Nossa luta é para ser legalizado, não empregado. O tombamento facilita”, afirma Azulão.

Desde 2016 no percurso pelas estações do ramal Santa Cruz, depois de perder o emprego formal na construção civil, Vinícius Benevide é cético quanto às vantagens do tombamento. Aos 41 anos, ele registra um aumento considerável do número de camelôs, muitos menores de idade, nos últimos quatro anos. Sua meta, nem sempre alcançada, é faturar cem reais por dia. “O tombamento pode ser até o início de um caminho para nós, mas muitos camelôs nem ficaram sabendo dessa notícia porque faltou, como sempre, o debate com a categoria: a gente simplesmente não sabia que isso estava acontecendo”, lamenta.

A SuperVia, acredita o ambulante, continua a enxergar a atividade como “um problema” e o histórico é de “enfrentamento” e reflete o descaso do poder público. “Era preciso um interesse da Secretaria do Trabalho em nos regularizar, ajudar com advogado e outros pontos, de forma que a legalização ficasse mais próxima”.

Em nota, a SuperVia afirmou que “se solidariza com os trabalhadores informais, mas ressalta que recebe reclamações constantes dos clientes a respeito da atuação de ambulantes nos trens e estações”. A concessionária não respondeu se pretende algum dia regularizar a atividade nem comentou o tombamento da categoria.

Bens imateriais da cidade, os camelôs lutam por materializar um futuro melhor.

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