Sociedade
A vida e a morte de Dioleno
A história do jovem, negro e periférico, é parte de um cenário mais perverso e contraditório do que diz a manchete ou a narrativa policial
Na madrugada de 26 de maio, Dioleno Jesus Santos, jovem de 25 anos, negro, morador da periferia, que durante anos viveu em acolhimento institucional, estudante universitário e com trabalho junto a um grupo de crianças com deficiência, foi morto por policiais na cidade de Santos.
A manchete do portal G1 noticiou o acontecido de forma direta e segundo a versão unilateral dos policiais: “Homem morre após tentar matar PM no bairro Embaré, em Santos”. As narrativas apresentam, porém, contradições que apontam para outra versão. Segundo o conhecimento da realidade e diagnósticos de nossas periferias, a história é outra.
Este texto serve para construir a narrativa de uma realidade e de um fato trágico ocorrido nesta semana aqui no estado de São Paulo. Grotesco e estranho, o fato parece ficcional, mas trata-se de mais uma história de descaso, verificada em tantas periferias do Brasil.
Mas como se inicia esta história?
Eis os fatos e seus contornos absurdos que se correlacionam frente ao contexto político e social em que vivemos hoje no Brasil. A história de Dioleno está mergulhada num cenário mais perverso e contraditório do que podemos perceber na manchete da imprensa ou na narrativa policial.
Segundo o relato dos policiais, Dioleno estava na rua pichando um muro na cidade de São Bernardo do Campo, onde residia, com a expressão “Fora Temer!” quando foi abordado por uma policial a paisana, que estava armada.
Assustado, ele agrediu a policial que o abordou e tomou sua arma. Depois, correu para casa, pegou uma mochila com poucas roupas e fugiu, com medo de expor suas irmãs a essa situação.
Depois disso, segundo também os registros dos policiais, o jovem se dirigiu a Santos, no litoral paulista, onde abordou um grupo de policiais e lutou com eles. Nesta briga, feriu outro policial e, em seguida, foi alvejado e morto “em legítima defesa”.
O enredo tão comum na boca dos policiais foi divulgado acriticamente pela imprensa, alimentando o imaginário da sociedade: “ele deveria estar drogado mesmo”, “menino sempre inquieto, ainda mais que tinha um histórico difícil”, “absurdo pegar a arma da policial e agredi-la”, “este mundo esta perdido mesmo”, “pichar na rua é crime, coisa de marginal, olha no que deu”.
Já foi solicitado ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE) a abertura de um processo de investigação e apuração do ocorrido.
As conclusões dependerão do esforço também dos órgãos de controle e de defesa, pois se trata de um enredo confuso e que, provavelmente, tem mais questões ainda não apresentadas.
Justiça?
Vivemos em um país estranho, onde existe um processo de criminalização da juventude e das diversas formas de expressão de rua, como a pichação e o grafite, por exemplo. E isto culmina com a estatística do genocídio da juventude preta e pobre pela mão armada do Estado, que tem disparado o número de morte em suas abordagens.
O que esperar mediante este ocorrido em Santos?
Esperar que os órgãos de defesa de direitos rastreiem os fatos, que sempre são narrados de forma contraditória e totalitária por aqueles que praticam o ato fatal. Como saber de detalhes ou de uma versão oposta se o personagem principal foi morto?
Aqui neste país o contraditório é aniquilado. A morte é sempre justificada por meios de comunicações e, até pela população, manobrada pelo sentimento de “justiça seja feita, nem que pra isto deva matar”.
A morte se apresenta como fator menor mediante o risco de morte de outras vidas brancas, moralmente corretas e de trabalhadores que lutam pela justiça.
O que é a justiça?
Um fetiche de uma população patologizada pela alienação de informação e formação humana, social e política. Quem atirou não pensa em si, mas na anulação de uma história que deve ser abortada, desaparecida e esquecida diante dos parâmetros sociais, morais e racistas definidos pela própria sociedade e seus sistemas.
O Sistema de Segurança Pública sempre se baseia numa perspectiva de guerra: acabar com o inimigo.
O inimigo, aqui, é baseado numa perspectiva de classe. Tal classe é entendida como subdesenvolvida, marginal, perigosa, um risco para a ordem social. Esta lógica baseia-se na política e na pedagogia (se é que podemos chamá-la assim) militarizada.
Romper com este sistema, legitimado pela maioria da sociedade e de governos, que não pensam e nem se esforçam por pensar em outras fórmulas de políticas públicas mais igualitárias e resolutivas, é necessário. A mão do Estado, ao invés de matar, deveria acolher, educar, transformar e apoiar na organização e no sustento do que é a vida.
Quem foi Dioleno?
Há 10 anos, conheci Dioleno em um grupo de adolescentes. Ele estava sempre preocupado com as questões sociais, seus equívocos, e imaginava formas de resistência e de auto-organização.
Neste grupo, trabalhávamos a utopia de um novo mundo, governado por crianças, adolescentes, jovens e as suas famílias. Politizávamos o debate para aprender a enxergar a realidade local, nacional, e internacional. Utilizávamos da voz e de outras expressões para enfrentar o descaso político e social em que viviam e eram oprimidos.
O mais intrigante e triste é que Dioleno morreu em decorrência de um ato de cidadania. Sim, de cidadania. Ele estava atento e disposto a lutar por uma ideia e uma visão de justiça. Isto parece justificar sua vida?
Dioleno vive na força de nossa indignação e na proposta de um mundo mais igualitário e menos injusto para a classe trabalhadora deste país, com políticas e práticas de desumanização e de morte em sua rotina.
Esta morte sempre destinada ao grupo da sociedade estigmatizada por preconceito e ódio pela sua cor, sua identidade geográfica e muitas vezes pela aparência de sua cultura.
Ser negro e de periferia já é um antecedente de perigo e de mal. Somos um país racista sistemicamente em todas as áreas e espaços. Enquanto isto, financiamos este ciclo, vicioso e fatal para nossa população, na sua grande maioria negra e de periferia.
Em nome de Dioleno: fora Temer! Em nome de Dioleno, somos a favor da desmilitarização polícia e da ampliação de espaços de defesa popular de grupos historicamente agredidos, abusados, violentados e mortos no Brasil!
Para quem não sabe, o nome Dioleno era uma homenagem traduzida para o português do nome do astro John Lennon.
Quem diria que o artista inglês, cujas canções marcaram uma geração criativa e sensível, seria honrado com a identidade e a vida deste menino oriundo de uma periferia do Brasil.
Quem diria que a canção Imagine traduziria, de forma realista, a vida e a morte de Dioleno:
Imagine não haver o paraíso
É fácil se você tentar
Nenhum Inferno abaixo de nós
Acima de nós só o céu
Imagine todas as pessoas
Vivendo o presente
Imagine que não houvesse nenhum país
Não é difícil imaginar
Nenhum motivo para matar ou morrer
E nem religião, também
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz
Você pode dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Espero que um dia você junte-se a nós
E o mundo será como um só
Imagine que não há posses
Eu me pergunto se você pode
Sem a necessidade de ganância ou fome
Uma irmandade dos homens
Imagine todas as pessoas
Partilhando todo o mundo
*Fábio José Garcia Paes é assessor nacional de Advocacy da ONG Aldeias Infantis
Um minuto, por favor…
O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.
Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.
Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.
Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.
Assine a edição semanal da revista;
Ou contribua, com o quanto puder.