Sociedade

A vida dos pescadores em Navegantes é o retrato 3×4 do Brasil

Enquanto o coronavírus aterroriza trabalhadores e seus familiares, a atividade pesqueira na região permanece aquecida

Barcos de Navegantes. Foto: Marco Canto/Prefeitura de Navegantes
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A pandemia dentro da pandemia. A definição, ditada por um dos infectados pelo coronavírus, retrata a situação que vive o município de Navegantes, SC, 70 mil habitantes, após o óbito do pescador, Cristiano Couto, 47 anos, morto na em alto mar no litoral de São Sebastião, SP, na noite de 19 de maio último, a bordo do barco pesqueiro Águia Dourada IX e que levava vinte e três pessoas. A tripulação havia deixado a cidade em 2 de maio. “Há três ou quatro dias ele já estava com febre, tinha dificuldade para respirar, tosse e muita dor de cabeça. Nesta noite, ele teve um ataque fulminante e morreu” conta um colega de navegação. O ataque, a que se refere, era um infarto. 

Acionado pela Marinha, o Samu aguardou a tripulação que estava a três horas de distância da costa. Quanto a equipe médica chegou ao local, Couto já estava morto. Os pescadores descreveram seu quadro clínico nos dias anteriores. Foi coletado material para exames da covid-19. O barco e tripulação, monitorados pela Marinha, retornaram a Santa Catarina. 

Embora as evidências demonstrassem que a probabilidade de a vítima estar infectada pelo coronavírus fosse grande, o translado do corpo, segundo as autoridades catarinense, não obedeceu aos protocolos de segurança para o enterro de um enfermo acometido pela doença. O caixão não teria vindo lacrado. Na quinta-feira, 21, aconteceu velório aberto ao público. Cerca de trezentas pessoas compareceram. Dezenas delas tocaram, abraçaram o morto. Na sexta-feira, 22, o resultado oficial atestava que o pescador morreu vítima da Covid-19. Mas aí, já era tarde. 

 

Em nota a Carta Capital, a prefeitura de São Sebastião faz um longo relato dos procedimentos adotados. Afirma que, no atestado de óbito consta como causa mortis “indefinida e exames em andamento”, mas ressalva que “tratava-se de óbito suspeito de Covid-19 e que todas as medidas protocolares foram tomadas”. Diz ainda que contatou a Vigilância Epidemiológica de Itajaí em 21 de maio, inclusive obtendo e-mail para direcionamento dos documentos e posterior resultado dos exames. Em nenhum momento especifica, menciona ou sugere que a causa mortis teria sido infarto. 

A nota concluí afirmando que o armador da embarcação, Everton de Oliveira, “participou das reuniões com órgãos oficiais e teve plena ciência da suspeita do óbito por Covid-19, sendo responsável, a partir daí, pelas medidas adotadas na embarcação e com a informação dada a família do óbito”. O Departamento de Vigilância Epidemiológica de Navegantes insiste que, em nenhum momento recebeu qualquer comunicado de suspeita da morte por Covid-19, e sim, que a causa teria sido infarto. Afinal, de quem seria o interesse em omitir a causa mortis do pescador Cristiano Couto? Por que a família não foi informada? Por que não mostrar a verdade? Por que esconder das autoridades sanitárias? Contatado pela reportagem, Oliveira, ao ser informado que se tratava de uma matéria jornalística, se negou a conversar e desligou o telefone.

Dos vinte e três ocupantes do pesqueiro, dez apresentaram resultados positivos da doença. Os demais aguardam a contraprova. Os indícios mostram que a maioria deve estar contaminada e permanece reclusa em quarentena. Agora, o temor, além do contagio comunitário natural, é por aqueles que estiveram no velório. De acordo com informações extraoficiais, que circula de boca em boca, além dos já testados positivo, cerca de vinte e cinco a trinta outros pescadores estão contaminados. A desconfiança, o medo, faz com que nenhum queira falar. As informações apuradas junto aos pescadores pela reportagem de Carta Capital, foram encaminhadas por áudio, sem identificação e sob condição de anonimato da fonte. 

“Estou em casa, trancado (…) com febre, tosse e dor de cabeça. Mandei mensagem para a agente de saúde, mas ninguém falou mais nada” afirmou por áudio um dos reclusos. O medicamento que está tomando, segundo ele, foi indicado por um familiar: antitérmico, xarope para tosse e comprimido para dor de cabeça. Outro infectado, um nordestino que veio trabalhar no sul, vive sozinho em sua casa. “Recebi apenas um telefonema para saber como estou. Mas não tenho remédio, medicamento algum para tomar” diz ele. 

De acordo com a assessoria de imprensa da prefeitura, o município mantém uma estrutura para o atendimento da população, e as medidas adotadas seguem os protocolos do ministério da Saúde. Os infectados são monitorados por telefone. A orientação é que, casos os sintomas se agravem, procurem atendimento médico. Mas o que se percebe é que há uma insatisfação por parte dos pacientes. Em parte, pelo desconhecimento, outra pelo que consideram falta de apoio. O boletim divulgado na última terça-feira, 26, apontava que havia 379 pessoas monitoradas, sendo 264 confirmados como positivos. O número de óbitos era de 7 vítimas. A grande incógnita é saber o que poderá acontecer nos próximos dias, uma vez que a maioria destes possíveis infectados estão em período de incubação.

Nota oficial da Prefeitura de São Sebastião

Enquanto o coronavírus aterroriza trabalhadores e seus familiares, a atividade pesqueira na região permanece aquecida. Dezenas de barcos continuam a entrar e sair do cais diariamente. A vida de milhares de pescadores está em jogo, em risco. Considerada pela secretaria de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, cujo titular, Jorge Seilf Junior, é filho de um grande empresário do setor pesqueiro, em Itajaí, SC, uma atividade “primária e essencial”, portanto, “sem restrição ao exercício da atividade”, os pescadores não estão sendo submetidos a testes da Covid-19 nem possuem equipamentos especiais de uso, apenas máscaras e álcool em gel. Antes do embarque, é medida a temperatura para certificar se estão febris. Perguntado sobre o fato e se a pasta tomaria alguma medida, o secretário afirmou, em nota, que “sugere atenção às recomendações das autoridades sanitárias federais, estadual e municipais”. 

Aliás, Junior, que ganhou notoriedade internacional quando afirmou que ”peixes são animais inteligentes e saberiam fugir das manchas de óleo”, acaba de criar em sua pasta uma norma que se aplica a apenas duas embarcações entre as mais de 26 mil registradas no país. A regra, segundo o site The Intercept, dobra o número de espécies que podem ser capturadas em uma modalidade peculiar na pesca industrial. Um dos barcos beneficiados pertence a seu pai, Jorge Seilf, dono da JS Pescados. 

A situação se torna mais grave quando a estrutura hospitalar da região não tem mais capacidade para atender aos infectados. Segundo o médico Plínio Augusto Freitas Silveira, professor na faculdade de medicina da UNIVALI e mestre em Gestão de Políticas Públicas, o hospital de referência para o coronavírus, Marieta Konder Bornhausen, em Itajaí, conta com apenas 15 UTIs, todas ocupadas. “Nas cidades vizinhas não existe nenhuma UTI disponível” afirmou. 

Para ele, a falta de planejamento, de ações políticas eficazes na saúde pública pode provocar, em breve, um estrangulamento no atendimento hospitalar da região. Ainda de acordo com Silveira, no início de abril, quando a pandemia engatinhava, o médico e prefeito de Itajaí, Volnei Morastoni, MDB, anunciou uma parceria com o governo do estado para ampliar a capacidade local para 40 leitos de UTI, com respiradores. Até momento, nada aconteceu. Ficaram apenas promessas. “Por omissão ou lentidão nas decisões destes burocratas de plantão, que entre quatro paredes determinam quem sobrevive ou morre, corremos o risco de ficar esperando por um socorro que nunca virá, ou então, chegará tarde demais”. Consultada por Carta Capital, a assessoria de imprensa da secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina não respondeu ao pedido de entrevista.

A vida dos pescadores em Navegantes é o retrato 3×4 do que acontece com o setor em todo o País. “Tenho amigos no Rio, infectados, e ninguém faz nada” desabafa um dos invisíveis. Se as condições naturais da atividade já são difíceis, com a pandemia o risco é ainda maior. Sem proteção, esquecidos, a maioria tem a mesma resposta. “A gente entrega na mão de Deus”. Amém!

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