Sociedade

A vida dos moderadores de conteúdo que assistem a crimes e violência

Entre decapitações e mesas de pebolim, dois brasileiros relatam a CartaCapital como é este trabalho no Facebook

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Atenção: esta reportagem contém descrições de crimes e conteúdos que podem ser perturbadores.

A segurar o choro, Fernanda desviou o olhar da tela do computador que mostrava uma moça, de joelhos, sendo decapitada. Os autores da postagem chacoalhavam a cabeça da vítima. Gritavam: “Mostra para a sua mãe!” Respirou fundo, levantou-se e decidiu usar sua pausa semanal de 45 minutos. Foi ao andar de entretenimento: uma sala com poltronas coloridas, mesa de pebolim e outros jogos, ao estilo das companhias do Vale do Silício. Poderia atirar-se nas almofadas ou passar um tempo jogando para tentar voltar ao prumo. Preferiu conversar com o psicólogo. “Você tem de ser forte”, veio ele com a ladainha de sempre, “seu trabalho é necessário.” E logo o terapeuta avisou: “Sua pausa já está acabando”. Nesse momento, Fernanda compreendeu que aquele emprego – o de moderar o conteúdo do Facebook e do Instagram – não era para ela.

A brasileira Fernanda trabalhou por sete meses nessa função, em Barcelona. Soube da vaga em abril do ano passado. Bastava falar português, ser brasileiro, estar a par da cultura do Brasil, ter inglês fluente e ser “apaixonado por mídias sociais”. O endereço acrescentava um certo glamour à oportunidade: a torre Les Glòries, com seus 38 andares, um dos prédios mais chiques da cidade. Foi admitida. No treinamento, lembra ela, os formadores dizem que o trabalho é importante: os moderadores protegem a sociedade de ver postagens de crimes, conteúdo sexual impróprio, discurso de ódio. Um deles abriu o jogo: “Essa profissão não é para todos. Há os que aguentam e os que vão embora”.

O salário é de 24 mil euros por ano, cerca de 8,8 mil reais por mês. Mais 9 euros para almoço (quase 40 reais), seguro-saúde e plano odontológico. Esse pacote – e mais o charme de trabalhar para o Facebook – atrai muitos brasileiros à Competence Call Center (CCC), uma das empresas terceirizadas que prestam serviço de moderação de conteúdo ao Facebook. Além da CCC, Accenture e Arvato também fazem esse serviço em 20 cidades do mundo. Estima-se que 15 mil pessoas atuem como moderadores na Espanha, Estados Unidos, Filipinas, Marrocos e Alemanha.

Quando um usuário do Facebook ou Instagram se depara com algo que julga impróprio para circular nessas redes, ele pode clicar nos três pontinhos que ficam no canto direito da postagem e denunciá-la aos administradores. Em algum lugar do mundo, esse conteúdo aparecerá na tela de um moderador. Toda mensagem supostamente imprópria postada por brasileiros é moderada, em grande parte, pela CCC de Barcelona. De seus mil funcionários, cerca de 350 são brasileiros. No momento, há vagas em aberto.

Todos os contratados da empresa assinam um acordo de confidencialidade bastante rigoroso, em que se comprometem a não contar o que acontece na empresa. “Nem mesmo para a família”, explica Fernanda, que concordou em falar com CartaCapital sob a condição de não ser identificada. Seu nome e da maioria dos moderadores citados nesta reportagem é fictício. O mesmo expediente foi usado em reportagens do jornal The New York Times, entre outros.

Mil pessoas passam 8 horas por dia vendo crimes e sexo abusivo

Assim que chegam ao trabalho, os moderadores devem entregar seus celulares. Tampouco caneta, lápis e papel são permitidos. Nada que possa servir para registrar o que acontece nos oito andares da CCC. São três turnos diários de oito horas, incluindo os 20 minutos para a refeição. Se precisar ir ao banheiro, o funcionário deve pedir ao chefe. “Ele cronometra a saída, que será compensada depois”, explica Fábio, outro moderador brasileiro da CCC. Depois de algumas poucas semanas de casa, esse trabalhador terá de dar conta de analisar uma postagem suspeita em até 30 segundos. Se for uma filmagem que ultrapasse esse tempo, ele deve assistir os 15 segundos iniciais e os 15 finais. E então decidir se cobre a imagem com uma “cortina”, de forma a embaçar seu conteúdo, se mantém o post ou simplesmente o deleta.

Cada post é analisado por quatro ou cinco moderadores, que precisam chegar a um consenso: é terrorismo? Discurso de ódio? Sexo abusivo? Ninguém classifica nada de acordo com seus próprios conhecimentos, mas sim conforme as “políticas do Facebook”. Elas, contudo, não estão impressas em nenhum lugar e os funcionários não podem anotá-las. Precisam memorizá-las. E são centenas de regras. No documentário The Cleaners (2018), que tem a produção-executiva dos brasileiros Fernando Dias e Mauricio Dias, um moderador empregado nas Filipinas conta que o Facebook determinou o banimento de tudo que citasse 37 grupos terroristas. Perfeito. Mas os moderadores tinham de memorizar o nome de cada grupo, seus emblemas e sinais.

O conteúdo impróprio gerado por brasileiros é especialmente repugnante. A maioria dos posts denunciados apresentam crimes violentos, pornografia, abuso de menores e animais. Em países europeus, por exemplo, o terrorismo é uma temática mais recorrente. Na Alemanha, o discurso de ódio, de acordo com a alemã Burcu Gültekin Punsmann, uma ex-moderadora em Berlim, que deu seu depoimento ao jornal Süddeutsche Zeitung.

Na hierarquia da moderação há os fiscais de qualidade, responsáveis pelos veredictos em caso de impasses sobre uma ou outra postagem. Fazem também uma seleção dos posts a enviar aos moderadores. Ficam de olho na reação de cada um. “Se você aparenta reagir com naturalidade a certas coisas”, conta Fábio, “eles passam então a te direcionar os piores vídeos.”

Certa noite, Fernanda notou um burburinho na sala. Um dos moderadores começou a se morder. Lábios e braços sangravam. Entrou em colapso. “Ele gritava, fazia sons como se latisse. Então o levaram para outra sala, demorou umas três horas para acalmá-lo, até o mandarem para casa ou algum hospital.” Em Manila, nas Filipinas, conforme relata o documentário The Cleaners, um dos moderadores cometeu suicídio. Ele chegou a procurar ajuda psicológica e pediu transferência de setor por três vezes. Não foi atendido. Nem a empresa terceirizada nem o Facebook comentaram o caso.

Fernanda também teve momentos de pânico. Ela lembra que os moderadores não têm dia de folga fixo. Esse sistema e os turnos – que mudam do dia para a noite conforme a necessidade da empresa – acabaram por deixá-la doente. Hoje, ela faz tratamento psicológico e toma antidepressivos. Não esquece, contudo, o vídeo de um bebê sendo jogado de uma parede a outra. Sua mente revive os estupros a que assistiu, o sexo com crianças e animais, diários. “Postam de tudo e se orgulham disso.” Numa reportagem de 2014, a revista americana de tecnologia e comportamento Wired reproduziu, também de forma a preservar a identidade da fonte, o desabafo de um moderador do YouTube numa empresa de Manila: “Uma coisa é você ver no noticiário que uma pessoa foi degolada. Outra é ver, do ponto de vista do autor, da pessoa que posta aquilo com satisfação. Machuca muito mais”.

A empresa Competence Call Center, instalada no famoso edifício Les Glòries, em Barcelona, abriga 350 moderadores brasileiros

Cleusa Sakamoto, doutora em Psicologia, diz que vivemos em uma época em que um dos maiores valores é a visibilidade social. “Por isso criminosos e pessoas deturpadas postam essas coisas nas redes.” Fábio também tem lembranças recorrentes das atrocidades que viu. Em um dos vídeos bloqueados por ele, gravados supostamente no Nordeste do Brasil, uma pessoa aparecia pendurada pelos pés, com as pernas abertas. Em seguida, suas mãos eram cortadas. Depois os antebraços. Quando restaram apenas tronco, pernas e cabeça, a vítima teve o tronco destrinchado. “Fiquei sem saber o caminho de casa quando terminei meu turno.”

Nem mesmo casos assim, diz a política da CCC, devem ser comentados fora da empresa. Mas a polícia não fica sabendo desses crimes? Questionada, a CCC preferiu não comentar. Uma fonte ligada ao Facebook também não soube responder. Oficialmente, a companhia não fala sobre o assunto. Consultada, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse jamais ter recebido denúncias feitas pela empresa. Em depoimento ao New York Times, um moderador do Marrocos disse que, por não poder denunciar o que assiste, acaba se sentindo culpado.

Esse quadro, segundo Sakamoto, leva ao que conhecemos como estresse pós-traumático. Os sintomas são a agressividade, a depressão, as paranoias e o desenvolvimento da perversidade, o que pode levar ao suicídio. Fernanda diz sentir-se ao mesmo tempo mais agressiva e mais frágil. “É como se a sensação de todos os bullyings que sofri na infância voltasse de uma vez só. Saio na rua e acho que qualquer pessoa pode ser capaz de alguma crueldade.” Fábio expõe mais um pouco de sua angústia diária: “Chego em casa e fico pensando nos vídeos que vi. Repasso na minha cabeça as imagens e me surpreendo quando vejo que estou curioso para saber o que aconteceu depois. É horrível perceber-se assim”.

A polícia não é acionada? CCC e Facebook não comentam sobre isso

O jornalista americano Casey Newton, do portal The Verge, conta que os moderadores, com o tempo, começam a desenvolver um certo humor negro, a achar graça naquilo que não tem graça nenhuma – uma forma possível, talvez, de autoproteção. “Suicídio e violência viram tema de piada”, diz um dos moderadores entrevistados por ele em Phoenix, nos Estados Unidos. Por ter desenvolvido síndrome de estresse pós-traumático depois de nove meses moderando conteúdo na Califórnia, a americana Selena Scola entrou com um processo contra o Facebook. Em depoimento, diz que não consegue sequer se aproximar de um computador sem ter palpitações e tremores, ou lembrar de pessoas se mutilando.

Em nota a CartaCapital, o Facebook assume a natureza macabra desse tipo de trabalho: “Reconhecemos que é difícil, mas fundamental para a segurança da plataforma. Garantimos que todos os revisores tenham o treinamento adequado, recebam suporte psicológico e benefícios”. A empresa também diz que estuda meios de usar inteligência artificial para que a moderação seja feita sem intervenção humana. “Este é um trabalho que mina a saúde psicológica de qualquer um”, diz Fernanda. “As redes sociais não são apenas os likes”. 

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