Joanna Burigo

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É fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura.

Opinião

A revolução do futebol jogado só por mulheres

Em Buenos Aires, uma centena de jogadoras desafiaram o machismo e entraram em campo no 1º Festival Latino Americano de Futebol Feminino

O campo de futebol, historicamente recusado às mulheres, era só nosso
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No final de 2016, participei do 1º Festival Latino Americano de Futebol Feminino e Direitos das Mulheres Mi Juego, Mi Revolución. Mais de 100 adolescentes, adultas e idosas, oriundas de diversos países, estiveram na capital argentina Buenos Aires para o evento.

A ação foi orquestrada por La Nuestra e Discover Football, organizações feministas da Argentina e da Alemanha cuja missão é potencializar redes de mulheres e criar espaços para que elas pratiquem futebol e desenvolvam diálogos sobre gênero.

O festival tinha como objetivo gerar um ponto de encontro para discussões sobre estratégias de fortalecimento da modalidade, bem como de resistência e enfrentamento dos preconceitos e discriminações que cruzam a prática das atletas.

Objetivo alçado, objetivo alcançado. E o impacto de ter ocupado – sem disputas nem restrições, e com total domínio – espaços frequentemente restringidos para as mulheres foi forte.

Demorei a escrever um artigo sobre essa imersão porque no encerramento do festival soubemos da queda do avião da Chapecoense, tragédia que eclipsou a felicidade instigada pelos dias compartilhados com tantas mulheres aguerridas e comprometidas com a luta pelos próprios direitos.

Mas confesso que também demorei a compor este texto por ainda estar digerindo a potência do encontro, que transcende qualquer linguagem que eu venha a produzir sobre ele.

Meses atrás, escrevendo sobre as Olimpíadas, declarei não ter inclinações atléticas. Continuo não tendo, mas ainda assim joguei esse campeonato. Digo que joguei, mas na verdade estive, por dez minutos, no meio de uma partida de futebol.

Este breve período foi suficiente para que meu time e eu decidíssemos – em pleno consenso – que o uso prolongado da minha notória perna-de-pau comprometeria não apenas o desempenho da equipe, mas também o próprio torneio.

Sair do campo foi um alívio; continuar jogando como um peixe que tenta pilotar uma bicicleta teria sido desconfortável e embaraçoso para mim e injusto com as demais jogadoras, que mesmo sendo craques, convivem com perenes dificuldades em encontrar espaços para a prática integral de sua paixão – por anos literalmente proibida – e mereciam um jogo melhor do que o que eu poderia oferecer.

Ainda assim, a acolhida que recebi das atletas funcionou como uma lufada de calor humano, e reaqueceu o coração de quem trabalha majoritariamente via internet.

A simples congregação de corpos dissidentes – e o são, por ousarem ocupar espaços de onde foram e continuam sendo sistematicamente excluídos – reverbera com força em tempos de excesso cibernético e escassez de proximidade física.

E vale notar que tudo isso aconteceu na Argentina, onde o movimento #NiUnaMenos, um grito coletivo contra a violência machista, resultou em uma das maiores manifestações feministas de que se tem registro.

Um esporte proibido para as mulheres

A proibição do futebol feminino, que no Brasil durou de 1941 até 1979, é indicativa de uma das denúncias feministas mais frequentes: a do controle social sobre os corpos das mulheres.

As justificativas para a proibição são ainda mais reveladoras: mulheres não podiam jogar porque se considerava que o esporte comprometeria nossa fertilidade.

Para além de questões reprodutivas, a proibição do futebol aponta também na direção de outra denúncia feminista frequente: a do controle do nosso desejo.

Costumamos falar no controle do desejo sexual das mulheres, e atrelamos este ao controle de nossos corpos. O que esta proibição explicita é que não apenas nossos desejos sexuais são cerceados, mas sim todo e qualquer desejo manifesto que não caiba nas normas tradicionais de feminilidade.

Conversando com as atletas, ficou bastante evidente que jogar é uma vontade. O futebol, independentemente do gênero de quem o joga, é uma paixão, e as mulheres não o fazem para competir com os homens, muito menos para emulá-los.

Elas querem jogar simplesmente porque gostam. Jogar futebol, para a maioria das mulheres com quem conversei no festival, é isso: um desejo. E o desejo das mulheres – seja sexual ou por equidade – é raramente respeitado e constantemente reprimido.

Reconhecemos nossos sentimentos nas narrativas dos outros, mas também os conhecemos através do que o corpo sente. Somos corpos, cheios de desejo, paixão e fúria. Corpos, que sentem, e que são regulados – uns mais que outros, e normas de gênero não raro são ferramentas eficientes de controle de corpos.

O jogo dos homens, por exemplo, nunca foi proibido, e a fertilidade deles nunca esteve em questão, mesmo com o risco verossímil de um chute ir parar na bola errada.

Já a fertilidade das mulheres foi usada como instrumento para nossa exclusão do futebol.

As restrições impostas às mulheres, na seara do futebol, exemplificam e explicitam o cerceamento do nosso desejo e o controle social dos nossos corpos.

O ideário do feminino, que engloba pouco além de atributos como beleza, bons modos e aptidões maternais, existe para organizar os desejos arbitrariamente humanos das mulheres e fazer párias das que nele não se enquadram.

Mulheres que ousam ocupar espaços que não são tradicionalmente reconhecidos como nossos, do futebol à política, são tratadas como desviantes, e sofrem materialmente as consequências desse simbolismo da exclusão.

O desejo pelo futebol escapa os tabus da sexualidade por ser da ordem do esporte, mas é igualmente regulado. Não é de se surpreender que pensemos que esta proibição – e não somente ela, mas todas as barreiras que ainda existem, como o preconceito e o descaso sofrido por atletas – seja nada além de recurso político para que o futebol continue sendo um espaço reservado para os corpos dos homens.

Em seu mais recente livro Judith Butler articula que ocupações e assembleias são formas de fazer demandas, de declarar: “este espaço nos pertence”.

No Mi Juego, Mi Revolución, pudemos comprovar o poder que emana da aliança de corpos que ocupam espaços que os são negados. O campo de futebol, historicamente recusado às mulheres, e ainda mantido longe de nosso alcance, lá era só nosso.

Ter estado lá de corpo presente e ter sentido, neste mesmo corpo, o gosto de ter domínio sobre um espaço que nos é constantemente recusado, salientou a lembrança de que todos os espaços – públicos, privados e institucionais – são também das mulheres, por direito.

Ainda que o evento esteja longe de ter sido luxuoso, foi um luxo estar lá, e isso nos conta uma história alentada. Houve muita solidariedade naqueles dias, e o espírito colaborativo de equipe dentro e fora do campo, a concretude das trocas que fizemos, e o prazer que sentimos ao articularmos questões espinhosas sem incorrer no exercício constante da pura resistência, materializaram e embelezaram o jargão feminista “somos nós por nós”.

Não joguei muito, mas não era esse o objetivo da minha ida – fui para realizar uma oficina com minhas colegas de Guerreiras Project – e ao longo do festival participamos de dinâmicas dialógicas, oficinas criativas e atividades artísticas.

Estar junto de tantas mulheres tão diferentes, porém unidas por um mesmo desejo, enalteceu a necessidade cada vez mais urgente de lutarmos por nossos direitos.

Mas ter estado lá também me fez pensar no “contínuo lésbico” proposto pela poetisa Adrienne Rich no ensaio “Heterossexualidade Compulsória e Existência Lésbica”, de 1980.

O “contínuo lésbico” de Rich refere-se ao amplo espectro de relações íntimas entre mulheres, e tem menos a ver com sexualidade e mais com a sugestão de que desenvolvamos mais afeto entre nós, o que reforçaria laços de solidariedade política, um antídoto para a misoginia naturalizada.

Nossa luta e nossa resistência são urgentes, e basta lembrar que até mesmo para fazer aquilo que desejamos, aquilo que nos dá prazer, precisamos nos organizar apesar dos pesares, superando empecilhos misóginos e constantemente lutando para sermos quem somos e fazermos o que quisermos quando estes desejos estão fora dos scripts normativos do binário de gênero.

No clima tenso de ódios aparentes por tanta parte, é importante manifestar também nossa gratidão, admiração e respeito profundo pelas mulheres, pois nossas conquistas são ainda mais valiosas se considerarmos que elas acontecem em um mundo tão comprovadamente misógino.

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