Sociedade

Tristeza e indignação após incêndio no Museu Nacional

Em protesto nos arredores do palácio que abriga a instituição, manifestantes denunciam descaso das autoridades com o patrimônio

Ato contra Temer em Curitiba, na quarta-feira 10 (Foto: Roberto Roberto Parizotti)
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Por João Soares

A paisagem bucólica da Quinta da Boa Vista, num típico dia ensolarado carioca, contrastava com o clima fúnebre que rondava o Museu Nacional. Entre abraços e lágrimas, pesquisadores e funcionários que mantiveram um forte vínculo afetivo com a instituição buscavam consolar o inexplicável: a destruição de um dos mais importantes centros de memória da humanidade.

“Este espaço era a minha vida e a de muita gente. Nós não temos salários compatíveis com a nossa formação, e o que ganhamos não justifica estar aqui. Somos funcionários públicos por amor. Eu não sei de onde tirar forças para seguir. É como estar velando um parente nosso”, diz a bióloga Lilian Cardoso, uma funcionária do museu prestes a concluir seu doutorado em arqueologia.

Ao falar sobre o impacto das perdas materiais do museu – cujo acervo contava com mais de 20 milhões de obras e algumas das coleções mais importantes do continente em diversas áreas –, Cardoso destacou a situação dos pesquisadores que tiveram seus objetos de pesquisa completamente destruídos pelas chamas.

“No caso do meu doutorado, o material de pesquisa foi perdido, e ninguém nunca mais vai poder acessar e fazer novas pesquisas com ele. Mas a pesquisa de vários colegas que estão em meados do curso, ou no início, acabou”, conta ela. “O laboratório do meu marido acabou. Ele é professor-doutor, concursado da casa há 12 anos, e não tem mais com o que trabalhar, a não ser que se reinvente. É o caso de muita gente aqui. Estamos juntando os cacos e vivendo um dia de cada vez.”

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Se a situação impõe uma reviravolta na vida dos pesquisadores que viram seus objetos de estudo arderem em chamas, o incêndio representa a destruição de sonhos para os jovens que tinham a ambição de se dedicar ao estudo de áreas do conhecimento que somente o Museu Nacional poderia oferecer.

Em meio a esse cenário, alguns buscam forças para manter o otimismo. É o caso do estudante Luiz Paulo Bittencourt, aprovado na primeira etapa da seleção para o mestrado em antropologia.

“Desde que descobri o que era o Museu Nacional, tive o sonho de estudar lá. Muita coisa foi perdida, mas nada apaga o conhecimento das pessoas que se dedicam há anos a esse lugar. Quero acreditar que não é o fim e sinto responsabilidade de continuar um projeto de produção de conhecimento que sofreu um golpe absurdo”, afirma. “Hoje é impossível, mas amanhã vou chegar em casa, abrir um livro e estudar. Sinto que preciso dar o melhor de mim, precisamos disso mais do que nunca.”

Centenas de pessoas foram à Quinta da Boa Vista na manhã da segunda-feira 3 em protesto contra o descaso da gestão do patrimônio e para prestar solidariedade aos pesquisadores afetados pelas perdas. O parque municipal, localizado na Zona Norte do Rio, abriga o Museu Nacional, no palácio onde residia a família imperial.

Nos arredores, moradores comentavam o impacto de terem encontrado fuligens de documentos que pareciam remontar ao período do Império, e vários outros em diferentes idiomas. Os resquícios de arquivos destruídos pelo fogo chegaram a ser vistos nas proximidades do Maracanã, a quase um quilômetro de distância do museu.

Ao longo da manhã, o ar melancólico se misturou com forte tensão. Inicialmente apenas funcionários e estudantes foram autorizados a entrar no parque, de 155 mil metros quadrados, para se aproximarem do que restou da estrutura. Manifestantes tentavam forçar a entrada, enquanto a Guarda Municipal alegava a necessidade de aguardar o isolamento do prédio.

Por mais de uma vez, o nervosismo se intensificou quando a abertura do portão foi forçada, e os agentes reprimiram a ação com cassetetes e gás de pimenta. Uma manifestante chegou a ser carregada até uma viatura da Guarda Municipal para que pudesse receber atendimento médico em outro local.

jovens dw.jpg Jovens lamentam destruição do Museu Nacional, o quinto maior do mundo em acervo (C.Souza/AFP)

Após três horas de espera, a abertura do portão voltou a ser forçada, mas desta vez sem resistência dos guardas. Os manifestantes entraram em bloco, entoando palavras de ordem contra a falta de recursos para a educação num momento em que o Judiciário reajustou o próprio salário. O congelamento de gastos apoiado pelo governo federal também foi atacado.

Dentro da Quinta, o ambiente só voltaria a ficar tenso quando dois jovens exibiram uma bandeira da família real. Os manifestantes exigiam a saída deles do ato, enquanto agentes da Guarda Municipal buscavam protegê-los.

No pátio externo do museu, o bisneto da Princesa Isabel, Dom João de Orleans e Bragança, lamentou os estragos do incêndio no prédio que abrigou sua família, e prometeu emprestar obras para a reconstrução do espaço.

“Esta tragédia é resultado do descaso de sucessivos governos, seja de esquerda, seja de direita. Quando houve o golpe republicano que tirou Dom Pedro 2º do poder, ele levou para o exílio quadros, fotografias e objetos para preservá-los, pois pensava no Brasil antes de seus interesses”, afirmou. “A minha família lutou por anos para deixar esse patrimônio para o Brasil. Não é justo que tudo se perca dessa forma.”

A professora de antropologia social do museu Adriana Facina se emocionou ao falar da destruição do local que considera “um espaço de sonho no contexto precário da ciência brasileira”. Há 22 anos inserida no cotidiano da instituição, ela associa o descaso com sua preservação a uma inversão de prioridades na gestão pública.

“Gastou-se 215 milhões de reais no Museu do Amanhã, um elefante branco recheado de televisores, porque é uma oportunidade de negócio. Nós não nos encaixávamos nisso: éramos conhecimento, ciência, cultura e diversão para as pessoas mais pobres. O museu é popular e tinha fila para visitação nos fins de semana. Temos uma elite gananciosa, capaz de se emocionar com um museu em Paris e tratar com descaso uma instituição dessas”, desabafa.

Na noite desta segunda-feira, os ministros Sérgio Sá Leitão (Cultura) e Rossieli Soares (Educação) estiveram na Quinta para acompanhar o trabalho de rescaldo dos bombeiros. Eles anunciaram a liberação imediata de 10 milhões de reais à UFRJ, que administra o espaço, para ajudar na reestruturação do palácio. Segundo Sá Leitão, o governo ainda busca apoio internacional para recuperar parte do acervo.

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