Saúde

A guerra contra o coronavírus no Brasil tem nome de mulher

Os números mostram que, embora minoria no mercado de trabalho geral, as mulheres dominam os serviços mais essenciais na pandemia

Unidade de Tratamento Intensivo no Hospital das Clínicas, em Porto Alegre (RS). Foto: Silvio Avila/AFP
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A crise do coronavírus mudou radicalmente a rotina da médica Aline Calixto, de 32 anos. Ginecologista e obstetra, ela se viu, de uma hora pra outra, obrigada a assumir um volume extra de consultas de pré-Natal, partos e atendimentos de urgência. Capote, máscara e escudo facial viraram uniforme. Sem a escolinha para a filha de 2 anos e sem a ajuda dos pais idosos, distantes há 40 dias, o cotidiano é outro. O marido, advogado, é quem fica em casa com a menina. “O que eu consigo fazer hoje por ela são coisas pontuais. Acordar, dar o jantar, colocar para dormir…”, conta.

A vida da família ilustra uma realidade encoberta da brasileira em tempos de pandemia. Das enfermeiras do pronto-socorro às cuidadoras e atendentes de caixa, o soldado no front desta guerra sanitária é, quase sempre, uma mulher.

CartaCapital cruzou dados da Relação Anual de Informações Sociais de 2019 e o decreto do governo federal que caracteriza os serviços essenciais. E descobriu que elas, embora minoria no mercado de trabalho geral, são maioria nessas ocupações. Na saúde, que emprega atualmente 2,1 milhões de brasileiros, compõem 76% da força de trabalho. São 8 em cada 10 enfermeiras, técnicas, assistentes de enfermagem, e agentes comunitárias da saúde, 7 em cada 10 fisioterapeutas respiratórias.

53% dos trabalhadores da saúde estão em sofrimento psíquico, diz estudo

Embora as mulheres estejam ganhando espaço nos serviços médicos de ponta, os homens mantém ligeira maioria entre os 270 mil doutores atuando em serviços públicos e privados no Brasil. O trabalho feminino prolifera na extremidade mais baixa da escala salarial, encarregada de dar banho, alimentar e medicar os doentes. Elas também amparam os enfermos de cidadania: são 7 em cada 10 assistentes sociais. Na administração pública, 6 em cada 10.

Longe da palermice e das rivalidades inúteis, a mola que move o País funcionando, e os mais frágeis vivos, é mantida por um trabalho invisível. E especialmente vulnerável à ameaça do coronavírus.

Um estudo da Internacional de Serviços Públicos, que ouviu 2.575 trabalhadores brasileiros dessa área, indica uma alta preocupante na deterioração da saúde mental: 53% disseram estar em sofrimento psíquico por conta do trabalho. Na avaliação da entidade, o fenômeno tem relação direta com as condições de trabalho na pandemia. Dois terços dos profissionais de saúde consideram não ter recebido o treinamento adequado para lidar com a pandemia. E, para 65%, a quantidade de EPIs fornecida pelos postos de saúde e hospitais é insuficiente para troca e higienização.

A expectativa de que o suprimento de EPIs aumentasse ao longo das semanas não se concretizou. O percentual dos respondentes que diziam receber luvas caíram de 71% para 67%. O mesmo ocorreu com álcool em gel (eram 77%, são agora 73%), óculos de proteção (47% a 43%) e máscaras (55% a 51%). O esforço é parte de uma campanha global por melhores condições de trabalho à categoria. Protegidos, os trabalhadores salvam a si mesmo e a outras pessoas.

Nas farmácias, restaurantes e supermercados, comércio essencial, a proporção de homens e mulheres é relativamente equilibrada, com ligeira vantagem às mulheres. Mas elas são maioria nos postos de contato direto ao público: vendedoras, recepcionistas, balconistas. A profissão de operadora de caixa é a 5º mais comum entre mulheres — elas correspondem a 75% dos 948 mil caixas e bilheteiros registrados no País. No plano geral, os homens são maioria. Ocupam 26 milhões de empregos, chegando a 55,9% do estoque total. Já as mulheres somam 20,5 milhões de vínculos, 44,1% desse contingente.

Apesar dos anos de avanços, as mulheres seguem nas posições mais precárias e mal pagas do mercado

Os homens também arriscam a vida nesta luta, é claro. Dominam setores de segurança, transportes e na chamada indústria de utilidade pública, responsável por garantir água, luz e saneamento básico. Mas estão em leve desvantagem numérica no trabalho essencial da pandemia e, em geral, em postos de menor contato direto com o público. Os setores predominantemente masculinos, como a indústria e construção civil, sob as restrições da quarentena, têm mantido muitos trabalhadores em casa. Um dos setores essenciais que mais emprega homens, o dos transportes, também tem sido afetado. A demanda doméstica por voos e o movimento de cargas nas estradas caíram mais de 40%, segundo levantamento de entidades do setor.

Na Itália, mortes e infecções por enfermeiros desestimula comparecimento de profissionais de saúde ao trabalho. Foto: Marco Bertorello/AFP

Apesar dos anos de avanços, as mulheres seguem nas posições mais precárias e mal pagas do mercado. A remuneração média do trabalhador brasileiro em 2018 foi de 1.827 reais. No recorte de gênero, as mulheres receberam 13,7% a menos que os homens. Nas carreiras de nível superior, mesmo com mais anos de estudo, continuam sendo minoria nos setores áreas mais valorizadas.

“O trabalho da mulher está associado a um conhecimento natural. Toda mulher nasce para ser mãe, para ser cuidadora, para ensinar… Se essas atribuições são naturais, elas não precisam se profissionalizar”, explica a economista Marilane Oliveira Teixeira, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho da Unicamp e especialista em relações de trabalho e gênero. “Predomina também essa ideia de que as mulheres só estão no mercado enquanto não têm filhos e a família. E que o empregador teria prejuízo ao investir nelas.”

Ao mesmo tempo em que exige mais dos trabalhos historicamente relegados às mulheres, a pandemia agrava um outro sintoma da desigualdade de gênero. Em março, as prisões pela lei Maria da Penha em São Paulo aumentaram 51%, segundo dados do Ministério Público. Esta não é uma jabuticaba brasileira. No mundo todo, crescem os casos de violência e feminicídio. A tendência não é recente: há anos os casos desse tipo aumentam, contrariando a tendência global de baixa nas mortes violentas. A combinação de tensões socioeconômicas e restrições à circulação piorou as coisas.

O Fundo de Populações das Nações Unidas prevê que, se o distanciamento social perdurar por mais três meses, o mundo verá 15 milhões de casos extras de violência de gênero. Caso o bloqueio se estenda por mais seis meses, serão 31 milhões. Como solução, a ONU recomenda aos países aumentar o investimento em serviços de denúncia, garantir que a lei se cumpra contra os agressores e estabelecer sistemas de alerta de emergência em farmácias e supermercados.

Ao fim dessa guerra, não será preciso reconstruir cidades ou sítios históricos, e sim a vida como conhecemos. E o valor do trabalho. Sem isso, não há economia.

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