Sociedade

A Fundação Casa por quem já foi um menor infrator

Depois de 43 anos, quis entrar em uma unidade para conversar com os meninos. Mas eu não estava preso e, portanto, não devia seguir as regras da prisão deles. Este foi meu erro

Queria conversar com os meninos. Particularmente com aqueles que estavam para sair. Acreditava que podia ajudar, falar sobre o que vivi, desglamorizar essa cultura de crime que os impregnava
Apoie Siga-nos no

Há cerca de 43 anos eu estava saindo de uma prisão para menores de idade com 18 anos e a cabeça completamente tomada pela cultura criminal que se desenvolve ali dentro. Foi exatamente por esse motivo que montei um projeto de Oficinas de Leituras para entrar nas unidades da Fundação Casa. Queria conversar com os meninos, particularmente com os que estavam para sair. Acreditava que podia ajudar, falar sobre o que vivi, “desglamurizar” a cultura de crime que os impregnava. Ao mesmo tempo queria saber sobre eles; o que sentiam, o que pensavam e se era diferente do meu tempo.

Fiz a maior correria, conversei com diferentes pessoas para viabilizar o projeto. Consegui o financiamento da revista Trip e furei o bloqueio para entrar nas unidades por meio da ONG Ação Educativa. Eles já mantêm um projeto educativo na Fundação. Entrei nas unidades acompanhado do Wagner, um dos monitores da Ação Educativa. E foi ótimo. Conseguia me comunicar com eles; ainda sabia a linguagem. Eram já rapazes, quase todos maiores que eu. Havia disciplina nas unidades; os jovens haviam assimilado a cena do comportado educado e a representavam bem. Não havia mudado nada; ainda ali estavam dominados pela cultura do crime. Alguns deles diziam que esperavam completar 18 anos para ingressarem nas facções criminosas dominantes. Era mais revolta (contaram que os funcionários espancavam) e toda aquela energia produzida por hormônios próprios da idade que não podiam ser extravasados. Estar preso é duro, ainda mais sendo jovem. A capacidade de auto-crítica estava ainda em formação; eles sempre jogavam a culpa nos outros.

Então nos levaram a uma unidade de meninos mais novos, viciados em crack, ladrõezinhos e traficantezinhos primários e ainda não institucionalizados. Na entrada da unidade, havia um grupo de homens vestidos de preto e aparelhados qual fossem para a guerra. Escudos, cassetetes pretos enormes como aquelas espadas antigas. Fui entrando, o Wagner e o Tubarão da Ação Educativa entraram atrás. Tubarão e Wagner eram monitores de literatura naquela unidade. Apertei mãos até chegar em um rapaz enorme e gordo que, após apertar minha mão, me acusou de haver passado a mão no nariz, antes de pegar em sua mão. Na hora pensei que estivesse brincando e até sorri. Mas era sério e ele levantou a voz, os outros meninos foram me rodeando em várias camadas. Quando percebi que era sério, não medi o perigo e nem a correlação de forças. Instintivamente recebi como uma afronta e bati de frente com o garotão. Sequer lembrava de haver feito aquele gesto, mas eu não estava preso e portanto, não devia seguir as regras da prisão deles. Este foi meu erro. Na casa dos outros você segue as regras dos outros. E o bate-boca se acirrou, eu me preparei para receber porrada, mas não senti medo.

Wagner foi decisivo, entrou na roda e foi me puxando pelo braço. Tubarão entrou pelo outro lado e ambos conduziram-me para a sala de aulas. Dentro, estavam os meninos que iriam participar da oficina. Estávamos começando a nos acalmar quando entraram dois rapagões sem camisa, muito fortes, e ameaçaram. Eu devia respeitá-los senão o “bicho” ia pegar. Wagner questionou se eles estavam nos ameaçando. Tergiversaram, mas o amigo foi colocando-os para fora. O garotão que começara a confusão entrou na sala e sentou-se lá no fundo. Decidi. Não havia condições psicológicas, mas faria, com aquela turma, a melhor de minhas oficinas.

Quando terminei, abrimos a porta e soltamos a sala. O rapaz ficou por último. Eu havia falado de parentes dele que cumpriram pena comigo. Ele pediu desculpas e saiu do meu lado no pátio, mas os demais não sabiam e um grupinho nos parou. Mais ameaças e agora com gestos largos. Não sei o que houve comigo porque não sentia nem receio e queria debater, discutir com eles. Depois de toda luta que fiz para chegar perto deles, fiquei puto da vida e, se não é o Wagner novamente a me puxar, sei lá o que podia acontecer.

Passamos o portão e, no caminho, estávamos xingando os meninos, indignados com eles. Falaríamos na Ação Educativa e ali não viríamos mais. Além de ser arriscado, os “caras” não mereciam. Só então percebi o risco que havia corrido. Nos despedimos revoltados e certos de não mais voltar.

Em casa, cabeça fria, comecei a racionar. Caramba, como eu fora estúpido! Podia ter iniciado uma rebelião! E, puxa, meu projeto era exatamente para aqueles meninos com mais problemas. Aqueles que estavam começando agora o caminho das pedras e não sabiam o que lhes aguardava. Minha função era desromantizar o crime, a prisão, mostrar as coisas tais como elas são e o poder imperioso da vontade, em contraposição. Precisava voltar lá. Precisava daqueles meninos mais que eles de mim. Eu voltaria.

Quando encontrei o Wagner e o Tubarão no dia seguinte, eles haviam passado pelo mesmo processo ao refletir em casa. Queriam voltar, Wagner dizia que, se não voltasse, não conseguiria entrar mais nas outras unidades. E lá fomos nós, cheios de disposição, até para apanharmos juntos, se fosse o caso.

No pátio, alguém nos viu entrar e já gritou: olha eles ai!!! E veio arrastando a cadeira qual fosse usá-la para nos atacar. Preparei-me; correr eu não iria. Os parceiros estavam firmes. Então o garotão que começara a questão no dia anterior surgiu a meu lado, sei lá de onde. Mostrava um livro e falava que havia lido, todo orgulhoso e sorrindo. Abraçou meu ombro, senti que era sincero, relaxei, o rapaz da cadeira sentou-se nela perto de nós, a nos olhar. Fomos indo para a sala de aula. Quando abriu a porta. Surpresa! A sala estava lotada, as cadeiras tomadas e gente em pé, ali nos esperando. Abri a voz e falei, brinquei, pulei, fiz palhaçada, o diabo para conquistá-los definitivamente.

Saí de lá quase que carregado, todos que estavam na sala foram conosco até o portão de saída se despedir de nós. Foi maravilhoso, nunca me senti tão inspirado, tão professor, amigo e pai. Lembrei o orgulho e que eu sofria melhor com ele e compreendi os meninos e suas atitudes.

* O escritor Luiz Alberto Mendes Jr., autor de Memórias de um Sobrevivente (Cia das Letras), passou 31 anos preso em diversas cadeiras brasileiras. No dia do Massacre do Carandiru, estava detido no Pavilhão 8, ao lado de onde aconteceu a chacina (Pavilhão 9)

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo