Sociedade

A Cracolândia no centro da disputa política em São Paulo

Alheio aos resultados positivos do programa De Braços Abertos, João Doria cria tensão em usuários ao anunciar internação obrigatória

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Dois dias após sua vitória no primeiro turno, o prefeito eleito de São Paulo, João Doria (PSDB), participava do programa de José Luiz Datena na TV quando falou de seus planos para a Cracolândia. Naquele instante eram exibidas imagens ao vivo do “fluxo”, como é conhecido o trecho de maior concentração de usuários de drogas na região central da cidade. “Isso vai acabar. Isso me provoca uma enorme repulsa. Nós vamos colocar a internação obrigatória”, afirmou Doria.

O tucano repetiu o que foi dito na campanha e prometeu extinguir o programa De Braços Abertos, criado em 2014 pelo prefeito Fernando Haddad (PT) para atender os dependentes. Apesar das certezas de Doria, que em mais de uma ocasião usou a expressão “de braços abertos para a morte”, uma conversa com os beneficiários mostra que o programa tem resultados significativos.

“Eu ainda sou usuário, mas uso muito pouco. Antes eu ficava na rua, fazia pequenos furtos, fumava o que eu tinha e o que eu não tinha. Era um ‘noia’ completo”, conta Wilton Aparecido de Macedo, de 41 anos. Cadastrado no programa desde 2014, Macedo faz atualmente um curso de inclusão digital e quer voltar a estudar. “Há 60 dias eu não sabia ligar um computador. Agora eu pretendo fazer uma faculdade.”

Com foco em medidas de redução de danos, o programa tem orçamento anual de 12 milhões de reais e oferece moradia em hotéis, emprego, alimentação, tratamento de saúde e capacitação profissional a 465 beneficiários. A proposta é que os usuários reduzam gradativamente o consumo de drogas e desenvolvam uma nova rotina, com novos hábitos. Como mostrou CartaCapital em abril, o programa é elogiado, mas carece de melhorias, como a oferta de mais vagas de emprego ao beneficiários. 

“Hoje eu só fumo cigarro. Não durmo na rua, aprendi a ganhar o meu dinheiro”, diz Núbia Lima da Silva, de 30 anos, que trabalha com artesanato na Associação de Desenvolvimento Econômico e Social às Famílias (Adesaf), parceira da prefeitura. “Esses dias eu fiz dois espelhos. Um eu vendi por 75 [reais], o outro eu vendi por 50 [reais]. O que eu fiz com esse dinheiro? Comprei um tênis para o meu filho”, conta. O menino de três anos que vive com ela é uma das 35 crianças atendidas pelo programa.

Pesquisa realizada pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas e financiada pela Open Society Foundations aponta que mais de 65% dos beneficiários do De Braços Abertos afirmam ter reduzido o consumo de crack.

De acordo com a antropóloga Taniele Rui, coordenadora da pesquisa e autora do livro Nas Tramas do Crack: Etnografia da Abjeção, a Cracolândia está no centro da disputa política urbana em São Paulo e, nesse conflito, os prejudicados são os usuários de drogas, que têm “suas vidas pautadas por dinâmicas eleitorais”.

“Os beneficiários do programa perdem não só a moradia, o trabalho e a renda que conquistaram, mas perdem, sobretudo, a confiança nos programas públicos que se direcionam a eles, o que prejudica os próximos serviços com os quais entrarão em contato”, afirma a antropóloga.

Rui considera que o programa precisa ser aperfeiçoado, mas defende a sua manutenção. “Se Doria estivesse atento ao que significa, em termos políticos, ter um programa reconhecido em nível internacional, estudaria melhor o De Braços Abertos”, diz.

Doria tem dito, porém, que vai adotar o programa Recomeço, criado em 2013 pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), seu padrinho político. Com a proposta de enfrentamento ao uso de drogas a partir da abstinência, o Recomeço oferece tratamento de saúde e prevê internação em hospitais e comunidades terapêuticas. O programa tem orçamento anual de 90 milhões de reais e internou mais de 15 mil usuários de drogas desde 2013 em todo o Estado. Segundo a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social, 80% dessas internações foram voluntárias.

A proposta em discussão prevê a integração entre o De Braços Abertos e o Recomeço a partir de janeiro de 2017. A manutenção de emprego e moradia aos beneficiários do programa de Haddad, no entanto, poderá estar condicionada à internação para desintoxicação em unidades do programa estadual.

Para Taniele Rui, uma política pública que tem a internação como diretriz pode ser considerada uma política higienista. “Quando a internação se torna massiva, o objetivo parece ser mais afastar os sujeitos dos locais públicos do que zelar por sua saúde e vontade. Muitas pessoas não só diminuíram o consumo [de drogas], como mudaram suas rotinas. É isso que importa, não simplesmente se elas pararam de consumir crack”, afirma.

A concentração de usuários de drogas na região central já dura pelo menos 20 anos. “A Cracolândia se tornou, pelo menos desde 2010, centro da disputa política urbana em São Paulo. O sonho de todo gestor é sua erradicação do tecido urbano. Em 2013, com a chegada de Haddad à prefeitura, essa disputa ganhou contornos partidários. O De Braços Abertos e o Recomeço, de frente um para o outro, materializam essa disputa”, afirma Rui.

O programa Recomeço trata a dependência como “doença crônica da saúde mental” e não há levantamento sobre reabilitação. Segundo informou o governo do Estado, das 2.817 pessoas que passaram por comunidades terapêuticas em 2015, 1.809 continuaram referenciadas nos serviços de saúde e 862 nos serviços de assistência social, o que significaria “sucesso na reinserção social de 2.671 pessoas”.

Para Semíramis Vedovatto, coordenadora da Comissão de Saúde do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e representante da entidade no Conselho Nacional de Saúde, os dados do Estado não indicam recuperação. “Esses números não nos dizem quantas pessoas entraram e saíram do programa com sucesso”, diz Vedovatto, que trabalha com usuários de álcool e drogas há mais de 15 anos e defende a internação em casos extremos, de saúde debilitada, por períodos curtos.

De acordo com o psiquiatra e sanitarista Paulo Amarante, pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz, políticas de drogas pautadas pela internação atendem a interesses de segurança pública por meio da “repressão à pobreza” e da gentrificação. “As políticas proibicionistas têm um núcleo enorme e favorecem a manutenção dessa ideia de um outro marginal, indesejável, que precisa ser recolhido à força, tratado, melhorado. Mas na prática isso não acontece, porque o modelo de tratamento é equivocado.”

Amarante afirma, porém, que a manutenção das clínicas como negócio lucrativo é a questão central do debate. “Não há dúvida de que há um interesse de mercado. As clínicas e as comunidades terapêuticas são grandes fontes de renda de igrejas, médicos e políticos”, critica.

Comunidades terapêuticas de todo o Brasil são, com frequência, associadas a escândalos de violação de direitos humanos. Fiscalização recente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo apontou problemas como alimentação inadequada e imposição religiosa (ritos católicos) em ao menos uma unidade parceira do Recomeço. O secretário de Desenvolvimento Social do Estado, Floriano Pesaro (PSDB), contesta o relatório e afirma que a avaliação na unidade foi “mal feita”.

Para Vedovatto, do CFP, a falta de fiscalização faz com que as comunidades terapêuticas sejam “terra de ninguém”. “Existem locais que fazem um bom trabalho com relação ao processo de desintoxicação, mas a maioria não tem equipe de saúde. Outra questão é o método de trabalho: oração e laborterapia. Que tratamento é esse, que não permite à pessoa ressignificar a sua vida a partir do seu referencial?”, questiona.

As declarações do prefeito eleito têm deixado apreensivos os beneficiários do De Braços Abertos. André Barbosa, de 41 anos, está na frente de trabalho de brechó e costura e se considera “um sobrevivente”. “Tenho 18 internações, já estou calejado. Podem me internar obrigatoriamente, como minha família fez comigo um dia. Não resolveu.”

Marcio de Lima, de 33 anos, trabalha como assistente de cabeleireiro e teme ficar “desamparado de novo”. “Eu já fui internado e não adiantou nada. É a mesma coisa que cadeia. Quando você se sente preso e não usa só porque não tem, você usa o dobro quando chega perto da coisa. Só de raiva”, diz. Com um violão em punho, Lima afirma que gostaria de ministrar oficinas de música para outros beneficiários.

Assim como Núbia da Silva, Barbosa e Lima moram no Hotel Alaíde, apontado pelo relatório da Plataforma Brasileira de Política de Drogas como um exemplo de gestão bem sucedida. Além de empregar uma beneficiária para realizar a limpeza do local, a proprietária Maria Laide dos Santos, de 62 anos, oferece café da manhã aos seus 56 hóspedes, o que não está previsto no contrato. Chamada de “mãe” e “tia”, “Dona Laide” diz que não tem informação alguma sobre o futuro do programa e critica o fato de as decisões serem tomadas de longe.

“Ninguém veio aqui. O ‘fluxo’ assusta, né? Se eles viessem aqui, eles veriam como a vida desse povo mudou. Hoje a maior parte deles tem prazer em estar limpo, arrumado, com os dentes escovados. Outra coisa que a gente percebe é a vontade de retomar o contato com a família”, conta Dona Laide.

Elogiado por não impor abstinência, o De Braços Abertos trata o uso de crack como consequência da vulnerabilidade social e oferece um pacote de direitos aos beneficiários. “Morei três anos na rua e poderia estar na calçada até hoje, mas acho que aproveitei bastante as oportunidades. Na escola em que eu me formei cabeleireiro hoje eu sou professor”, conta Marcos André, de 32 anos.

André vive com a família em um hotel na Freguesia do Ó, na zona norte da capital, que desde 2015 funciona como moradia do De Braços Abertos e faz parte de uma estratégia da prefeitura para distanciar os beneficiários do “fluxo”. Lá ele conheceu o casal Felipe Aparecido Santana de Lima, de 23 anos, e Verônica Aquino da Silva, de 41, com quem formou um grupo de rap.  

Na manhã do último dia 19, em um evento de confraternização, os três apresentaram a música que fizeram sobre as incertezas do momento atual. “Sentado em uma praça, triste e sem sucesso, eu fiquei sabendo do programa De Braços Abertos. Que alegria que foi para mim saber que o meu sofrimento estava chegando ao fim”, cantou Santana de Lima, o compositor, que trabalha com varrição de rua e afirma estar há um ano e quatro meses sem usar crack. “É hora de não olhar para trás, João Doria”, concluem os três, em coro.

Uma reunião entre Doria e a coordenação do programa deve acontecer em novembro. Os beneficiários também estão à frente da defesa do De Braços Abertos, e cartas escritas por eles serão entregues ao tucano pelo vereador eleito Eduardo Suplicy (PT), ex-secretário de Direitos Humanos de Haddad.

Para Benedito Domingos Mariano, secretário municipal de Segurança Urbana e coordenador do De Braços Abertos, acabar com a iniciativa seria um equívoco. “Nós estaremos de braços abertos para apresentar detalhadamente as ações e os dados e dizer que o programa pode, eventualmente, até mudar de nome”, diz. “O nome pouco importa. O que importa é manter um programa que é referência no tratamento de usuários de crack.”

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