Sociedade

A Copa do encontro: futebol vira integração para refugiados no Brasil

“É difícil deixar tudo e começar do zero”, conta Yilmary De Pedromo que vive há dois anos e três meses no Brasil com o marido e os três filhos. Eles vieram da Venezuela e são solicitantes de refúgio. A situação política do seu país foi […]

"Usamos o futebol como uma rampa de integração para trazer uma mensagem" (ACNUR/Gabo Morales)
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“É difícil deixar tudo e começar do zero”, conta Yilmary De Pedromo que vive há dois anos e três meses no Brasil com o marido e os três filhos. Eles vieram da Venezuela e são solicitantes de refúgio. A situação política do seu país foi o que impulsionou a sua vinda.

Lá, a falta de medicamentos, alimentos e assistência social tornou-se uma constante, mas a violência e a incerteza quanto ao futuro dos filhos, um deles ainda com três anos de idade, foi determinante para que Yilmary e o marido vendessem quase tudo, deixassem seus empregos e viessem para o Brasil, onde já tinham amigos. “A gente estava em uma situação vulnerável e decidimos sair do país. Aconteceram coisas que colocaram em risco a nossa vida. Foi um processo difícil porque a gente não queria sair”, explica.

A família de Yilmary ainda não foi qualificada pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) – órgão do Ministério das Relações Exteriores – como refugiados definitivos. Segundo ela, isso dificulta a obtenção de documentação, a procura por moradia definitiva e um emprego em sua área. A venezuelana trocou a terapia ocupacional pela gastronomia. O primeiro passo para isso veio com o treinamento da ONG Migraflix.

Segundo seu fundador, Jonathan Berezovsky, a organização tem o intuito de empoderar social e economicamente refugiados e imigrantes no Brasil, oferecendo cursos técnicos e de gestão de negócios em áreas como culinária e artesanato. Mas a Migraflix tem chamado a atenção por outra razão nas últimas semanas.

“Aproveitando que a paixão pelo futebol é muito forte não só no Brasil, mas no mundo todo, a gente está transformando a Copa do Mundo em uma desculpa para juntar pessoas”, explica Jonathan. “Durante o evento, nos dias de jogos do Brasil, famílias brasileiras estão convidando refugiados de diferentes países para as suas casas com o objetivo de criar uma nova rede de amigos.”

O projeto, que ganhou o nome de Meu Amigo Refugiado, começou antes da Copa, no final de 2016. Naquele ano, a ideia foi juntar brasileiros e refugiados para celebrar o Natal. Deu tão certo que a experiência foi repetida no Ano Novo, na Páscoa e, mais recentemente, durante o Ramadã. Nesse caso, foram os refugiados muçulmanos que abriram suas portas para famílias brasileiras.

Yilmary assistiu o primeiro jogo do Brasil na Copa na casa de um casal de brasileiros que reuniu mais de quinze membros da família em sua sala de estar. Ela conta que nunca havia tido essa experiência antes, já que o futebol não é tão tradicional em seu país e o time venezuelano não chegou na Copa do Mundo.

“O esporte mais tradicional na Venezuela é o baseball, então a gente sai nas ruas para torcer por esses times. Para meus filhos foi a primeira vez torcendo para um time de futebol. Eles estavam muito encantados”, conta ela.

A família está há apenas seis meses em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, e ainda não conhece muitas pessoas. O jogo foi uma oportunidade para criar amigos, além de contatos para trabalho, já que o esposo de Yilmary dá aulas de espanhol para ajudar com as contas da família.

“O desconhecimento cria uma barreira e Oo futebol é uma maneira de unir as pessoas. Também é um incentivo para conhecer outras culturas. É importante que as pessoas comecem a entender a vida do refugiado e porque a gente veio”, conta ela. “A gente não veio bagunçar ou tirar o trabalho de um brasileiro. A gente veio trabalhar de forma igual. Com qualquer um de nós pode acontecer essa realidade, você hoje pode estar aqui e amanhã em outro lugar.”

Experiência parecida teve Blaise Mulato, refugiado no Brasil desde 2001, quando veio de Angola por motivos políticos. Segundo ele, os angolanos têm pouco espaço para se expressar em relação aos seus direitos. Neto do vice-presidente do maior partido de oposição do país, carregar o sobrenome Mulato não foi fácil para Blaise e exigia discrição.

“O governo ainda tem aquela política de opressão. Você acaba sofrendo represálias. Lá muitos são obrigados a deixar o país por perseguições políticas”, explica Blaise. A busca por educação também pesou na decisão de partir, já que sua mãe não tinha condições de ajudá-lo a custear os estudos em uma universidade privada, maioria em seu país.

“Quando surgiu a oportunidade de vir para o Brasil não pude recusar”, relembra. Blaise passou seus primeiros dias em um hotel na região da Estação da Luz, onde gastou a maior parte das economias com a hospedagem. O olhar de desconfiança das pessoas nas ruas foi seu primeiro choque, na época. Hoje, mora em um sobrado com outros imigrantes angolanos na zona leste de São Paulo.

Ele também conheceu a Migraflix na procura por um emprego, fez o cadastro e foi contatado um tempo depois pela ONG. Gostou tanto que participou de muitos projetos e as boas experiências anteriores fizeram com que ele topasse assistir o primeiro jogo do Brasil na casa de uma família brasileira, no mesmo bairro.

“A moça, a Mariana, entrou em contato comigo antes do jogo, combinamos um horário e ela veio me pegar. Eles são uma família muito simpática, fizeram algumas comidas brasileiras, foi muito bom torcer pelo Brasil”, conta ele. Como Yilmary, Blaise não verá a seleção de seu país em campo, então aproveitou a oportunidade para adotar a seleção brasileira como sua.

“O clima de Copa e de celebração é diferente na Angola. Lá nós somos mais céticos. O brasileiro tem otimismo em certas coisas”, explica ele, que se surpreendeu quando a empresa em que trabalha liberou os funcionários para vestirem verde e amarelo e saírem mais cedo no dia da partida entre Brasil e Croácia. “Na Angola seria diferente”, compara.

Para Blaise, a experiência de uma hora e meia de um jogo de futebol é o suficiente para facilitar a troca de vivências entre imigrantes e brasileiros. “Sou da opinião que o futebol é um esporte que une pessoas de várias religiões e etnias”, explica ele.

Blaise mantém contato com a maioria das famílias que visitou, mas confessa que algumas vezes as pessoas ainda carregam certo preconceito em seus discursos, mesmo que de forma sutil. “Normalmente quando eu converso com eles eu acabo trazendo uma visão diferente. Em uma família falamos sobre preconceito racial e eu expus meu ponto de vista. Depois de algumas horas eu notei que eles ficaram sensibilizados com o que eu falei. Muitos gostam de me ouvir falar e dizem que eu tenho que dar palestras”, conta, descontraído.

Futebol é integração

Não é a primeira vez que o futebol é usada como incentivo à iniciativas de integração. É o que mostra a Copa dos Refugiados, que entra em sua quinta edição neste ano com 25 times e 500 atletas de diversos países. O evento é organizado pela ONG África do Coração, fundada por Jean Katumba, vindo da República Democrática do Congo há cinco anos.

Pela primeira vez, a Copa dos Refugiados vai para outros estados além de São Paulo. Os jogos já estão acontecendo em Porto Alegre, vão para São Paulo e, após o fim da Copa do Mundo, o Rio de Janeiro receberá a última etapa, em julho. Neste ano o lema do evento é “Não me julgue antes de me conhecer”.

“A Copa dos Refugiados é um projeto que tenta sensibilizar a causa do refúgio, porque a palavra refugiado toca mal na orelha das pessoas, leva muito preconceito”, explica Jean. “Para nós futebol é uma linguagem universal, para fazer gol não se precisa falar português. E para jogar com o outro time você não precisa falar a mesma língua. Usamos o futebol como uma rampa de integração para trazer uma mensagem”.

Jean explica que o projeto não é somente o jogo pelo jogo. O evento conta com oficinas para crianças e mulheres e palestras ministradas pelos próprios refugiados. “Várias oficinas colocam o refugiado como o protagonista da integração dele mesmo na sociedade brasileira. Via Copa, podemos quebrar o preconceito”, explica, citando a xenofobia como barreira para a integração dos refugiados.

Jonathan, idealizador do Meu Amigo Refugiado, concorda. “Quando você junta pessoas desconhecidas esse medo do outro, do diferente, some completamente. Ao torcer do lado do outro, você consegue entender que ele, seja um sírio, um congolês ou um venezuelano, é um ser humano igual a você, com aspirações e sonhos parecidos”, explica ele.

Assim como os outros personagens desta matéria, Jean não vai poder torcer pela seleção do seu país, que não foi classificada para a Copa do Mundo. Ainda assim, ele conta que o coração fica dividido.

“Eu me lembro da Copa do Mundo de 2014, tinha jogo Brasil e Nigéria. Nesse jogo, nós, refugiados paulistanos, estávamos sem escolha. Normalmente temos que torcer para um time da África, mas o Brasil acolheu a gente, então como ia ficar?”, conta ele. “Comemora quando a Nigéria faz gol ou comemora quando o Brasil faz gol? Só no lugar da gente para entender a dificuldade. Essa é a sensação que a gente tem”, resume.

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