Sociedade

A Conmebol está certa, mas o Corinthians não pode ser crucificado

A Confederação Sul-Americana de Futebol deve dar o exemplo, mas precisa se tornar exemplar e reconhecer os próprios erros

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Após décadas impávida, observando brigas generalizadas, pedradas, ameaças de invasão e juízes comprados, a Conmebol decidiu mostrar alguma autoridade sobre o futebol sul-americano. Após o escândalo, ainda não esclarecido, da final da Copa Sul-Americana, entre São Paulo e Tigre, a entidade foi pressionada pela Fifa e por patrocinadores para aumentar o grau de civilidade de suas competições, vistas como palco aberto para a selvageria. No primeiro mês da “nova Conmebol”, uma tragédia. Kevin Espada, de 14 anos, torcedor do San José, da Bolívia, foi assassinado dentro do estádio em Oruro, ao que tudo indica por um torcedor do Corinthians. Provisoriamente, a Conmebol determinou que o clube brasileiro atue com portas fechadas durante a Libertadores. A punição está correta, mas a entidade precisa garantir que o Corinthians não será o bode expiatório.

A tragédia em Oruro tem duas dimensões. A primeira delas é criminal. Doze torcedores do Corinthians foram presos, dois deles com sinalizadores de navio cujas cápsulas coincidem, segundo o GloboEsporte.com, com a do artefato que matou Kevin Espada. Esses dois foram indiciados como autores do crime e, os outros dez, como cúmplices. A quantidade de presos por conta de um único disparo causou alarme na diplomacia brasileira, preocupada com possíveis abusos das autoridades bolivianas.

Parte da explicação pela quantidade de presos pode residir em um vídeo divulgado pela rádio boliviana Zona Deportiva. As imagens mostram um torcedor do Corinthians armando o sinalizador, disparando-o contra a torcida do San José e, em seguida, escapando da polícia, aparentemente com a ajuda de colegas.

Não se sabe se o autor do disparo está entre os 12 detidos ou se já voltou ao Brasil. O assassino, e seus cúmplices, precisam ser julgados de forma isenta e honesta e punidos nos termos da lei boliviana. Apenas assim a família do garoto, que pela primeira vez na vida acompanhava seu time no estádio, terá justiça.

Impactos no esporte

A segunda dimensão da tragédia é a esportiva. Como entidade organizadora de um torneio, a Conmebol não pode ficar em silêncio diante de um homicídio. Jornalistas, torcedores, clubes e, mais recentemente, a Fifa e os patrocinadores, vinham cobrando mais severidade contra os absurdos cotidianos do futebol sul-americano. Por isso, segundo contou a Folha de S.Paulo, o regulamento da Libertadores 2013 passou a tratar as torcidas como extensão do clube. Assim, se a torcida comete erros, abre as portas para o clube ser punido.

Esse tipo de tratamento é comum pelo resto do mundo. Cada vez mais, os clubes e federações nacionais têm sido punidos pelo comportamento de seus torcedores. Em 2011, o Glasgow Rangers, da Escócia, foi punido com dois jogos com portões fechados por cânticos racistas de sua torcida. No mesmo ano, o Zamalek, do Egito, recebeu a mesma punição por violência generalizada no gramado. Em março do ano passado, o Panathinaikos, da Grécia, perdeu cinco pontos após uma briga entre seus torcedores e a polícia local. Em junho, a federação israelense tirou dois pontos do Beitar Jerusalem por cânticos racistas de sua torcida. Desde o meio do ano passado, após seus torcedores espancarem profissionais de segurança contra a República Tcheca, a Rússia passou a disputar as Eliminatórias da Eurocopa com “seis pontos suspensos”. Se mais violência ocorrer,  os pontos serão retirados. Em janeiro, Bulgária e Hungria foram punidas com jogos com portões fechados por cânticos racistas e antissemitas de seus torcedores.

Muitos observadores, e clubes, questionam a validade dessas punições. Alegam que, por culpa de uma minoria, multidões são punidas. Alegam que o clube não tem como controlar seus torcedores. É provável que sejam esses os argumentos que o Corinthians usará para se defender diante da punição da Conmebol.

Ainda que haja críticas a esse sistema, uma combinação de punições apenas ao clube (perda de pontos) e ao clube e à torcida (portões fechados) é uma das poucas atitudes que uma entidade esportiva pode tomar. Elas não podem prender e indiciar um torcedor, nem lidar com problemas históricos e sociais. Mais difícil ainda é, como no caso da maioria dos grandes clubes brasileiros, lidar com torcedores organizados que, em muitos casos, são financiados pelos clubes e políticos. Esses são trabalhos para investigadores, promotores e legisladores. Ainda assim, a entidade esportiva tem o papel social de dar exemplo. De não aceitar determinados comportamentos dentro de competições organizadas por ela.

No caso específico do Corinthians, há um compreensível sentimento de injustiça por parte dos torcedores. Mesmo para quem concorda que a punição era necessária e merecida, é difícil superar o fato de que o Corinthians é o primeiro clube punido de forma correta na história do futebol sul-americano. Muitos absurdos antigos ainda estão frescos na memória dos sul-americanos, sendo o mais recente deles a final da Copa Sul-Americana.

Diante de seu lamentável histórico de conivência com a selvageria, que faz da Conmebol co-responsável pelo assassinato de Kevin, a entidade precisa de uma mudança completa de paradigma. Além de punir o Corinthians, a Conmebol deve punir o San José, responsável por permitir a entrada de um sinalizador de navio (arma que pode voar a mais de 200 quilômetros por hora) no estádio. Há precedentes para isso. Em 2010, torcedores da Sérvia impediram a realização de uma partida contra a Itália em Gênova. A Sérvia foi punida com a derrota no jogo, mas a Itália ficou ameaçada de jogar com portões fechados caso não conseguisse controlar torcedores nas rodadas subsequentes.

A punição ao San José serviria para a Conmebol reformular sua abordagem para as competições que comanda, impondo normas mínimas de segurança para os estádios, de regras para os clubes e de comportamento para os torcedores. As regulamentações, por óbvio, devem ser acompanhadas de punições severas a qualquer violação a elas. Banir a torcida do Corinthians certamente é um bom exemplo. Banir somente a torcida do Corinthians, no entanto, é injustiça. Se a Conmebol quer dar exemplo, precisa se tornar exemplar e agir assim de forma sistemática, não apenas desta vez.

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