Sociedade

A cidade continua partida

O Rio de Janeiro tem duas geografias que separam categorias de ser humano distinguidas por classe e cor, um resquício da casa grande e senzala

Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro
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“E a cidade, que tem braços abertos no cartão-postal, com os punhos fechados na vida real, se nega [a dar] oportunidades; mostra a face dura do mal” (Hebert Vianna, “Alagados”, 1986)

A barbárie que está acontecendo nas praias da zona sul do Rio de Janeiro é o resultado de um modelo de cidade que ainda reproduz a divisão entre a casa grande e a senzala. Uma cidade que tem duas geografias que separam diferentes categorias de ser humano: a horizontal, que divide a cidade entre os bairros “nobres” do sul, da Barra e do Recreio, e as periferias esquecidas do norte suburbano e do faroeste, entregue às milícias, e a vertical, que separa o morro do asfalto.

Nessa cidade — nessas duas cidades que convivem numa só, as pessoas continuam sendo distinguidas em duas categorias por classe e cor. Todas as políticas públicas, inclusive (e fundamentalmente) a política de segurança, estão marcadas por essa distinção.

Semanas atrás, foi notícia algo que há muito tempo acontece: a Polícia Militar do estado identificava ônibus vindos de determinados bairros da periferia e bloqueava sua chegada às praias de Copacabana e Ipanema, praticando detenções de cidadãs e cidadãos que não estavam cometendo qualquer crime, pelo simples fato de serem jovens, pobres, negros e morarem em comunidades da zona norte, zona oeste e no subúrbio da cidade.

Por incrível que pareça, o óbvio foi polêmico: a justiça ordenou que as forças de segurança cumprissem o que a Constituição e a lei mandam e se abstivessem de prender cidadãos que não eram sequer suspeitos de terem cometido qualquer delito. Parece incrível, mas precisamos esclarecer: uma pessoa não pode ser presa por nada. Não existe na legislação brasileira a prisão “por via das dúvidas” e não há prisões que denunciem crimes futuros. Ser preto, preta, pobre, não é delito.

O Secretário de Segurança do governo Pezão, Mariano Beltrame, reagiu à óbvia decisão da justiça com argumentos absurdos: disse que a polícia ficava, assim, de mãos atadas para combater o crime e garantir a segurança — a segurança das pessoas brancas de classe média que moram na zona sul e dos turistas — e perguntou aos jornalistas: “Como um jovem vai à praia sem dinheiro para comer?”.

A pergunta é escandalosa por vários motivos. O representante do Estado está culpando os jovens que vão à praia sem dinheiro para comer por não terem dinheiro para comer, e ao mesmo tempo está dizendo que, por esse motivo, são bandidos. Se não tem dinheiro para comer, então, com certeza, vão roubar — é o que ele disse, em outras palavras.

Ou seja, o que o Estado deve fazer com as pessoas que não têm dinheiro para comer é prendê-las ou, no mínimo, estabelecer um Apartheid policiado pela PM que os mantenha longe das áreas de lazer que ele considera exclusivas daquelas e daqueles que têm, sim, dinheiro para comer. Façamos, então, uma fronteira militarizada entre o norte e o sul. A Prefeitura, na mesma linha, estuda mudar o trajeto das linhas de ônibus, para que não seja mais possível chegar à zona sul da cidade desde determinados bairros da periferia sem pegar, no mínimo, duas conduções.

Mas a história não acaba por aí. Logo após a decisão judicial e a negligência da PM em relação à função que lhe cabe, como providência divina (e eu aviso que aqui estou sendo irônico, já que vivemos tempos de pouca interpretação de texto), arrastões feitos por jovens pobres e pretos ou quase pretos levaram pânico aos cariocas e turistas brancos ou quase brancos que frequentam as praias da zona sul – pânico que, não por acaso, ganhou amplo destaque no jornalismo da Globo se compararmos com o espaço que esse mesmo jornalismo reserva às ações violentas da PM nas periferias da cidades.

Beltrame explicou, novamente: a polícia tem as mãos atadas. Como se o impedimento constitucional de praticar prisões ilegais de pessoas que não estão cometendo qualquer crime e de barrar a chegada de pobres à zona sul da cidade tivesse alguma relação com o policiamento nas praias. Como se a justiça tivesse proibido a PM fazer seu trabalho onde ele tem que ser feito. Não, secretário Beltrame: são duas coisas diferentes. A polícia pode sim garantir a segurança das pessoas nas praias e pode sim impedir os arrastões e deter os assaltantes em flagrante. O que não pode é deter jovens num ônibus sem motivo legal. Dá para perceber a diferença?

E essa inação do Estado, somada ao discurso fascista contra os direitos humanos e as garantias constitucionais, gerou as condições para o aparecimento de uma barbárie ainda pior: gangues armadas atacaram ônibus nas proximidades da praia, praticando a barbárie a céu aberto, incitando à guerra social: as gangues que atacaram os ônibus são gangues compostas por jovens brancos de classe média que se organizaram pelas redes sociais e contaram com a complacência de PMs, que também aí não cumpriram sua função de dar segurança aos cidadãos pobres que estavam nos ônibus. 

Enquanto o governo não cumpre seu papel — tanto nas políticas de segurança democrática quanto nas políticas econômicas e sociais que reduzam a desigualdade e a violência —, todas e todos nós sofremos as consequências: quem é assaltado na praia, quem é agredido violentamente por querer ter acesso às áreas de lazer da cidade e quem é impedido de circular livremente pela sua classe social ou sua cor. Uns e outros são, de diferentes formas, vítimas das consequências do modelo de cidade da casa grande e da senzala, que em pleno século XXI, ainda não conseguimos superar.

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