Sociedade

A cesta básica já não dá conta do básico

Criada em 1930 para lidar com uma população que começava a migrar para as cidades, a cesta básica reflete uma lógica de nutrição antiga

Itens da cesta básica
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*Por Juliana Afonso e Nina Rocha

 As famílias brasileiras voltaram a lidar com um antigo conhecido: a falta de comida no prato. Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), 116,8 milhões de pessoas no país se encontram em situação de insegurança alimentar, ou seja, mais da metade da população. O Brasil não registrava dados como esse há 17 anos. A pandemia e seus impactos econômicos têm um peso grande neste contexto, mas o coronavírus está longe de ser o único motivo da insegurança alimentar no país.

De um lado, temos a precarização dos modos de trabalho, que coloca a maior parte das famílias brasileiras em uma situação de instabilidade econômica e social. Esse cenário já vinha se desenhando há alguns anos e foi agravado com a pandemia da Covid-19: chegamos a 14,7% de taxa de desemprego no primeiro trimestre de 2021, o maior índice desde o início da série histórica, em 2012. A taxa de informalidade no mercado de trabalho também é alta: 39,6% da população ocupada são trabalhadores informais, um total de 34 milhões de pessoas.

O país mudou. Os problemas também. Mas a composição da cesta básica não foi atualizada

Do outro lado, temos um aumento dos preços de diversos itens de consumo, principalmente dos gêneros alimentícios, causado pela alta do dólar e pelo aumento da demanda por produtos agrícolas no cenário internacional. O resultado? Preços nas alturas e uma população com cada vez menos poder de compra. A situação é similar em diversos países da América Latina, que têm visto a insegurança alimentar crescer vertiginosamente.

No Brasil, enquanto a fome se alastra de norte a sul do país, as políticas que levam à população uma nutrição mínima se tornam novamente protagonistas e, por vezes, a principal fonte de alimento para muitas famílias. Nesse contexto, a cesta básica tem ganhado centralidade no combate à fome, seja por ações governamentais, iniciativas privadas ou projetos solidários.

A cesta básica nasce ainda no governo de Getúlio Vargas, na década de 1930, por meio do Decreto-Lei nº 399/1938. A política se baseou nos estudos do médico pernambucano Josué de Castro, que redirecionou os olhares do mundo ao dizer que a fome era uma questão de disponibilidade dos alimentos, e não de quantidade. Seguindo essa filosofia, a cesta busca assegurar o consumo de alimentos em quantidades suficientes para garantir o sustento e o bem-estar de um trabalhador durante um mês. Estabeleceu-se 13 itens fundamentais em uma cesta básica (carne, leite, feijão, arroz, farinha de trigo, batata, tomate, pão, café, banana, açúcar, óleo e manteiga).

Entrega de cestas básicas no bairro de Congós (AP) Foto: Reprodução/Instagram

Não é por acaso que no mesmo decreto tenha nascido o salário mínimo. “A parte da alimentação está baseada na composição da cesta básica, proposta para o cálculo do salário mínimo que, inclusive, continua a mesma até hoje”, comenta a professora de Economia e Políticas Públicas de Saúde, Alimentação e Nutrição da Universidade de São Paulo, Flávia Mori Sarti. Também não é por acaso que, nos últimos anos, o fim da política de valorização do salário mínimo seja parte do pacote que minou a segurança alimentar da população. Em julho deste ano, o custo da cesta básica na cidade de São Paulo alcançou o preço médio de R$ 1.064,79, quase o mesmo valor do salário mínimo, fixado a R$ 1.100,00.

Os preços dos 13 artigos estabelecidos como padrão são acompanhados pelo Dieese, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, que realiza um estudo permanente sobre os itens que compõem a cesta básica. Além deles, algumas instituições e empresas agregam produtos complementares, geralmente não perecíveis, como sardinha, biscoitos doces e salgados, milho em conserva, macarrão, sal, entre outros alimentos e itens de higiene.

O país mudou. Os problemas também. Mas a composição da cesta básica não foi atualizada. “Como havia uma desnutrição calórica, foi colocado muita proteína, muito óleo, e uma quantidade bastante grande de carne, que hoje em dia é algo para ser revisto. A gente continua tendo problemas de pessoas com desnutrição, mas, ao mesmo tempo, também temos pessoas com sobrepeso e obesidade, principalmente nas camadas mais pobres”, explica Flávia.

Mesmo com suas defasagens nutricionais e até em termos de custo – a cesta básica poderia, de acordo com Flávia, incluir uma variabilidade sazonal de frutas e verduras e diminuir os itens que são industrializados mantendo um custo igual ou menor que o atual – é impossível deslocar a cesta básica de um protagonismo na discussão da segurança alimentar, embora também seja necessário integrá-la a outras iniciativas, como políticas públicas de subsídio alimentar para estudantes e trabalhadores e outras propostas que visam à redistribuição de renda.

“A composição da cesta básica continua sendo muito central por conta da cultura. É fácil as pessoas entenderem o que ela representa em termos do cotidiano. Essa centralidade vem não só da crise sanitária e econômica, mas da população saber o que isso representa para a sobrevivência diária. As pessoas querem ter um emprego, uma renda e a sobrevivência garantida. O mais básico que a gente consegue quando pensa na soberania cotidiana é a alimentação”, afirma Flávia.

Segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), houve um aumento no preço de todos os alimentos considerados base para a dieta alimentar no Brasil. Os que mais aumentaram em comparação ao ano anterior foram o óleo de cozinha, com um crescimento de 103% no preço médio, e o arroz, com crescimento de 76%. Sem perspectivas de uma mudança no cenário nacional a curto prazo, cresce a pressão para a criação de políticas capazes de garantir a segurança alimentar. A questão é que já existe uma série de isenções para os produtos alimentícios, criadas exatamente para que estes itens cheguem à mesa do consumidor por um preço mais acessível – mas nem sempre é a população que lucra com essa política.

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