Sociedade

“Eu queria falar para os moradores relaxarem, mas eles se escondem”

Esvaziado, Jardim Europa recebe 2º Churrasco da Gente Diferenciada após quatrocentões questionarem presença de populares na exposição do MIS

Manifestantes improvisam jogo de cartas em cavalete durante o Churrasco da Gente Diferenciada
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O Mercedes branco dobrou a rua Bucareste, no Jardim Europa, por volta das 17h30. Escoltado por uma viatura da PM, parou a poucos metros de um aglomerado de pessoas que trancavam a passagem entre os casarões de um dos bairros mais nobres de São Paulo. O grupo improvisava um samba meio sem jeito quando alguém interrompeu o batuque.

“Gente, eu nunca vi um Mercedes na minha vida!”, gritou um popular, admirado, diante do automóvel. “Se ele acelerar isso aqui vai virar boliche”, dizia outro. O motorista tentou avançar aos trancos. O aglomerado , entre vaias, ameaçou cercar. Formou-se um corredor polonês. Sem ter para onde correr, o carro voltou de marcha a ré. O recuo foi, provavelmente, a conquista mais simbólica da segunda edição do Churrascão da Gente Diferenciada, realizado no sábado 27 no cruzamento da rua Bucareste e com a Luxemburgo.

O evento transformou a esquina em uma espécie de trincheira contra os quatrocentões paulistanos que, durante a semana, voltaram a questionar o direito à cidade dos que vivem distantes de seu território murado. Tudo começou quando a direção do Museu da Imagem e Som de São Paulo recebeu um abaixo-assinado dos moradores do Jardim Europa em protesto contra a muvuca causada pelos (muitos) visitantes, a maioria de bairros afastados, da exposição do Castelo Rá-Tim-Bum, um dos maiores sucessos da história do MIS. O incômodo dos moradores levou um grupo de manifestantes a resgatar o mote do famoso protesto de 2011, quando milhares de pessoas foram às ruas de Higienópolis após representantes do bairro se oporem à construção de uma estação de metrô na região. Um dos moradores dizia rejeitar a presença de pessoas “diferenciadas” em uma área tão nobre. A declaração virou motivo de deboche em um dos mais simbólicos atos da era pré-junho de 2013 na capital. A resposta ao raciocínio da moradora veio em forma de churrasco, barulho e farofa.

O protesto da rua Bucareste passou longe do anterior. No auge da concentração, o ato não reunia mais de 200 pessoas – pelo Facebook, quase 10 mil haviam garantido a presença.

Mas houve barulho. Nos fundos do museu, os manifestantes cantavam clássicos de Adoniram Barbosa (“saudosa maloca, maloca querida”), Raul Seixas (“eu sou a mosca que pousou em sua sopa”) e gritos de ordem improvisados, como “Dinheiro eu nunca quis, eu prefiro o MIS” ou “Ô vizinhança, tenha cuidado, aqui só tem diferenciado”.

Mas, além da carne, faltou um detalhe ao churrasco-protesto desta vez: a própria vizinhança. Com a exceção do Mercedes branco, os moradores do Jardim Europa evitaram passar pelo local enquanto os manifestantes batucavam. Um ou outro furou o bloqueio para levar seus cães a passeio, com os rostos fechados e cara de poucos amigos. Não houve bate-boca nem conflito.

A PM, que chegou a colocar quatro viaturas e uma unidade móvel à saída da rua, desmobilizou o efetivo pouco antes de escurecer, quando o grupo já substituía oa gritos de guerra por sucessos dos Mamonas Assassinas – um convite para a retirada. A ação mais transgressora da tarde foi quando um grupo quebrou o cavalete de um candidato e improvisou ali um jogo de cartas, bem ao lado do vendedor de Catuaba Selvagem e uísque Red Label, cuja garrafa permanecia intacta até o fechamento desta edição.

O único contato entre a PM e os manifestantes ocorreu quando um soldado se dirigiu à aglomeração e perguntou quem era o responsável pelo ato. Todos gritaram:

-A irresponsabilidade aqui é coletiva.

O policial voltou balançando a cabeça.

Do alto dos muros, era possível observar apenas o movimento das câmeras de vigilância e das janelas blindadas de vidro escuro, pelos quais os moradores e seus seguranças podiam ver o movimento, mas a recíproca não era verdadeira.

Se não parou a cidade, a exemplo do evento original, o Churrascão a Gente Diferenciada serviu de gancho para o cineasta uruguaio Mauro Baptista Vedia divulgar seu mais recente filme , coincidentemente chamado Jardim Europa. Enquanto ajudava a colar os cartazes do filme, que recentemente entrou em cartaz no Cine Belas Artes, ele dizia mal acreditar na coincidência. O longa fora filmado a três quadras do epicentro do protesto. Não havia melhor hora e lugar, portanto, para divulgar o trabalho, uma crítica à elite paulistana. “No meu filme ninguém trabalha. Todos vivem de posses e poses”, explicava. “A maioria dos personagens teria assinado o manifesto contra o MIS”, brincou. “A mãe da família assinaria se estivesse sóbria. Mas o protagonista, que é mais engajado, estaria na manifestação.”

O cineasta, que se mudou a São Paulo há mais de 20 anos, diz acompanhar com atenção os embates relativos à ocupação de espaço na capital: a reação aos corredores de ônibus e ciclovias implementados na gestão Fernando Haddad, a gritaria contra os rolezinhos e agora a oposição entre um museu aberto ao público e os moradores do bairro chique. “São Paulo é uma cidade complexa. No filme, tento mostrar como a elite se comporta como se não existe mundo exterior. Ela se isola. Não se conecta. Não se comunica. É o que vimos neste episódio.”

Ao seu lado, o empresário Felipe Gini, de 32 anos, erguia a voz em sinal de protesto. Morador do bairro, ele se opunha de peito e camisa aberta aos vizinhos abaixo-assinados. Dizia se incomodar mais com as missas realizadas na Igreja Nossa Senhora do Brasil, palco do casamento de 9 em cada 10 grã-finos de São Paulo, do que com o movimento do MIS. “Esse povo vai para Paris e se encanta com o Louvre. Mas não consegue aceitar um museu na própria vizinhança. Eles mesmos não frequentam”, dizia, enquanto roçava o bigode.

Um dos argumentos dos moradores anti-MIS era que as exposições como a do Castelo Rá-Tim-Bum atrapalhava o trânsito na região. Organizador do evento, Francisco Costa, de 27 anos, dizia que a queixa era mero pretexto. “Outros espaços em São Paulo causam impacto no trânsito e ninguém questiona a presença das pessoas ali.” Para ele, o incômodo, na verdade, era com a presença de pessoas que não frequentariam o bairro em dias normais.

Uma delas era Jessica Barbosa, de 18 anos, moradora de Cidade Tiradentes (a duas horas de ônibus do Jardim Europa) e frequentadora assídua do MIS, onde já assistiu e se encantou com as exposições em homenagem a Stanley Kubrick e David Bowie. Ela dizia estranhar o silêncio do bairro, onde não parecia haver moradores para ouvir o recado do movimento. “Se pudesse mandar um recado aos moradores eu diria: ‘relaxa, a exposição do Rá-Tim-Bum um dia vai acabar, e nós vamos voltar às nossas casas’. Mas eu não sei se tem alguém me olhando atrás desses muros. Ou das câmeras de vigilância…então não posso dizer.”

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